Adeus a um irmão
Goldman fala sobre o choque de ver um amigo com "o fim da vida estampado no rosto"
Felipe foi o irmão mais velho que eu não tive. Ele era da gangue de hippies do Bom Retiro, que ouviam Pink Floyd e detestavam a ditadura militar. Levei um choque ao vê-lo cadavérico, com o fim da vida estampado no rosto
Eu tinha 14 anos quando comecei a idolatrar minha irmã mais velha e seus amigos, que formavam a gangue de hippies do Bom Retiro, que ouviam Pink Floyd e Milton Nascimento, que viajavam de carona para o Nordeste nas férias e que odiavam a ditadura militar. Mas é claro que nenhum deles tinha paciência para um adolescente problemático e cheio de espinhas como eu. Apesar do enorme esforço que eu fazia para ser bacana, não conseguia, de jeito nenhum, me enturmar. Até que, surpreendentemente, o Felipe, o intelectual da turma, começou a demonstrar interesse pelas minhas noias e a corresponder minha amizade.
O Felipe era muito inteligente e eclético em seu gosto. Me apresentou não só ao primeiro baseado, mas também aos livros de Jorge Luis Borges, a Jimmy Hendrix e à música clássica. Ele despertou meu interesse para muitas coisas boas. Filho único, ele morava com os pais – judeus russos que se refugiaram no Brasil depois da Segunda Guerra Mundial – na esquina da minha casa. Passei a visitá-lo quase todos os dias depois do almoço.
O Felipe não era só um grande amigo. Ele era o irmão mais velho que não tive. E eu era o seu irmão menor. Nunca dissemos isso um ao outro, mas havia esse reconhecimento tácito. Brigávamos muito. Ele podia ser o cara mais chato e pedante do mundo. E, com o passar dos anos, foi ficando também muito rabugento e intolerante. Mas, como irmãos, não questionávamos a relação. Sabíamos que o destino era estarmos assim ligados, mesmo quando frequentávamos mundos diferentes, mesmo quando fui morar fora do Brasil há mais de 30 anos e passamos muito tempo distantes.
Há seis meses eu já sabia que o Felipe estava com câncer e que, mais cedo ou mais tarde, a doença o mataria. Queria muito estar perto, mas, vivendo em Londres, tudo o que eu podia fazer era telefonar de vez em quando e pensar muito nele. Ao longo desses meses, vivi mil vezes o reencontro que, na minha imaginação, seria também uma despedida.
Velhos roqueiros
Há quatro dias cheguei a São Paulo e fui direto visitá-lo. Por mais preparado que estivesse, me esforcei muito para conter o choque ao vê-lo cadavérico, alucinando na cama, com o fim da vida estampado no rosto. Nos poucos momentos de lucidez, falamos da morte iminente, lembramos do passado, contamos piadas e nos abraçamos. Ele me disse com aquele sotaque de mano do Bom Retiro: “Porra, meu. Tô fudido e mal pago!”. Ele me mandou abrir uma gaveta ao lado da cama e disse: “Escolhe o que você quiser como lembrança”.
Peguei uma velha caneta Parker e ele disse que foi um presente que ganhou quando fez bar mitzvah. Mas ele também me deu um outro presente, um dos mais lindos que já recebi. Pediu para fazer sua barba. Me senti honrado pela intimidade. Passando a lâmina por seu rosto cadavérico, tão frágil que parecia feito de papel de arroz, senti um calor muito delicioso, uma sensação profunda de carinho. Ao ver a atenção e o amor descomunal com os quais sua esposa o tratava, enxerguei uma felicidade enorme em todo aquele horror.
Ontem ele morreu. Toda a gangue de hippies do Bom Retiro estava no cemitério. Depois de todas essas décadas, parecemos todos velhos roqueiros, destruídos pela inclemência do tempo, but never too old for rock and roll. Nem fumo mais, mas pensei que íamos fumar um depois do enterro. Não rolou. Fomos comer uma pizza na rua Prates. Foi um lindo adeus. Singelo, irônico, sentido. O Felipão merecia.
*HENRIQUE GOLDMAN, 51, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br