A rua é púbica
Nossa reportagem encontrou o célebre “Pintudo de Barcelona” e ficou chocada com o que viu: Esteban estava vestido
Famoso pelo prosaico fato de circular pelado pelo centro de Barcelona, o cozinheiro Esteban Ejarque foi vítima da onda conservadora que varre a Europa. Nossa reportagem encontrou o célebre “Pintudo de Barcelona” e ficou chocada com o que viu: Esteban estava vestido!
Habitada por uma fauna de artistas de rua, bêbados, golpistas e prostitutas, a via pedestre de Barcelona, conhecida como Las Ramblas, é a artéria turística da cidade. Entre 2006 e 2010, porém, nenhum atrativo foi páreo para o cozinheiro aposentado catalão Esteban Trancón Ejarque, 67 anos. Serenos olhos azuis, cabelos e barba brancos, ele cruzava os 2 quilômetros da rua (visitada diariamente por 225 mil turistas) a passo lento, portando apenas um boné, sandálias e um saco plástico nas mãos. E nada mais no resto do corpo. O impacto era duplo pelo aspecto de seu corpo, decorado com 21 tatuagens, e o tamanho de sua... er... tromba. Sim, tromba, porque os mais de 20 centímetros de pênis conectam-se a uma tatuagem de elefante e... o resto as fotos mostram. Completa o painel traçado à agulha uma célebre sunga tingida na bunda, um conjunto de andorinhas espalhadas pelo tronco – em tributo à liberdade – e o símbolo do Barça no peito, entre outras figuras.
Naturista de praias desde adolescente, nosso afável senhor começou a prescindir das roupas no asfalto quando descobriu que tanto as leis municipais quanto as catalãs e espanholas assim o permitiam. Enturmou-se com outros cidadãos que exerciam a prática e chegou a sair em grupinho pelas Ramblas e outras zonas turísticas, como a igreja da Sagrada Família e a chique avenida Passeig de Gràcia. Rapidamente, porém, lançou carreira solo. Acordava, saía do apartamento no bairro central de Sant Antoni, escondia as roupas em um cano de esgoto e ia bater perna sozinho com o pinto de fora.
Na sacola, além de água, documentos, sanduíche, remédios e cigarro, Esteban levava uma cópia do artigo da lei que lhe reservava os direitos. Desde sua primeira saída sem roupas, guardas o abordavam e, ocasionalmente, o agrediam (processou três deles); julgado seis vezes em processos abertos por oficiais desinformados, foi absolvido em todos.
A transformação em celebridade da internet era inevitável. O bem-dotado herói diz ter sido fotografado 15 mil vezes, e a expressão “naked man Barcelona” aparece no Google 1,3 milhão de vezes. Até que o sonho acabou.
Em 29 de abril de 2011, o PSC (Partido dos Socialistas da Catalunha), formação centro-esquerdista até então tolerante aos pelados metropolitanos, pactuou com a outra força política local, o partido mais conservador CiU (Convergência e União), na criação de lei que os penalizasse com multa de 120 a 500 euros.
Nudismo ou seminudismo (calção, biquíni etc.), a partir de então, só seriam permitidos nas praias ou piscinas, onde ainda é algo totalmente normal – lembre-se que a relação dos europeus, sobretudo a dos mediterrâneos, com a nudez é bastante bem resolvida.
Com a proibição, Esteban voltou a vestir-se em período integral. Desde então, é um homem invisível. Como não tem telefone fixo, celular ou e-mail, consultei veteranos de Las Ramblas para achá-lo. A resposta mais animadora foi um “há muitos meses que não o vejo”.
Ao ser, por fim, localizado, o misterioso cavalheiro grisalho jurou que continua caminhando por ali várias vezes por semana. Ou seja, tornou-se irreconhecível quando vestido até para quem o conhece há anos.
A cara da nova europa
A anedota faz da saga de Esteban um prato cheio para teóricos da guinada não apenas espanhola mas europeia ao conservadorismo, fomentada pelas dificuldades financeiras e pela ascensão de políticos de direita. Nu no exercício de suas liberdades individuais, ele era, além de uma espécie de pop star das redes sociais, o retrato da Barcelona moderna, quase utópica, das últimas três décadas. A cidade superou, rapidamente, os 36 anos de trevas, atraso e carolagem da ditadura de Franco (1939-1975), tornando-se referência mundial de tolerância, diversidade e respeito ao indivíduo e às diferenças.
