A rua é de ninguém
Após quase atropelar um carrinho de bebês, J.R. percebeu que as ruas são terra de ninguém
No dia em que quase atropelei um carrinho de bebês gêmeos empurrado por uma babá, percebi que nossas ruas perderam sua função original, viraram terra de ninguém
Aconteceu numa tarde ensolarada. Uma rua de bairro, calma. Árvores, casas com muros altos e câmeras de segurança apontando mudas para o vazio. Estava dirigindo devagar, procurando o endereço de um amigo meu. Depois de uma curva fechada tomei um susto. Andando em minha direção, pelo asfalto, vinha um carrinho de bebês gêmeos empurrado por uma babá. Ultrapassavam outro carro estacionado. Por sorte a velocidade em que estava era muito abaixo da média permitida. Isso nos salvou de uma desgraça.
Na hora, depois da brecada e do puta susto que tomei, pensei que andar pelo asfalto fosse uma estupidez da moça. Bastou uma fração de segundo para compreender que ela não tinha outro jeito para seguir em frente em seu passeio. O pedaço de calçada que ela contornava tinha vários degraus, um poste e uma árvore. Entre o poste e o muro das casas – entre a árvore e o muro das casas também – mal passava uma pessoa, quanto mais um carrinho duplo.
Penso que as ruas deixaram de existir de acordo com a função original. Um lugar dividido entre pedestres e meios de locomoção, para possibilitar a movimentação de indivíduos dentro de uma cidade. Repare como, fora das grandes avenidas, a tarefa de se deslocar de um lado a outro a pé é árdua e cheia de obstáculos. Degraus, buracos na calçada, lixeiras, guaritas de segurança, lixo. Faça o teste: tente andar 500m em seu bairro sem descer da calçada. Pelo menos em São Paulo, missão impossível. Esta nem Tom Cruise conseguiria, nem mesmo pendurado naqueles fios.
No man's land
Recentemente foi inaugurada, na Pinacoteca de São Paulo, a exposição da coleção Brasiliana do Itaú. Vendo algumas das aquarelas e litografias de Rugendas e Debret, que retratam costumes e usos na época do Brasil império, é possível contemplar como as ruas do Rio de Janeiro eram tratadas. A sensação que se tem, mantendo as proporções, é que o conceito da via pública como lugar onde tudo é possível não mudou muito.
Em uma guerra, o espaço que existe na frente de batalha entre os inimigos e que ainda não foi conquistado por nenhum dos dois lados se chama “no man’s land”, terra de ninguém. E é precisamente nisso, uma terra de ninguém, que as ruas da grande cidade se converteram nessa batalha surda e muda entre o descaso de todos. Não consigo me animar e sonhar com conceitos como sustentabilidade, ciclovias onde ciclistas exibem seu capacete novo e outros trending topics de hoje em dia se as ruas – o ponto, o espaço de união e comunicação entre as pessoas – não existem como tal. Se elas se converteram em um lugar onde tudo pode acontecer e ninguém se sente responsável.
A rua, que deveria ser de todos, aparentemente não é de ninguém.
*J. R. Duran, 55, é fotógrafo e escritor. www.twitter.com/jotaerreduran