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A morte nossa de cada dia

Eu comecei o dia 18 de agosto passado fazendo aquilo que Hegel chamou de “a oração matinal do realista”. Ler o jornal. E, lendo, meus olhos ainda embaçados pela névoa interior da manhã logo bateram na menor manchete da primeira página da Folha: “Poluição mata oito por dia em São Paulo”.

Minha reação imediata foi talvez igual à tua, agora. Um levantar de sobrancelhas, a um só tempo curioso e incrédulo. Não. A manchetinha é um erro tipográfico. Escreveram errado. Ou escreveram no tamanho errado. Se a poluição mata oito seres humanos por dia numa cidade, que outra manchete do maior jornal da própria cidade poderia ser considerada mais importante?

A primeira página da Folha considerou duas vezes mais relevantes, em centímetros quadrados, os seguintes tópicos: “Personal (trainer) invade a vida cotidiana”, “Polinésia seduz com cenário exuberante”. Ou, ainda, oito vezes mais relevante: “Judeu mata quatro palestinos e eleva tensão em Gaza”.

Com a tensão excepcionalmente elevada para o horário que segue os sonhos, mergulhei no suposto realismo do corpo do jornal. A matéria sobre a poluição, que tinha origem em um estudo da Universidade de São Paulo, não estava nem na capa do caderno Cotidiano. Preferiram outra reportagem: “Galpão clandestino explode e dois morrem”.

Que tipo de lógica dá prioridade à explosão de um galpão em Osasco, diante da notícia aterradora de que, todo dia, oito paulistanos perdem a vida num suspiro poluído? Essa “lógica” é a lógica do espetáculo. A poluição não rende uma história sensacional. Não rende uma imagem, nem mental, de impacto. E vai para o fim da fila. O espetacularismo de variados graus é um pilar do contrato pactuado entre o espectador e o veículo, desde sempre. De El Cid a Cid Moreira. O público clama por catarse, tanto num belo documentário como Ônibus 174 quanto no Cidade Alerta.

 

VIOLÊNCIA DEMOCRÁTICA
Seria simplório culpar os editores da Folha, que têm inclusive o mérito de dar alguma importância à notícia e, repetidamente, à questão ambiental. O problema é que quanto mais midiatizadas as relações sociais mais simbólicos tornam-se os valores. E aí, como dizia o Robô do seriado Perdidos no Espaço, “perigo, perigo”. Tá na hora de voltar para a Terra. Não dá para continuar achando que, hoje, na prática, o terrorismo da Faixa de Gaza atinja mais um brasileiro que a fuligem da faixa do ônibus.

A inversão não se restringe ao abandono daquilo que realmente importa a um canto de primeira página. Até um tamanduá sabe que vivemos uma negação mais ampla do suicídio ambiental. Negação compreensível, já que o que mata as oito pessoas é a fumaça não inspecionada que sai do meu carro. E do carro delas mesmas. Ou não?

Segundo o estudo da USP, a poluição tira em média dois anos da vida de cada habitante da São Paulo. Ao desmerecer, ridicularizar ou cafonizar a luta contra o descontrole ambiental negamos que ele é a forma mais democrática de violência.

O mesmo estudo diz que há uma diminuição no número de mortes. Já foram 12 por dia na década passada. É uma luz. Talvez todo Severino Cavalcanti tenha um Fernando Gabeira enrustido dentro de si. De tanga de crochê de cânhamo potencial. Célula ecoterrorista adormecida em algum lugar do mundo interior, pronta para defender o planeta exterior.

Espero que os severinos descubram logo seus gabeiras internos. E na tentativa de acelerar esse processo, de acordar-nos todos da anestesia aplicada pela própria poluição física e metafísica que caracteriza nossa época, proponho, alarmista, uma manchete garrafal para a Folha. “Ladrão invisível rouba 730 dias da vida de cada paulistano”. Não dá para não ver.

*CARLOS NADER, 41, É VIDEOARTISTA E, COMO TODOS OS PAULISTANOS, E OS DEMAIS PARCEIROS De PLANETA TERRA, RESPIRA 20 MIL VEZES POR DIA. SEU E-MAIL É: CARLOS_NADER@HOTMAIL.COM

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