Pé no chão
Ana Primavesi e o educador indígena Kaká Werá defendem novas formas de relação com o solo
Quando se aposentou, anos atrás, a agrônoma Ana Primavesi, 90 anos, comprou um sítio na pequena Itaí, interior de São Paulo, a 300 km da capital. Após quatro décadas lecionando na Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, a precursora da agroecologia no Brasil quis voltar às origens de seus antepassados, agricultores austríacos. "Aqui pude criar uma relação mais íntima com a terra." Em seu refúgio espremido por fazendas de plantação de cana-de-açúcar, Ana recebeu o educador e escritor indígena Kaká Werá, 46 anos, para o quinto encontro entre homenageados do Prêmio Trip Transformadores 2010.
No sítio de Itaí, Ana e Kaká defenderam uma nova relação com o solo, que ambos julgam estar ameaçado pelo crescimento desordenado das cidades, pela poluição do ar e das fontes de água doce, pelas grandes plantações de soja e milho e pelo uso indiscriminado de adubos químicos e agrotóxicos. "A terra tem capacidade de absorver até 400 ml de água da chuva por hora. Atualmente, só de 7 a 14 ml são absorvidos por hora. Está tudo duro, a terra foi destruída", alerta Ana.
A professora passou a vida pregando formas mais saudáveis e sustentáveis de cultivo. Kaká conta que os índios tupinambás, quando fundavam uma aldeia, tinham um sistema de cultivo que alternava espécies e lugar de plantio. "Na região do Xingu, os camaurás plantam tudo junto, pois uma planta cuida da outra", conta ele.
Descanso da terra
Ana passa o dia percorrendo as terras do sítio ao lado do velho pastor belga Pachá, que não deixa desconhecidos se aproximarem da dona. Os dois só se separam quando Ana viaja para ministrar palestras pelo país, normalmente sobre agroecologia, a importância de deixar a terra descansar e se recuperar para a nova semeadura.
Segundo ela, não é preciso usar adubos químicos nas plantações. "Se a terra está viva, produz cinco vezes mais do que a plantação convencional. Um teste simples é jogar água num monte de terra. Se a água sai turva, a terra está ruim; se sai limpa, é porque está viva. Os nutrientes estão agregados, o solo está arejado e está tudo bem. O solo saudável é rico em matéria orgânica. Uma planta bem alimentada resiste às pragas."
Kaká Werá é um índio da etnia tapuia, cujos pais migraram do interior de Minas Gerais para a periferia de São Paulo, fugindo de fazendeiros: "Meus antepassados saíram da terra, vieram pra cidade grande e eu fiz o caminho de volta", conta. Os krahôs (pronuncia-se craôs) o chamam de pahi (diz-se parrí), que quer dizer "ponte entre dois mundos". O fato de ser um índio nascido no asfalto o torna capaz de se comunicar e transitar fácil nas duas culturas. Kaká usa isso a seu favor, dando palestras nas aldeias e cidades e promovendo o intercâmbio entre brancos e
índios. "Trabalhamos pra gerar uma nova identidade de valorização e respeito às raízes culturais do Brasil. Afinal, não somos só europeus, tampouco só americanos."
"A relação com a terra é de sujeira, e não de nutrição"
Educador, ambientalista e conferencista, Kaká é autor dos livros A terra dos mil povos - História indígena do Brasil contada por um índio e As fabulosas fábulas de Iauaretê (editora Peirópolis), entre outros. Ao lado da mulher, Elaine, com quem tem três filhas e uma neta, Kaká criou há 20 anos o Instituto Arapoty, hoje um ponto de cultura que forma jovens de Itapecerica da Serra, Grande São Paulo. "As pessoas precisam mudar a visão deturpada que têm da terra. É uma relação de sujeira e não de nutrição." Ana concorda: "A sociedade de consumo é uma catástrofe. Destrói a Terra e só produz lixo. O homem é o único animal deste mundo a produzir lixo".
Kaká conta que, quando voltou pra aldeia dos antepassados, pôs os pés no chão e tudo mudou. "Abriu-se uma conexão e agora preciso estar frequentemente em contato com a terra, minha fonte de revitalização." Elaine conta que um dia ele desembarcou em São Paulo com os pés descalços. "Kaká, onde estão seus sapatos?", perguntou. Ao ouvir um "esqueci na floresta", emendou: "Mas te deixaram embarcar assim?". "E por que não deixariam?", questionou o marido. O causo provoca um sorriso em Ana, que conta fazer uma oração todos os dias, ao pôr do sol: "É importante parar e sentir a terra, pensar de onde vem e pra onde vai. No fim das contas, não somos nada".
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