A pílula do esquecimento

Cientistas pesquisam um remédio que apague lembranças traumáticas. Mas ainda seremos nós mesmos sem nossas dores? Na dúvida, estou fora

por Luiz Alberto Mendes em

Por Luiz Alberto Mendes*

Para muitos cientistas, o aspecto mais notável da memória é o mecanismo do esquecimento. Esquecer é tão ou mais importante que lembrar ou pensar. Esquecemos para poder pensar, para poder viver. Uma recente pesquisa do psiquiatra Roger K. Pitman, da Universidade de Harvard, com sobreviventes de acidentes graves de carro e o medicamento Propranolol, que inibe a liberação de hormônios relacionados ao stress, apresentou resultados otimistas. As vítimas apresentaram sensíveis sinais de melhora da síndrome de stress pós-traumático. A química não apagou as lembranças, mas os pacientes se mantiveram em um nível emocional idêntico ao de alguém que testemunhasse o ocorrido. O impacto foi “amaciado”.

A ciência discute hoje a possibilidade do esquecimento terapêutico. A pílula do esquecimento. Um gerenciador de crises emocionais traumáticas. A química teria que atingir a amídala cerebral antes que a memória traumática se estabelecesse. Um dia poderia ser demais. Lembranças que supostamente causam mal seriam extirpadas qual tumor maligno.

Como somos o conjunto de nossas memórias, suprimir lembranças que causem dor excessiva não seria nos alterar? Não precisamos dessas lembranças, por mais doloridas, para sermos nós mesmos? Por outro lado, cientistas afi rmam que ninguém é a mesma pessoa o tempo todo. As nossas experiências nos transformam, seremos alterados de qualquer forma, afi rmam eles. Por que não alterar as memórias para deixar de sofrer? Mas alterá-las propositalmente não seria extrapolar? Meu medo é que isso vá dar em uma espécie de Laranja mecânica ou algo assim.

Nosso cérebro não é apenas um computador pronto a receber informações, processá-las e dar respostas. Não podia ser tão simples. Os pesquisadores informam que o cérebro está sempre lembrando o que aconteceu; relembrando passos de nossas perdas e ganhos; reavaliando e retraçando novos passos. Eles deixam claro que os maiores venenos para a memória são a rotina e o stress. O excesso de previsibilidade desestimula associações cerebrais. Excesso de informações e acúmulo de trabalho bloqueiam o processamento das informações.

Para desatolar o cérebro de arquivos inúteis e conseguir mais agilidade no processamento das informações (objetivo máximo da atualidade), os médicos prescrevem atividade física, alimentação adequada e correr de rotinas estressantes. Quase uma impossibilidade na vida moderna. O tempo vai sendo acelerado e os espaços de tempo para tais medidas vão sendo diminuídos.

AFASTE DE MIM ESSE CÁLICE
Procurei pesquisar o que nos recomendam de mais prático os especialistas. O máximo de concentração possível no que estiver fazendo. Parece conselho zen. Sexo prazeroso, segundo eles, mantém o cérebro vivo. Voltar a lembranças do passado, mas como exercício. Ser sociável. O relacionamento exige muito da memória humana, e a mente carece de vida rica em estímulos. Quebrar rotinas, inventar novas rotas, novos hábitos, viajar: a novidade é a essência do vigor cerebral. Reconstituir as lembranças do dia antes de dormir também é um ótimo exercício. Dormir bem: é durante o sono que as informações se instalam no cérebro e o espaço interior é liberado para novos aprendizados. Há cientistas afi rmando que um bom cochilo (cerca de 40 a 50 min de sono) após cada série de aprendizados deveria ser incluído no currículo das escolas.

Para mim, o maior estímulo para a memória é a leitura. Porque, além de ativar a memória das letras, a memória verbal e a memória da imaginação, ainda atualiza, ajuda profi ssionalmente, dá prazer e faz bem. E, com certeza, não quero esquecer nenhuma de minhas dores. Esquecer é me condenar a cometer os mesmos erros que já me fi zeram sofrer tanto. Afaste de mim esse cálice; já o sorvi até o fundo.

*LUIZ ALBERTO MENDES, 56, autor de Memórias de um sobrevivente, não quer tomar a pílula do esquecimento, mesmo depois de ter passado 31 anos e 10 meses na prisão. Seu e-mail é lmendes@trip.com.br
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