A era da obesidade
A fome sempre será um problema, mas a grande crise de nosso tempo é a do empanturramento global, afirma nosso homem-radar. Não estamos conseguindo digerir a realidade
Até meados do século 20, não haveria como falar em alimentação, o tema desta Trip, sem falar obrigatoriamente na fome.
A fome nos moldou. Durante milênios, ela foi o principal combustível da transformação social aqui na Terra. Por meio de guerras, revoluções, migrações, o mundo girou movido pela fome.
No ano 2000, o Instituto Worldwatch, uma ONG independente americana, publicou um relatório intitulado “Subnutridos e Sobrenutridos: A Epidemia Global de Má Nutrição”. Pela primeira vez na história, o número de pessoas obesas igualou-se ao número de pessoas subnutridas. De lá para cá, o número de pessoas mal alimentadas pela falta de comida foi de longe ultrapassado pelo número de pessoas mal alimentadas pelo excesso de comida.
Óbvio que a fome ainda existe em larga escala e é um dos piores flagelos a que um ser humano pode ser submetido. Mas uma das coisas que melhor definem nossa época é o fato de nossas panças estarem tão cheias. E não são só as nossas panças. Nossas gavetas também estão cheias. Nossos hard disks estão cheios. Nossas cabeças estão cheias. Do intestino ao cérebro, os nossos órgãos estão processando informação em quantidade e variedade inéditas.
Um slogan de pichação de muro já previa, no início dos anos 70, a enchente de bits de todos os gêneros que viria logo à frente. “Se você não está confuso está mal informado”, dizia a frase, que além de valer para o sistema nervoso central, o cérebro, vale também para os outros sistemas do corpo, incluindo o digestivo e o respiratório.
Nossos sistemas vitais estão mais tantãs que radar iraquiano em noite de bombardeio americano. Estamos vivendo uma epidemia não divulgada de doenças auto-imunes. São aquelas em que o organismo, confuso pelo excesso de corpos estranhos, entra numa espécie de histeria defensiva e acaba atacando a si próprio.
Jornal acebolado
Não há hoje em dia quem não tenha, ou não conheça alguém que tenha, uma doença desse tipo. De rinites a doenças mentais mais graves, como o autismo de fundo imunológico que nos EUA teve um crescimento de mais de 8000% em apenas 20 anos.
De tireoidites a diferentes cânceres, cuja causa cada vez mais suspeita-se estar ligada a reações autodestrutivas do sistema imune.
No ano passado, foram lançados aproximadamente 2900 novos produtos químicos. Lado bom: produto químico não é pecado. Dentro de comidas, remédios, cosméticos, muitos deles podem tornar nossa vida melhor. Lado ruim: dos 2900 produtos, menos de dez tiveram seus efeitos neurotóxicos testados a longo prazo.
O jornal satírico americano The Onion (www.theonion.com) comemorou numa edição recente: “Pela primeira vez na história, o número de produtos fabricados pelo homem excedeu a biodiversidade”. Esta parece ser a dinâmica da nossa época. Sai mico-leão-dourado, entra Ploc Monsters. Todo dia. Se você não está confuso, você não está aqui.
Há um dado novo de realidade: o excesso de realidade. Física ou metafísica. Material ou virtual. Para a nossa relação com esse excesso, a auto-imunidade é uma metáfora poderosa. Há outras? Claro. À sobrecarga de informação ainda podemos responder com a lógica de uma carmelita descalça, que se retira deste mundo e ponto. Ou, num extremo oposto, num momento oposto, ainda podemos libertar a Madonna esfomeada que vive num castelo inglês dentro de nós, para cair de boca no banquete da contemporaneidade.
Em contraposição à auto-imunidade, a Madonna é outra boa alegoria. Um dos maiores ícones pop da nossa época, ela não está em nenhuma das minhas listas de melhores cantoras ou dançarinas ou compositoras ou muito menos atrizes. Mas talvez ela seja a maior editora do mundo.
Usando a si mesma como veículo, ela sempre soube captar, filtrar, montar, enfim, usar o dado da fartura a seu próprio favor. E é bom lembrar que ela não deixa os próprios filhos assistirem televisão.