Segundo Esteban, sua “peladeza” era uma resposta ao sofrimento que o acompanhou em boa parte de sua vida. Perdeu a mãe no nascimento, apanhou de “educadores” no colégio interno, a irmã morreu cedo de câncer, nunca se entendeu bem com o pai...
“As outras pessoas podem fazer o que quiserem, então que me deixem fazer o que eu bem entender”
Despido forçadamente de sua nudez, ele nos dá um banho de realidade da Espanha 2012, em crise e com o astral na sola do pé: veste a mesma combinação de calça, camiseta e chinelo nos dois encontros, exibe os dentes em péssimo estado e cheira mal.
Conta que sobrevive com míseros 357 euros por mês da aposentadoria e 104 de ajuda do governo catalão. Divide apartamento com outras quatro pessoas e almoça todo dia no bandejão gratuito da vizinhança. Da bolada de 800 mil euros que ganhou na loteria em 1985 – que o fizeram largar o trabalho por quatro anos –, teve mais da metade garfada por um advogado mal-intencionado, e do resto já não sobra um tostão há muito tempo.
Entretanto, o que mais revolta este sexagenário é a supressão de seus direitos. “Eu me sinto discriminado”, desabafa à Trip. Demonstra certa articulação, mas emenda uma ideia na outra de forma desembestada e difícil de acompanhar. Nada a ver, assegura, com o derrame cerebral que sofreu no ano passado, do qual se diz recuperado. “Eu dizia aos juízes: ‘Não sou eu que estou pelado, os demais é que estão vestidos!’”, continua. “Acho que outras pessoas podem fazer o que quiserem, então que me deixem fazer o que eu quiser!”
Esteban garante que o tratamento que recebia da maioria das pessoas oscilava entre a normalidade e a admiração. Relembra as centenas de vezes nas quais crianças, casais ou famílias inteiras posavam a seu lado em fotografias e conta que até um grupo de integrantes da polícia da Catalunha o tietou dessa maneira quando o chefe não estava por perto.
Solteiro e solitário, sem filhos ou outros parentes, Esteban diz que só namorou quando o dinheiro da loteria ainda abundava. Desconfia não só de gente interesseira como também da possibilidade de liberdade em um relacionamento. “A liberdade total mesmo, como define a Constituição, não há.”
Liberdade ou exagero?
A história de Esteban suscitou interessantes discussões tanto sobre os limites das liberdades individuais quanto em relação à conotação política do direito à nudez urbana.
“Não é que houvesse um problema de ordem pública, com centenas, ou sequer dezenas, de pessoas passeando peladas”, analisa Emma Riverola, escritora e colunista do jornal catalão El Periódico. “Era algo que se enquadrava como opção pessoal e era respeitado dessa forma.” Para Emma, nas épocas de dificuldades e medo, como a que a Europa enfrenta hoje, a tendência é a sociedade se tornar mais conservadora. “As novas gerações europeias têm uma relação menos natural e espontânea com o corpo.”
Mesmo sendo naturista nas horas livres e autor do livro A Brief History of Nakedness (em livre tradução, Uma breve história da nudez, sem lançamento no Brasil), o psicólogo, escritor e druidista inglês Philip Carr-Gomm pensa diferente. “Sou contra a nudez em certos lugares, como em uma cidade, porque isso nos privaria da maravilhosa sensação de estarmos pelados na privacidade de nossa casa, no jardim etc.”, argumenta. “Não importa o quanto amamos nossos colegas seres humanos, o problema da nudez na cidade é que nem todos gostariam de roçar os corpos nus de estranhos.”
Segundo Jacint Ribas, que em 1976 fundou o Clube Catalão de Naturismo e hoje preside a Associação para a Defesa do Direito à Nudez, Barcelona “está voltando para trás”. “Estão tirando sarro de nossa cara, é ridículo e sem sentido”, brada Ribas, segundo nudista mais famoso da cidade, que percorre nu até 20 quilômetros diários em uma bicicleta. “Fui até votar assim duas vezes.”
O peladão ciclista também já foi parar em delegacias e, igualmente, terminou absolvido em um julgamento. Reclama das campanhas de alguns jornais pela nova lei e, tal qual Esteban, a considera anticonstitucional por passar por cima do Código Penal espanhol, que não cataloga a nudez como delito. Ribas promete ir ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em Estrasburgo, França, para poder continuar pedalando com a bunda em contato direto com o selim.