A alegria dos Moleques
De bicicletas, nós, um bando de moleques de 11 à 14 anos de idade, rodávamos a Zona Norte de São Paulo em busca de algo que nos excitasse ou chamasse a atenção. Em um dia estávamos nas lagoas de Guarulhos, que nem existem mais, pescando ou nadando. Noutro poderíamos estar dentro do Trote, lugar para corridas de cavalos, na Vila Maria, caçando passarinhos, rãs, preás no bambuzal ou nas taboas. Depois iríamos para as lagoas no bairro do Jaçanã, que também não existem mais; na lagoa da empresa Nadir Figueiredo; e foi assim que conhecemos um pomar abandonado atrás da Casa de Detenção de São Paulo.
O problema é que para chegar ao pomar para pegar frutas, tínhamos que seguir um pequeno riacho. Passávamos próximo à muralha e os presos (pavilhão nove e oito), trepados nas janelas, nos assustavam. Passávamos correndo bem embaixo da muralha para eles não nos vissem. Tínhamos medo: pareciam maus. Soube, posteriormente, que ali era o ponto de menor visão para o guarda da muralha: local ideal para jogarem drogas para eles, por cima da muralha. Nossa presença chamava a atenção do guarda, atrapalhando as transações. Mas éramos desses moleques cheios de artes e atrevimentos. Foi de repente que percebemos que dava para alcançar os presos que nos assustavam com nossos estilingues. Ficou difícil para eles. Era aparecer na janela para tomar estilingada. Com o tempo, treinar pontaria nos presos era uma das diversões que mais apreciávamos. Aparecíamos na picada que abrimos no mato e os presos saiam rápido das janelas, se escondendo. Agora eram eles que corriam assustados. Mas nós insistíamos: as bolinhas de vidro batiam nas barras das grades e estilhaçavam para dentro das celas. Eles pararam de mexer com a gente, mas agora estávamos até querendo que mexessem para tornar a diversão mais interessante.
De repente, de lá de dentro da janela veio resposta. Os caras estavam revidando. Haviam feito estilingues também. Era guerra. Convocamos a molecada da rua e viemos com os bolsos cheios de pedrinhas redondas e bolinhas de gude. Mas os caras (não havia pedras lá dentro) atiravam pedaços de ferro, bolinhas de aço, porcas, parafusos, coisas que poderiam nos ferir de fato. Só que eles deviam usar uma borracha menos flexível que as nossas: as coisas de ferro chegavam em nós como foguetes, mas sem precisão. Era semelhante, guardas as proporções, a um lança-granadas. Machucaram uns dois meninos, sem gravidade, eram muito ruins de pontaria. Agora toda vez que íamos ao pomar, era preciso passar correndo porque os caras atiravam em nós. Dávamos umas estilingadas certeiras e nos mandávamos.
Fomos crescendo e nos interessando por outras coisas; eu fugi de casa e fui morar nas ruas da cidade. Virei moleque de rua e, aos trancos e barrancos sobrevivi. Aos 19 anos fui bater com os costados na Casa de Detenção de São Paulo, condenado a mais de um século de prisão. Coincidentemente, fui morar em um xadrez cujas duas janelas davam exatamente para o local de onde nós atirávamos de estilingue nos presos. Contei para os companheiros e eles me disseram que, de vez em quando, ainda vinha uns moleques dar estilingadas neles. Eram filhos de funcionários que moravam em uma vila de casas feitas próximas ao nosso antigo pomar. Mostraram o estilingue que tinham para essas ocasiões. Como eu suspeitara, eram feitos com borracha de câmara de pneu de carro. As nossas eram de câmaras de pneus de bicicleta.
Já estava morando naquele xadrez há quase dois meses quando aconteceu. Os moleques vinham andando e dando estilingadas nas janelas, do pavilhão nove para o pavilhão oito. O Dinho já estava em cima da cama-beliche de estilingue armado. No pavilhão nove, como quando eu era moleque, não houve reação. Mas quando chegaram às janelas do pavilhão oito, choveu tudo que pudesse ser atirado por um estilingue resistente. Eles começaram a correr e atirar, não dava para acertar em alvo móvel, mas eles também não acertavam. Os moleques corriam rindo do escândalo que fazíamos para espantá-los.
Voltei no tempo e lembrei em como era gostoso quando inventávamos de vir ao velho pomar ou simplesmente dar estilingada nos presos. Era um desafio enorme e, mesmo por isso, uma das minhas diversões preferidas. O medo de ser atingido por um projétil daqueles injetava muita adrenalina no sangue. Dava para ouvir o grito deles quando acertávamos; era uma glória! Depois ficávamos rindo e comentando. Aqueles moleques, 10 anos depois, estavam nos sucedendo naquela atividade. Eu só não sabia de uma coisa. Embora pudesse atrapalhar as transações, os moleques de dentro da prisão adoravam, como nós, aquele momento em que nos comunicávamos atirando nossas pedras-palavras; bolinhas-de-gude-sentenças; cavacos, parafusos, bolinhas de aço; períodos, parágrafos, textos... Expulsar os moleques a estilingadas era alegria, descontração e uma quebra na rotina estupidificante da prisão.
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Luiz Mendes
25/06/2014.