A delicadeza Carioca
Foi preciso que uma pesquisa americana nos mostrasse que o "Rio violento" gritado pela mídia é também a cidade mais gentil do mundo
Pesquisadores da Universidade da Califórnia passaram seis anos procurando por um bicho raríssimo na esfera do saber acadêmico, da comunicação de massas, das conversas importantes, enfim, do universo de tudo que a meritocracia global dá valor.
Um gesto de gentileza. Em 23 cidades do planeta, os pesquisadores usaram uma metodologia tão simples quanto os gestos que buscavam. Botavam um cego para atravessar a rua e conferiam se aparecia alguém para ajudar. Fingiam que perdiam uma caneta e esperavam para ver se as pessoas devolviam. Coisas assim. E o resultado dessa análise? A cidade mais gentil do mundo inteiro é o Rio de Janeiro.
A pesquisa não foi realizada em 1950. Eu assisti à notícia mês passado no Jornal Nacional, narrada num tom ufanista light, en passant entre uma morte e outra. Como se fosse uma reportagem sobre a vitória da Ponte Preta no campeonato mundial de futebol de salão. Não mais. Confesso que fiquei chapado.
Se o conjunto dos espetáculos narrativos que a gente convém chamar de "mídia" tivesse uma encarnação humana, desta vez eu a chamaria na chincha: "Vem cá, não é você que me diz todo dia que o Rio é uma das cidades mais violentas do mundo? Como é que você vem me dizer agora, tão natural, que ela é a mais gentil?".
Contraditória à primeira vista, a tese de que uma cidade brasileira possa ser tecida de delicadezas entra em sintonia com uma camada profunda da auto-percepção intuitiva do país. Como cidadãos, ainda que a nossa auto-estima morena seja vítima de um constante bombardeio realizado muitas vezes por nós mesmos, com bombas importadas, sabemos no íntimo que a violência de que fala a mídia nos atinge sobretudo através da própria mídia. A gentileza tem um grau bem maior de realidade cotidiana. Pelo menos por enquanto.
País dos paradoxos
Estou dizendo que não há violência demais no Brasil? Não, claro. Acredito que o mesmo lugar possa ser ao mesmo tempo o mais violento e o mais gentil? Sim, claro.
Quem mora no Brasil sabe que um carnaval pode ser um paraíso ou um inferno. Ou que um bandido pode ser gente fina. E que um gente fina pode ser bandido. Não temos o menor problema em conviver com paradoxos.
O problema é a maneira pela qual os clichês circulam na consciência internacional. Os próprios americanos foram os primeiros a se espantar com a notícia de um Rio campeão de gentileza, logo, por um lado, campeão de civilidade. Por que não? Gentileza não é uma forma avançada de civilidade?
Fui verificar matérias americanas, inclusive a íntegra da pesquisa publicada na American Scientist. Não eram raros comentários tipo "contrariando todos os clichês hollywoodianos, da deseducação no trânsito ao tráfico de drogas, a cidade latino-americana foi eleita a mais amigável do planeta". Normal. Um mundo midiatizado é um mundo cheio de verdades redutoras. Que frequentemente se contradizem.
Mas a questão é anterior à própria existência da mídia. Os conceitos que aferem os pulsos vitais e definem hierarquias na comunidade internacional não caem de um céu absoluto. São produtos de um solo específico, o hemisfério norte ocidental. Vêm de lá indicadores que não medem por inteiro os nossos sintomas de doença ou saúde socioeconômica.
Mas, já que a inteligência brasileira ainda não foi capaz de inventar um Índice de Afeto Urbano ou uma Taxa de Delicadeza Civil, continuaremos dando importância a índices ridículos como o Risco Brasil, um cálculo inventado por meia dúzia de yuppies de Nova York, cidade que tirou o último lugar na pesquisa de gentileza.
Olhar viciado
Desculpem minha ingenuidade. I Love New York. A pesquisa que nos declara gentis também veio dos EUA. Sei que o Risco Brasil tem impacto decisivo sobre os investimentos externos no país. Mas por que é que ele tem que ser papagaiado em cada linha, cada pixel da imprensa nacional? Pra que tamanha obsessão com a cotação do dólar se no começo do século passado os modernistas já ensinaram que a alegria é a prova dos nove?
Nada contra a cotação do dólar, companheiros. Muito menos contra o grau de escolaridade, o saneamento básico, a distribuição de renda. Mas será que não está na hora de aparecer algum estudo sobre o impacto da água de coco em cada esquina no índice de desenvolvimento humano.