A criminalização do funk

por Kamille Viola

Como a associação do gênero ao crime remonta uma história que vem desde o Brasil escravocrata de colocar a cultura negra à margem da lei

Quando os versos de Cidinho & Doca ganharam as rádios do Brasil inteiro em 1995 parecia que a narrativa que invariavelmente associa o pobre, negro e periférico ao crime daria lugar à narrativa dos bailes e da diversão a partir da música nos morros cariocas. Era um fenômeno e os versos seguem imortais: “Eu só quero é ser feliz/ Andar tranquilamente na favela onde eu nasci/ E poder me orgulhar/ E ter a consciência que o pobre tem seu lugar”. Mas a crítica social que outros versos do hoje clássico “Eu só quero é ser feliz” carregavam ainda permanecem atuais, em trechos como “Diversão hoje em dia não podemos nem pensar/ Pois até lá nos bailes, eles vêm nos humilhar”. A história no Brasil parece ensinar que manifestações culturais que não nascem na legitimidade dos centros culturais ou dos centros das cidades devem ser criminalizadas. O gesto, muitas vezes, é olhar para quem é acusado de cometer algum crime e associá-lo a uma forma de expressão.

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Neste ano, chamou atenção um episódio em que Lorenna Vieira, mulher do DJ Rennan da Penha, foi levada para a delegacia ao tentar sacar R$ 1.500 de sua própria conta no caixa do banco, acusada de usar uma identidade falsa para isso. Menos de um ano antes, em abril de 2019, Rennan havia sido preso por uma alegação de envolvimento com o tráfico na região em que ele realizava o maior baile funk do país – o Baile da Gaiola, na comunidade da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, onde chegava a reunir 25 mil pessoas. Ele foi libertado em novembro do ano passado, beneficiado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal de derrubar a prisão em segunda instância. Mas o processo ainda está correndo e ele aguarda o julgamento em liberdade.

A Justiça havia emitido um primeiro mandado de prisão contra o DJ em 2016, em um processo que acusava 37 pessoas. Rennan chegou a ficar detido por seis meses, até ser absolvido em primeira instância por falta de provas. O caso foi para a segunda instância e, em março de 2019, ele foi condenado a seis anos e oito meses de prisão. Na acusação de associação ao tráfico, foram usados como prova um vídeo em que cumprimenta um traficante, uma mensagem em um grupo de WhatsApp em que avisa que o ‘caveirão’ da polícia está entrando na comunidade e uma foto em que aparece segurando uma arma – segundo o DJ, era uma fantasia e a arma era de brinquedo.

Outros artistas de comunidades cariocas saem em defesa de Rennan, refletindo sobre a complexidade de se viver em uma favela. MC Carol explica que, para ela, as alegações contra o DJ demonstram desconhecimento sobre a realidade das periferias. “Quem não é de favela, é alienado e não sabe nada desse mundo pode até acreditar que ele é bandido por ter feito isso. Mas quem mora em comunidade conhece as leis. A gente não tem nada a ver com o tráfico: é refém dele”, diz. “Eu perdi três pessoas da minha família por causa do tráfico na minha comunidade. Quando eu ainda morava no morro, uma das bocas ficava na minha porta. Eles ficavam sentados na minha escadinha. Para entrar ou sair, eu tinha que pedir licença. Eles batiam na minha porta para pedir água. Já chegaram a invadir um churrasco meu. Você fica sem ação, porque são pessoas armadas que estão ali. Se você mora na favela e um bandido pede água, um prato de comida ou para tomar banho na casa, você simplesmente tem que deixar. Tem que apertar a mão, dar ‘bom-dia’ para os assassinos da tua tia, do teu primo. Eu e minha família tivemos que fingir que nada aconteceu”, desabafa ela, que não vive mais na favela onde nasceu.

