A maior viagem

Acreditamos que a morte deva estar mais perto dos nossos olhos para vivermos mais e melhor

por Paulo Lima em

 

O surf ensina muito a quem está a fim de aprender. Ele, em sua forma pura, uma manifestação límpida e evidente de vida, ensina sobre coisas variadas. Inclusive sobre a morte. Mostra a todo tempo nossa fragilidade diante das forças que nos rodeiam, nos lembra que ela está por perto e assim nos faz fruir mais e melhor os momentos vividos. O surf também ensina a viajar, a ir além, a procurar o desconhecido e a encará-lo como a perspectiva de algo maior e melhor, deixando o medo num compartimento muito pequeno e quase inacessível da bagagem, junto ao kit de sobrevivência.

 

Por conta do surf, fui parar na Indonésia no fim da década de 80. Para nós, àquela altura, a região era um absoluto penetrar no desconhecido. A geografia surpreendia, a cor das pessoas, os cheiros, as oferendas e a espiritualidade farta, as ondas verdes com o Sol se pondo por trás do horizonte e quase cegando quem insistia em encará-lo, ainda que filtrado pelas paredes de água salgada.

Havia por ali um tipo de sorriso também diferente. Parecia imotivado, não era fruto de alguma conquista ou superação, era um fruir permanente da alegria de estar ali, vivo, existindo. Não sou exatamente do tipo de pessoa que cai encantada diante das civilizações e crenças exóticas aos nossos olhos, que se derrama em deslumbramento ao primeiro sinal de algo que destoe daquilo que vemos em nosso mundo cotidiano. Não formo no grupo que volta com trancinhas do Caribe ou recitando mantras no desembarque da excursão à Índia. Um pouco ao contrário até, a profissão de fazer perguntas e observar com a atenção e o distanciamento possíveis os assuntos ligados ao chamado “comportamento humano” desenvolve uma espécie de ceticismo. Talvez não exatamente uma descrença, e sim uma crença na essência que faz com que os seres humanos e todos os vivos, numa concepção um pouco mais ampla, sejam apenas representações diversas de uma mesma consciência. Mas, digressões à parte, havia realmente ali algo a ser entendido.

CARNAVAL DE INTERIOR

Entre andanças pelas ruas e peregrinações às praias mais afastadas, aqueles sorrisos originais e espontâneos iam revelando coisas que ainda não faziam muito sentido isoladamente. Me lembro de um dia em que, vestindo uma camisa com os botões do alto abertos, tive que parar diante de duas pessoas que me olhavam sorrindo aquele mesmo sorriso. Elas aproximaram suas mãos do meu peito, indicadores e dedões em forma de pinça, e puxaram levemente, entre analisando e acariciando os pelos do meu peito. Sorriram mais, sem deboche ou cinismo, apenas expressando o fascínio pelo desconhecido.

Uns dias depois, pelas mesmas ruas, vi uma espécie de cordão festivo que se aproximava, com pessoas cantando, vestidas com cores fortes, tocando instrumentos, dançando e andando na mesma direção, interrompendo o fluxo mega-alucinado de carros, motos e bicicletas.

Era irresistível chegar perto. A associação inicial era com o que conhecemos como celebrações de Carnaval. Não aquelas maiores, mas um Carnaval de cidade de interior, desses mais simples, que acontecem aos milhares pelo Brasil. Fui chegando perto e observando as oferendas, comidas, danças e, mais do que tudo, aqueles sorrisos que me intrigavam, agora em versões ainda mais rasgadas e expressivas. Só depois de algum tempo vi que se tratava de um enterro, uma espécie de procissão funerária. Parentes, amigos e passantes celebravam a transcendência da pessoa falecida. E o faziam da forma mais verdadeira e espontânea que se possa imaginar.

Há, especialmente em algumas filosofias nascidas no Oriente, a ideia de que choramos ao chegar ao mundo porque de alguma maneira pressentimos a angústia que nos espera e que, por isso mesmo, deveríamos sorrir e celebrar ao partir. O que sei é que um tempo depois de voltar daquela viagem, passando por uma calçada de São Paulo, vi um corpo coberto por folhas de jornal. Uma mãe que passava por ali tapou os olhos da criança que trazia pelas mãos, como que “protegendo” a filha de uma visão chocante e assustadora. Será que temos medo da morte ou da transcendência que ela sugere?

De alguma forma, esta foi a inspiração para a primeira edição da Trip dedicada à morte. Desde a escolha do nome da nossa revista, há 23 anos, até o desenho da arquitetura editorial que a representa, o mesmo gosto verdadeiro pelo desconhecido e uma quase necessidade de buscá-lo e vivenciá-lo nos levaram a tratar nesta edição daquela que talvez seja a maior aventura.

Olhar para a morte com leveza, com interesse verdadeiro, sem filtros e sem deixar a emoção e até a dor de fora, foi o que tentamos fazer, claro, observando todas as nossas limitações, inclusive as de espaço.

Talvez a morte seja mesmo, como diz a psicanálise clássica, o supremo redutor de tensões. Mas acreditamos que ela deva estar mais perto dos nossos olhos para vivermos mais e melhor e, também, que ela possa ser a maior viagem.

Paulo Anis Lima, editor

P.S. Nesta edição, você conhece os 13 homenageados do Prêmio Trip Transformadores 2009, que traz novidades em seu formato neste terceiro ano, mas mantém a essência de jogar luz sobre o trabalho de pessoas que realmente fazem a diferença e de estimular a troca de vivências e ideias entre elas.

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