A revolução será impressa
Kalle Lasn, o homem que toca a revista que fez milhares de ativistas ocuparem praças do mundo todo
Aos 71 anos, morando isolado no campo, este homem toca a revista que fez milhares de ativistas ocuparem Wall Street e praças do mundo todo. Conheça Kalle Lasn e a Adbusters
Cerca de 30 anos atrás, Kalle Lasn sofreu uma epifania em um estacionamento de supermercado. O motivo: para usar o carrinho de compras, era preciso inserir uma moeda de 25 centavos na máquina. Chocado pela primeira vez com o fato pueril, ele enfiou a dita-cuja com tanta força que acabou quebrando o dispositivo.
Foi apenas uma das várias lutas de Kalle contra a máquina – não a do supermercado, mas a maior delas, que faz as engrenagens do status quo girarem. Sua arma é a Adbusters (algo como “Caçadores de propagandas”), revista que criou em 1989. As páginas são recheadas de subvertisings (anúncios subvertidos) – Joe Camel, o mascote dos cigarros Camel, por exemplo, vira Joe Chemo, em alusão a chemotherapy (quimioterapia). Slavoj Zizek, Noam Chomsky e outros bambambãs da filosofia e das
ciências políticas contemporâneas são colaboradores frequentes. A direção de arte anárquica (uma edição foi toda feita com imagens em baixa resolução, deixando tudo pixelado) é hoje objeto de estudo em faculdades de design.
Não há seções fixas nem anunciantes. A revista se sustenta com a venda em bancas, assinaturas (a circulação hoje bate a casa dos 120 mil exemplares) e outros produtos comercializados pela Adbusters Media Foundation, como livros, DVDs e até tênis.
De sua discreta redação em Vancouver, no Canadá, saíram ideias para movimentos que ganharam o mundo, como o TV Turnoff Week, o Buy Nothing Day e, o mais impactante deles, Occupy Wall Street. Embora não assuma sua paternidade, a Adbusters foi autora do primeiro pôster convocatório para a ação (uma bailarina dançando em cima da estátua de touro, símbolo do centro financeiro, com os dizeres: “Qual a nossa única demanda?/ #OccupyWallStreet/ 17 de setembro/ Traga barraca”) e da hashtag que inundou as redes sociais.
Desfeitos os acampamentos em Zucotti Park, a resposta para a pergunta que o pôster colocava continua no ar. Mas seus efeitos ainda reverberam pelo planeta. “Occupy foi o começo de algo muito profundo. Foi a prova de que os jovens perceberam que, se não lutarem, não terão um futuro”, diz Kalle, por telefone.
O senhor revolucionário, no entanto, não dormiu na praça. Permaneceu em sua chácara com árvores, horta e lago, localizada a 50 quilômetros de Vancouver, onde mora com Masako Tominaga, sua mulher, um pastor-alemão e a sogra – visitando o casal, há cinco anos, ela sofreu um derrame cerebral, que paralisou metade de seu corpo e a impediu de voltar para casa. “É como se eu tivesse duas vidas. A de militante e a de homem do campo. Adoro plantar, faço compostagem”, conta. Ele só vai à redação de três a quatro vezes por semana, sempre à tarde.
Nascido em Tallinn, na Estônia, há 71 anos, Kalle tem idade para ser avô da maioria de seus seguidores. “Com dois anos, morei em um campo de refugiados na Alemanha. Vi a Segunda Guerra, o Maio de 68, a Guerra do Vietnã... Vi muita coisa nesta vida. Tive várias pequenas epifanias que me levaram a quebrar aquela máquina naquele dia e me tornar um ativista”, rememora, com a voz animada como a de um garoto.
A seguir, Kalle quebra tudo de novo:
Na época, Occupy Wall Street parecia uma revolução. Hoje há quem diga que seus efeitos se diluíram. O que você acha?
OWS foi o começo de algo muito profundo. Foi a prova de que jovens do mundo todo perceberam que, se eles não levantarem e lutarem, não terão um futuro. Pegamos todos – esquerda e direita – de surpresa. Foi o surgimento de uma nova esquerda. Ela não tem nome ainda, nem cara. Mas talvez não precise de nenhuma das duas coisas. Ela não é vertical, como a esquerda antiga era. Sabe usar as mídias sociais, tem filosofias novas. Estamos diante de um novo jeito de fazer ativismo.
Por que precisamos de uma nova esquerda?