Sobre ele ter alertado para a presença do ‘caveirão’, Carol lembra de uma rotina violenta. “A gente, que é de comunidade, sabe como a polícia funciona: ela sobe na hora em que criança está indo para a escola e vai atirando para qualquer lado”, diz. “Se um tiro pegar num inocente, eles estão pouco se lixando. Se a criança for muito pequenininha, não tem como falar, mas, se for um garoto de 11, 12 anos, eles pegam e botam uma arma do lado: ‘Trocou tiro com a gente.’ E fica por isso mesmo. A gente sabe o que acontece, então, avisa: ‘não deixa as crianças irem para a rua’, ‘não desce para trabalhar agora, a polícia subiu’. Isso é normal na favela. Porque a gente simplesmente morre e não dá em nada, os caras não vão presos.”

Três atos

A prisão de Rennan se distancia em quase 30 anos dos arrastões que tomaram as areias cariocas a partir de 1992, quando a mídia imediatamente trouxe para o noticiário, junto às ocorrências de roubo coletivo, o funk, dando uma abordagem criminal para o ritmo que começava a tomar totalmente os morros e já ensaiava ganhar o asfalto. Mas antecede em pouco mais de seis meses a morte de 9 jovens após uma ação policial em um baile funk na favela de Paraisópolis, em São Paulo, em dezembro de 2019.

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Diretora do Coletivo Pretaria – que trabalha a comunicação interseccional com eixo em raça –, a publicitária Maria Amália Cursino avalia as abordagens preconceituosas que surgem em tragédias como essas. “Existe uma narrativa muito viciada da grande mídia ao noticiar o que acontece nas periferias, com os personagens das margens. Parece que existe um script muito bem sedimentado, a coisa não muda muito: você abre os jornais e é o mesmo discurso, são sempre as mesmas histórias. Não há comprometimento em mudar essa construção que os meios de comunicação são responsáveis por fazer em relação às periferias”, diz. “Fica muito difícil a gente mudar essa estrutura de narrativa quando não existe um interesse real em entender esses processos que acontecem aqui no Brasil em relação à população preta, periférica e à cultura decorrente desses territórios”, diz. 

A historiadora Juliana Bragança, que lançou recentemente o livro Preso na Gaiola: a criminalização do funk carioca nas páginas do Jornal do Brasil (1990-1999), pesquisou sobre o tema em reportagens publicadas há 30 anos. No trabalho, resultado de sua dissertação de mestrado, ela levantou 299 ocorrências do assunto na imprensa. “O número de matérias que falam do funk de uma forma negativa é muito superior ao das que falam positivamente”, conta, explicando que a partir do verão de 1992 – o marco zero dos arrastões nas praias da Zona Sul carioca –, as reportagens negativas aumentam sensivelmente. O crime foi imediatamente associado ao funk. “Havia uma necessidade de se encontrar um culpado, e a mídia elege os funkeiros como bode expiatório”, explica Juliana. “Entra um processo racista muito forte. Tem uma matéria, por exemplo, que contrapõe os caras-pintadas, do movimento contra o ex-presidente Collor, às ‘caras naturalmente pintadas’. Em alguns momentos, foi muito difícil ler algumas reportagens, cartas de leitores — também fiz análises delas. Eu tinha que parar, dar uma respirada, beber uma água. Às vezes, tinha que recomeçar só no dia seguinte, porque foi muito escancarado esse processo racista”, diz. “A imprensa teve um papel fundamental na criminalização do funk, no sentido de encontrar o culpado para os males da cidade”, analisa Bragança, que viu o mesmo teor em outras publicações e em programas de TV do período, embora tenha escolhido apenas o Jornal do Brasil para sua dissertação.

Preconceito cultural

A repetição dessa fórmula reforçou em muitos setores da sociedade a sensação de que o crime frequenta qualquer ambiente periférico, sem distinção, o que fez com que a criminalização das culturas de favela buscasse amparo inclusive legislativo. Em 2017, um projeto de lei que pretendia criminalizar o funk recebeu mais de 20 mil assinaturas em apoio, mas acabou rejeitado pelo Senado. Mas o sinal de que, para setores conservadores, o gênero é e continuará sendo associado ao crime estava dado. 

