A vinda dos que quase foram

O colunista Luiz Mendes às voltas com as dúvidas do aborto

por Luiz Alberto Mendes em

Sua voz possuía o som de vidro estilhaçado. Falava como que se cortasse. Seus olhos escuros eram pedaços de mistérios que a noite ameaçava engolir. As palavras como que abriam caminhos por entre lâminas cortantes. Porque não aprendera a navegar, vivia de naufrágio em naufrágio, se afogando em movimentos estreitos. Fora estuprada por um primo aos oito anos de idade.

Aos 11 anos, foi usada pelo pai e depois pelo tio. Desprotegida, sua vida fez-se perdida. As lágrimas desceram e eu, eterno errante dos caminhos, fiquei ali com minhas entranhas se encolhendo numa inexplicável necessidade de vácuo.

Uniu-se a um rapaz aos 14 anos, para fugir da casa paterna. Comeu o pão que o diabo amassou pelas mãos do companheiro. Na palidez da manhã, ela foi derramando uma infelicidade tão absurda que eu, este atento observador dos horrores da vida, fiquei sem ter o que falar. Nesta nossa vida cega, inexata, de rotas tantas vezes alteradas, somos opressores e oprimidos, até por condição humana.

Um homem jamais deveria ter esse poder de judiar, ferir ou machucar sua companheira, mas somos assim, infelizmente. Tiveram três filhos. Separaram-se, como seria inevitável. Ela voltou a morar com os pais, junto com seus filhos. O pai mexeu com sua menina de oito anos, como mexia com ela na infância, contou-me. Foi à delegacia, denunciou e o processo está correndo.

Como diriam os antigos, o mal nunca vem sozinho. Está grávida de um namorado que nem sabe de seu estado. A mãe a colocará para fora de casa, junto com os filhos, caso apareça novamente grávida. Àquela altura da narrativa, meus nervos vibravam enquanto o sol, bárbaro e cruel, em aço ia desmanchando a manhã.

O que queria de mim? Como poderia ajudá-la? Precisava de dinheiro para comprar o tal de Citotec para tirar a criança, enquanto era possível. Foi como um soco na cara. Senti-me como uma luz inútil, balançando a esmo. Não havia vida em mim que eu pudesse doar, mas eu, que vivi a me rasgar, abrindo-me de cima a baixo, negro, obscuro e insaciável, não podia participar daquilo.

Não tenho uma posição definida quanto ao aborto. É dessas questões que me fazem invejar dos lobos o uivo e a lua; seria somente olhar e uivar agora. Mas eu não posso. Expliquei por que. Havia uma moça, no início dos anos 50, que estudava em colégio interno desde menina. Vinha para a casa da família somente nas férias. Numa dessas vindas, as irmãs, mais velhas, a levaram a um baile.

Nesse baile ela conheceu um homem que dançava bem demais. Era professor de danças de salão. Ambos compunham um belo casal. Apaixonou-se, como não poderia deixar de ser. Era o primeiro amor de sua vida. Amava com o coração agigantando-lhe a alma. Naquele tempo namorava-se em casa, sob olhares atentos da família. Sempre havia um irmãozinho chato para vigiar. Ainda bem que todos eles eram fáceis de corromper com doces e balas. E foi assim que eles iniciaram. 

Contra Todos 

A família, nesse tempo, tinha o péssimo costume de investigar a vida do pretendente. Descobriram que o sujeito era casado e tinha um filho. O namoro foi terminantemente proibido. Ela já não podia; sangraria desatinadamente caso fosse separada do amor de sua vida. Coisas vivas ficaram entaladas em sua garganta, algo vibrava, timidamente preso.

Ele justificou-se. Estava separado da esposa há bastante tempo. Não gostava dela, falou de uma megera que o sacrificava. Quando queremos, acreditamos em tudo. Até no que não é para acreditar. Combinaram: ela jogou suas malas de roupas e pertences para ele, pela janela. Depois desceu pela porta, como quem vai para a padaria, e abandonou a casa materna com seu amor. Decidira viver sua vida, o silêncio ficou para a família como sucata de uma briga que haviam perdido.

Meses depois, contatou a mãe. Estava grávida. A família não acreditava naquela relação. Àquele tempo, somente o casamento validava relações. O resto recebia pedradas de todo tipo de preconceito. O filho de uma relação fora do casamento não podia ser registrado pelo homem como seu filho, caso fosse ele casado. Essa criança seria bastarda. Um pária social cuja origem seria sempre lembrada. Até imperadores escondiam seus filhos chamados de ilegítimos.

A família partia dessa linha de raciocínio. A mãe lhe deu dinheiro para que abortasse. Naquele tempo não havia anticoncepcional, a contagem dos dias na tabela menstrual era o método mais avançado de anticoncepção. Engravidou de novo. A mãe deu dinheiro e ela foi à clínica novamente. Aquilo já estava virando rotina. Pela terceira vez a força da vida surgia como um sol a nascer, sem haver se posto. A mãe, já agora cansada daquilo, ainda num último esforço, financiou mais um aborto.

Mas ela tinha outras idéias. Sua alma repercutia como um sino; queria seu nenê, mas não podia. Todos eram contra. Assim, empolgada por um desses armarinhos de cozinha, gastou o dinheiro para adquiri-lo, contando que o companheiro recebesse mais para procurar a clínica.

Dia seguinte, como não poderia deixar de ser, o companheiro foi despedido. Emparedada entre gritos estrangulados, ela concebeu seu nenê já completamente tomada de amor. Foi assim que eu nasci. Por isso não podia participar daquele ato, mesmo que não a censurasse por efetuá-lo. Eu a ajudaria para que tivesse a criança. O enxoval já era meu e, se quisesse, poderia ser até o padrinho, um segundo pai. Era tudo o que eu poderia fazer.

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