Porque a antiga é ineficiente. Por isso que a Adbusters e os movimentos criados por ela cresceram tão rápido. Ela carece de criatividade. Nos anos 60, ela era cool, vibrante, dominava o discurso. Era inspiradora. Depois, perdeu o fio da meada, principalmente depois do colapso da URSS. Gritam os mesmos slogans, insistem nas mesmas lutas. Sempre falamos isto na revista: “Precisamos passar por cima do cadáver da velha esquerda”.
E esse novo ativismo deixa você otimista?
Não tanto quanto gostaria. Acho que outros big bangs como OWS virão, mas ainda estamos na defensiva. Pussy Riot, Espanha, Grécia... estão todos na defensiva. Há a sensação de que algo grande aconteceu, mas agora ninguém sabe muito bem o que fazer. Por outro lado, vejo um grande colapso no horizonte, uma crise financeira, ambiental e psicológica que pode durar anos. Em 1929 [ano da Grande Depressão], havia petróleo, peixes no mar e a Amazônia para nos ajudar a nos reerguer. Da próxima vez, não teremos no que nos apoiar.
"Acredito no poder dos jovens de se erguerem e inventarem uma transformação radical na política, na ecologia, no jeito que consumimos, que lidamos com as corporações e com os bancos. Acho possível que haja esse momento de singularidade, de verdade plena"
Vamos para o buraco então?
Espero que não. Ainda acredito no poder dos jovens de se erguerem e inventarem uma transformação radical na política, na ecologia, no jeito que consumimos, que lidamos com as corporações e com os bancos. Acho possível que haja esse momento de singularidade, de verdade plena.
Naomi Klein (autora do livro Sem logo) criticou a Adbusters dizendo que ela detona o sistema replicando estratégias dele, como quando lançou uma linha de tênis própria, a Blackspot Shoes. O que você acha disso?
Um monte de gente não entendeu o Blackspot Shoes. Por anos, o discurso da esquerda era de que não podemos usar Nike, pois eles são feitos com mão de obra escrava na Ásia. Pois bem. Em vez de tentarmos fazer a Nike mudar de ideia em relação a sua cadeia produtiva, preferimos fazer nossa própria marca, que operasse de forma justa e responsável. Mas a esquerda não gosta de marca. Na verdade, ela não gosta de fazer coisas. Só gosta de criticar. Por que não podemos ter nosso próprio café, nossa música, nosso tênis?
O design é muito importante na Adbusters. A revolução tem que ser bonita?
Não gosto de dividir forma e conteúdo. Para ser poderoso, um conceito deve ser bonito, inspirador. Se você é chato, só usa o alfabeto para transmitir sua mensagem, ninguém vai te escutar. Gosto de acreditar que somos pioneiros de uma nova estética. Ela é mais emocional, jazzy, espontânea. Se você quer mudar o mundo, tem que mudar a cara dele. A estética imperante hoje é clean, como as propagandas. Precisamos fazer arte de outro jeito, mudar a sensação de entrar numa loja, numa banca de jornal. Isso é, talvez, a luta mais importante para mim.
Qual a próxima campanha da Adbusters?
Nosso objetivo agora é mudar as bases da teoria econômica. Por isso o livro Meme wars [veja mais abaixo]. Ah, também estamos pensando em fazer acampamentos em frente a todas as 73 sedes do Goldman Sachs, um dos maiores bancos de investimento do mundo.
É isso meme!
Meme wars, último lançamento da Adbusters Media Foundation, ganhará uma versão brasileira. O livro disseca – e derruba – as bases da teoria econômica neoclássica, tida como responsável pela crise planetária atual. Mais que isso, indica o caminho para a criação de um novo paradigma econômico, capaz de levar em conta aspectos psicológicos e ambientais, quase sempre deixados de lado por economistas. Tal qual na Adbusters, o visual é riquíssimo. Seu maior objetivo, diz Kalle, é “dar um passo além de OWS, formar economistas com o pé no chão”. Dentre os pensadores que colaboraram com textos, está o americano ganhador do Nobel Joseph Stiglitz.
A edição made in Brasil será independente. Bruno Torturra Nogueira, repórter especial da Trip, assina a edição, e o designer Pedro Inoue, também colaborador da casa e da própria Adbusters, cuida da arte. A ideia é distribuir exemplares em universidades, vender pela internet e nas sedes da Casa Fora do Eixo, parceira na empreitada. O lançamento oficial será no Emergência, encontro de redes de ativismo e comunicação que acontece no mês de agosto em São Paulo.