A MC Carol também fala do racismo como raiz do problema, seja nas mortes de Paraisópolis, seja em outros casos recentes de atuação truculenta da PM. “A violência policial é bizarra. Dia desses eu acordei postando no Twitter um policial fazendo uma abordagem absurda com uma mulher grávida. E teve o caso de um menino que aconteceu há pouco tempo: ele apanhou, sem ter feito nada, e ainda ouviu frases racistas sobre o cabelo dele. Aconteceu uma situação parecida comigo em 2018”, diz.

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A funkeira também conta de um dia em que estava em seu carro com o irmão e dois amigos quando foram abordados por oficiais com fuzis, em uma blitz com o exército e a polícia. Mandaram que todos deitassem no chão, antes mesmo de olhar os documentos ou inspecionar o veículo – o tempo todo a xingavam. “Fecharam a rua. As pessoas estavam todas olhando para a gente, saindo do carro para ver. Um cara queria chutar um amigo meu, xingando a gente de ‘bando de vagabundo’. Foi cena de filme. E, no final, não olharam meu documento, mal revistaram o carro”, lembra.

Carol não denunciou, por medo, mas contou a história em suas redes, pelo mesmo motivo. “Falei sobre o meu caso recentemente e no final disse: ‘Eu acredito na Lorenna, mulher do Rennan da Penha. Mesmo que a polícia fale que a identidade dela é falsa.’ Porque é isso: a gente não pode confiar em uma polícia que bate na gente só por causa do cabelo. Eles não estão aqui para defender quem é pobre, quem é negro: eles estão para defender uma classe, e não é a nossa”, diz.

Uma história longa

A repressão às manifestações da cultura negra no Brasil traz uma cicatriz aberta do período escravagista. Desde o século 17, no Brasil Colônia, acontecia aquela que é considerada uma das primeiras manifestações carnavalescas do país, o entrudo. Os participantes muitas vezes se vestiam satirizando pessoas ricas, passavam produtos no rosto para embranquecê-lo, e faziam brincadeiras em que atiravam água, farinha, lama, urina e fezes, entre outros. A prática foi muito criticada pelas elites e, a partir da década de 1840, houve uma campanha da imprensa por sua proibição. “Cheguei a ver matéria de jornal da época fazendo uma reivindicação mesmo: ‘A polícia tem que acabar com isso’”, conta a historiadora Juliana Bragança. A partir dali, o entrudo passou de fato a ser reprimido. Recentemente, a imprensa noticiou a existência de vídeos com a chamada guerra de sacolés entre crianças e jovens de comunidades fluminenses. Dentro dos saquinhos, água de esgoto, tinta, urina e fezes — a associação com o entrudo é inevitável. A prática dividiu opiniões nas redes sociais e chegou a ser noticiada de forma alarmista.

Algumas décadas depois, o Código Penal de 1890, criado dois anos após abolição da escravidão no Brasil, incriminava práticas como a capoeira, a “magia” e a “vadiagem” – muitos sambistas eram associados a ela, e andar com um violão ou um pandeiro poderia levar alguém para a prisão. Era a lei criminalizando elementos da cultura negra. Em um Brasil pós-abolição onde não houve nenhuma medida para incorporar a população negra ao mercado de trabalho, tornar a ociosidade crime era, por si só, jogar na ilegalidade boa parte dessas pessoas. Essa contravenção penal estava sujeita também à interpretação que mais se adequasse às forças repressoras do Estado, sendo aplicável somente a pobres.

O advogado Bruno Candido, especializado em advocacia antidiscriminatória, explica que o Direito também se insere em um projeto de controle de pessoas por meio de seus corpos. Grupos considerados vulneráveis são impactados, mas de formas diferentes. Por exemplo: mulheres brancas são parte desses grupos, mas não são encarceradas em massa, como acontece com pessoas negras. “Em relação à população negra, há uma sistemática conduzida para que esses corpos sejam submetidos a essa espécie de controle. Como eu não posso criar uma legislação penal que criminalize uma pessoa negra, porque seria um comportamento diretamente discriminatório, crio uma espécie de comportamento criminal que possa impactar indiretamente essa pessoa. Se eu não posso atingir a pessoa, atinjo a cultura relacionada a ela”, exemplifica.

