por Carlos Gerbase*Aprendi, desde pequeno, que a cidade de Porto Alegre era banhada pelo rio Guaíba. Depois não era mais um rio - era um estuário (desembocadura de um rio). Depois, era um lago. Lago Guaíba. Ninguém acredita nisso. A ciência, está cientificamente provado, nem sempre está certa. E não adianta mostrar fotos de satélite. Satélites mostram tudo, menos o essencial: o que consideramos ser verdade no momento mágico em que ainda acreditamos em alguma coisa. O Guaíba de verdade é um rio. Também aprendi que o Rio Grande do Sul, aqui na ponta do Brasil, era habitado pelos gaúchos, seres altivos, heróicos, montados em cavalos, dispostos a criar uma República, comer um churrasco e usar boleadeiras para derrubar uma vaca fujona. As únicas boleadeiras que vi em funciona-mento até hoje, durante churrasco num CTG (Centro de Tradições Gaúchas, uma espécie metafórica de mini-República separatista), não foram usadas para derrubar a vaca (que, no final das contas, já estava no espeto), e sim para um espetáculo interessante: apagaram-se as luzes do ambiente, as pontas das boleadeiras foram embebidas em querosene, e o gaúcho demons-trou sua habilidade em manobrar as bolas no escuro, desenhando figuras graciosas no ar. Impressionante. O gaúcho de verdade é uma espécie exótica de jogador de iôiô. E o Rio Grande, este sim, é um lago. A cultura gaúcha, e por extensão a porto-alegrense, é o resultado de todas as mentiras que aprendemos sobre nossa geografia, nossa história e nossas roupas, mais os efeitos de todas essas mentiras espalhadas pelo Brasil afora (tipo o desenho da cuia na capa daquele CD da TRIP), mais o nosso orgulho dessa imagem de dife-rentes, separatistas e machões, que nos faz mentir cada vez mais. Mas atenção: no inverno, faz mesmo frio; no campo, ainda se usa bombacha. Só que o melhor churrasco, como todos sabem, come-se em São Paulo. A cultura gaúcha é uma esfinge de costas: em vez de impedir a entrada do forasteiro, quase sempre impede a saída do provinciano, formulando perguntas difíceis, tipo para onde vais - Rio ou São Paulo?; por que a pior banda baiana de axé faz mais sucesso que a melhor banda gaúcha de rock? ou quanto os Engenheiros do Hawaii ganharam para transformar sua música 'Segurança' em trilha de comercial de banco?. Há, entre muitos porto-alegrenses, um grande orgulho de nossos fracassos. Preferimos os bares menores (e com os piores banheiros) e idolatramos as bandas mais chinelonas (as que tocam nos bares menores e com os piores banheiros). Fazemos raves ao ar livre, no inverno, com temperatura de cinco graus, porque no verão tá todo mundo em Santa Catarina. Mas tem o outro lado: exportamos, anualmente, centenas de garotas lindas para serem top models ao norte do Rio Grande, incluindo aí Nova York e outras querências. E, mesmo assim, as melhores ficam por aqui, sentadas nas mesas lotadas dos bares menores, fazendo xixi nos piores banheiros, dançando ao som das bandas mais chinelonas. No verão, muitas vão para Santa Cata-rina. Muitos vão atrás delas. Mas, só entre as que ficam, já tem uma penca de meninas mais bonitas que a Gisele Bündchen. É claro que isso é tudo mentira. Mais uma mentira sobre a cultura gaúcha. E continuaremos procurando a terceira margem do Guaíba, que será a relação perfeita entre nosso masculino orgulho provinciano e nossa feminina voca-ção expansionista. Quando a encontrarmos, refundaremos nossa República, sob novas bases, mas sempre mantendo a má qualidade dos banheiros. É o que os acadêmicos guascas chamam de vigilância epistemológica ou, como dizem os grossos: Não te fresqueia, guri, que o Guaíba é um rio.*Carlos Gerbase, 41, é cineasta, foi baterista da banda punk Replicantes e compositor do clássico hit Surfista Calhorda. Diretor de vários curtas superpremiados e do longa Verdes Anos. Seu filme mais recente, Tolerância, entra em cartaz este mês nas principais capitais do país
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