Ontem criei coragem. Falaram tanto, eu sou tão tímido e preso a preconceitos pessoais tão absurdos... Mas estava determinado: dessa vez eu faria o exame. É importante, eu estava convencido daquilo. E, estava sentindo umas coisas estranhas, uma incontinência urinária, umas dores no baixo ventre que eu não sabia o que poderia ser. Falei com amigos e vários me aconselharam o exame: “para desencargo de consciência”, diziam. Relutei, fiquei pondo crítica, fazendo piada com o dedo do médico e brincando com coisa séria. Mas agora era para valer, e ali estava eu, pronto para o sacrifício.
Na portaria uma moça que ficou muito bonita vestida de branco (não podia deixar de ver), perguntou primeiro sobre o plano de saúde, depois número do meu CPF, qual seria a forma de pagamento (crédito ou a vista), o provedor do meu cartão de crédito, endereço e, por fim, meu nome. Expliquei: já estava agendado para ser examinado pelo médico. Ela quis saber qual era o médico e, assim meio envergonhado, acabei dizendo que era o protologista. A moça ergueu os olhos e havia algo de piedoso em seu olhar: pelo menos a mim pareceu. Eu não sabia se brigava com ela ou saia andando dali. Ela percebeu meu embaraço e, treinada, segredou-me que todos ali estavam para serem examinados pelo Dr. Raul, com o mesmo objetivo que eu.
Fui para a sala de espera nada aliviado e fiquei aguardando ser atendido. Havia seis pessoas na sala. Duas mulheres grávidas, dois senhores em idade próxima à minha (61 anos) e dois rapazes. O diálogo aconteceu naturalmente, por força das circunstâncias; estávamos todos meio que assustados e não sabíamos como seria aquele exame. Claro, imaginávamos horrores. As mulheres iriam fazer exames das hemorroidas, eu e os dois senhores faríamos exame da próstata. Um dos rapazes não quis dizer. Respeitamos, mas ficamos curiosos: o que poderia ser de pior que prevíamos? O outro sentia dores como eu e não sabia ao certo que tipo de exame faria, mas podia imaginar e temia. Rapidamente formamos um grupo, não muito coeso, mas assim mesmo um grupo. Grupo daqueles que iriam seriam examinados com suspeitas de doenças das mais bravas. Câncer, por exemplo. Até o rapaz tentou um sorriso amarelo para nós.
Era mais preconceito que qualquer outra coisa. Sabíamos que o médico não permitiria que nada doesse, mas algo em nós estremecia ao pensar no momento do toque. A própria palavra “toque” já era estranha. Soava como uma facada, uma agressão violenta. As duas mulheres já eram descoladas nisso de “toque”. Mas ainda sentiam-se profundamente constrangidas até em falar sobre aquilo. Fiquei pensando que a intimidade era algo que devia ser respeitada; essas doenças não podiam acontecer...
A enfermeira chamou uma das moças. Seguiu atrás daquele enorme barrigão... Ficamos ali tentando continuar a conversa, mas não dava; havíamos dito todas as palavras possíveis entre estranhos. A espera foi angustiante; inúmeras vezes olhei a porta querendo que se abrisse logo. Quando ela saiu, cada um de nós respirou fundo e torceu para não ser o próximo. Ela nos disse, assim rápido, arrumando suas coisas, que fora tudo bem e que era tranquilo. Mas não sorriam; podíamos sentir havia algo preso dentro dela. Um dos velhos foi o próximo chamado para a forca. Foi a passos lentos; nada seguros. Saiu, depois de nós todos havermos suado bastante, preocupados. Um dos rapazes foi chamado. E demorou quase um século inteiro até que saísse. E voltou ao corredor cabisbaixo, assim concentrado, sem nem nos enxergar. Estava longe. Pensei: Nossa! Que será que aconteceu com o rapaz? E ai meu nome surgiu na boca da moça bonita de branco. Algo em mim retesou-se todo. A tensão baixou como um santo em terreiro de candomblé, em forma de suor e medo. Deu a maior vontade de sair andando daquele lugar. Mas, havia pago e não fora barato. Por conta disso fui obrigado a seguir em frente: misturando temor com coragem fui caminhando para o cadafalso.
O Dr. Raul mostrou-se muito simpático. Tranquilamente foi conduzindo o exame, como se aquilo fosse a rotina mais corriqueira do mundo, e eu entrei na dele. Não doeu nada, apenas uma sensação desconfortável que me causava enorme vontade de sair logo dali. Ao fim e ao cabo, fiquei esperando a sentença de morte que não veio. Dr. Raul não sentira nada em minha próstata. Afirmou que meu órgão estava sadio e produtivo como uma fábrica. Contei-lhe das dores e sensações estranhas. O médico receitou um remédio e foi me colocando para fora do consultório. Eu já fora atendido e estava agradecendo demais. Sai necessitando compartilhar. Eu estava quase certo de estar realmente muito doente; pensava em câncer e que já estivesse a ponto de morrer. Sai na rua querendo dar notícias, falar com o poste, cesto de lixo, qualquer coisa que estivesse parada para me ouvir. Não chegara minha hora, não fora decretada a minha sentença de morte e, mais uma vez, eu estava feliz só por isso.
Já hoje, após tomar o remédio por mais de 24 horas, sumiu a dorzinha chata que estava sentindo no pé da barriga e eu estou muito bem, obrigado.
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