Bruno explica que uma das maiores dificuldades em relação a casos de racismo é lidar com a ideologia discriminatória dentro da própria Justiça. Em ações de preconceito racial, por exemplo, mesmo quando o resultado é favorável à vítima, muitas vezes a sanção é muito branda para a gravidade do crime cometido. “Então, ela não tem o poder de transformar o cenário tanto quanto se espera de uma instituição de justiça”, lamenta. “É importante que os indivíduos do próprio sistema entendam a importância de um Direito antidiscriminatório, que esteja ligado à dignidade das pessoas e à promoção de uma equidade na sociedade. Muitas vezes eles não conseguem alcançar que a produção da equidade vai tornar sociedade mais saudável. As pessoas terão menos ódio e, com isso, a gente consegue reduzir o índice de violência, exercitar a solidariedade universal, melhorar como sociedade.”

Dois pesos, duas medidas

Ao mesmo tempo que jovens funkeiros são associados ao crime e sofrem violência, o funk tem espaço na grande indústria musical. Enquanto estava preso, Rennan da Penha ganhou o Prêmio Multishow (nas categorias melhor produtor e melhor canção, por “Me solta”, dele em parceria com Nego do Borel) e foi indicado ao Grammy Latino pelo clipe da mesma música. O DJ mal saiu da cadeia e assinou um contrato com a Sony Music, para em seguida gravar um DVD – embora o Baile da Gaiola siga suspenso. Ludmilla, Kevin O Chris e MC Rebecca são outros exemplos de artistas de origem periférica fiéis às raízes do gênero e que estão em alta. 

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Juliana Bragança lembra que, nos anos 90, já acontecia algo similar, com o funk sendo criminalizado ao mesmo tempo que ingressava na indústria cultural. No início, não havia espaço para os artistas do gênero nas grandes gravadoras ou programas de TV, mas isso foi mudando. “Aconteceu quando se percebeu a potência financeira que o movimento tinha. Aí começa-se a utilizar isso: ‘Olha que rentável, olha como circula dinheiro.’ E eu acho que isso ainda acontece hoje. São processos que andam lado a lado”, analisa.

Se o sucesso de alguns desses artistas não impede que a cultura das periferias continue sendo demonizada, o que fazer para que isso mude? Juliana acredita que um dos passos fundamentais é a atuação do poder público como incentivador do funk como cultura, com a formação de profissionais e apoio à cadeia produtiva da área, além de fazer realmente acontecer o ensino da cultura negra nas escolas. “A gente tem que ver o que foi a cultura negra no passado, mas também tem que fomentar o que é hoje. Porque a cultura negra hoje é a cultura dos nossos alunos. São vários caminhos para se reverter esse quadro. E, obviamente, o combate ao racismo é fundamental, porque, se a gente não parar para combatê-lo, não vão parar de criminalizar a cultura negra nunca”, resume a historiadora, que é professora da rede estadual em Ibititá, no Sertão Baiano.

Maria Amália Cursino acredita que, apesar de serem necessárias múltiplas ações para que esse cenário se modifique, já existe uma mudança em curso, e não tem mais volta, a despeito do momento de retrocessos que o país vive. “O que eu vejo como saída é justamente o que está sendo feito: profissionais pretas e pretos se especializando cada vez mais em suas áreas, propondo soluções cada um na sua área de atuação, tensionando esses espaços para que realmente existam mudanças substanciais na cultura e nas relações”, afirma. A publicitária defende que os últimos dez anos foram decisivos para que estejamos mais próximos de observar mudanças reais. “A gente está avançando e realmente não tem mais volta. Estamos fincando nossos pés e colocando luz às margens. Então, que sejamos considerados, que sejamos ouvidos e que olhem para as margens, que lá estão soluções de quem construiu o Brasil, das pessoas que são as verdadeiras detentoras de legados culturais: a população preta, a população indígena. Gente que está muito apropriada do que faz o Brasil ser o Brasil”, define.

Créditos

Imagem principal: Jeferson Delgado / Portal KondZilla

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