Antônio Carlos Gomes

O soldado da educação defende a tese de que toda criança é adotada por quem a educa

por Otávio Rodrigues em

Vencedor do Prêmio Trip Transformadores na Categoria Liberdade e um dos maiores pedagogos do Brasil, Antônio Carlos Gomes da Costa defende a tese de que toda criança é adotada por quem a educa. Ele nunca teve filhos biológicos, mas adotou centenas em uma vida dedicada ao ensino

Ele cursava o terceiro ano de medicina quando lhe caiu nas mãos um livro do educador Paulo Freire. Pronto. Estava selado o destino do mineiro Antônio Carlos Gomes da Costa, um dos maiores pedagogos do Brasil, ganhador do Prêmio Trip Transformadores em 2008 na categoria Liberdade. Especialista em políticas públicas para a infância e juventude, desde os anos 80 ele vem se desdobrando em incontáveis atividades, incluindo trabalhos para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a co-redação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Enfim, nada faz crer que esse homem de 59 anos, de fala pausada e palavras escolhidas, tenha passado por atribulações em seus tempos de estudante. “Bombei em português e matemática no primeiro ano do ginásio [equivalente hoje ao ensino fundamental]. E foi bom, porque comecei a matar aulas na biblioteca pública de Belo Horizonte e ali se abriu meu horizonte vital, quando passei a entender
muitas coisas que na escola nem se falava.” Entre uma e outra leitura, claro, um tanto de travessuras. “Uma vez colocamos a caixa de giz do professor encostada, quase caindo, no alto da porta. Quando ele entrou...”

Naturalmente, não é esse episódio que cintila em seu currículo. Foi já como professor, dirigindo a escola da Febem Barão de Camargos, em Ouro Preto, que Antônio Carlos começou mesmo a chamar a atenção. E aí não parou mais, fazendo de sua vida um sacerdócio à educação, sempre com importante atuação política. Dono de inteligência prodigiosa, capaz de lembrar nomes, fatos e dados com precisão de arquivista, já escreveu mais de 60 livros, referências nobres na formação de educadores, crianças e adolescentes. “Eu tenho uma técnica. Começo o livro, escrevo o índice e, assim, os
tópicos já estão definidos. Depois resolvo a conclusão, que é o objetivo da obra – ora, os capítulos têm de chegar à conclusão. Então inicio o primeiro capítulo e, por último, escrevo a introdução.”
Escrever é modo de falar: o professor dita os livros, enquanto seu assistente vai digitando. Ele e a mulher, dona Maria José, também educadora e parceira nos cursos e programas da consultoria Modus Faciendi e na Fundação Antônio e Maria José (FAMJ), lidaram a vida inteira com crianças, mas não puderam ter filhos. “Durante um tempo pensamos em adoção, mas, como eu viajava muito, acabamos
desistindo.”

Com essa experiência, afirma ter descoberto algo muito importante. “Não é porque um filho vem dos seus bagos que você é pai: você é pai se adota seu filho quando ele nasce – e, como sabemos, há muitos pais que não assumem seus filhos. Então, a minha tese é essa, de que todo mundo é adotado.” E a herança do casal – o enorme centro de atividades num sítio das cercanias de Belo Horizonte – já tem destino certo. “Eu e minha mulher vamos fazer a doação condicionada deste patrimônio. Qual a condição? Enquanto estivermos vivos, temos o usufruto disso aqui; quando morrermos, tudo passa para a fundação. Deixaremos uma herança pedagógica.” A seguir, Antônio Carlos fala sobre sua vida, família e educação.

HORIZONTE VITAL
“No chamado primeiro ano de ginásio, fui reprovado em português e matemática. Depois, quando foi no ano seguinte, eu fiquei de segunda época em português e passei raspando. Aí nunca mais eu fui reprovado em nada. Consegui passar no curso de medicina, entrei em primeiro lugar no curso de pedagogia. Mas, quando repeti, senti o preço humano que uma pessoa paga pela reprovação.
Primeiro foi o esculacho que meu pai me deu. Ele era militar e me mandou fazer uma horta, já que eu não dava valor à educação. Quando chegou a lista de material escolar, eu pedi dinheiro ao meu pai, e ele falou: ‘Você já tem, olha esse caderno, olha os livros, tem tudo aí’. Eu dividi o livro de matemática com um amigo porque fiquei com vergonha de pedir, tamanha a baixa autoestima gerada pela reprovação. Mas o interessante é que eu passei a matar aula na biblioteca, e lá eu estudava o que bem queria, mitologia grega, histórias da Segunda Guerra Mundial, pegava a vida de Van Gogh e lia, então a tarde passava rápido matando aula. Quando morava no interior, eu gostava de matar aula no mato, pescando e nadando. Aí fui transferido para a capital e comecei a matar aula na biblioteca pública de Belo Horizonte, lá na praça da Liberdade, e ali acho que se abriu meu horizonte vital, quando passei a entender sobre muitas coisas sobre as quais na escola nem se falava.”

O ESTIGMA DO REPETENTE
“Houve um concurso de redação no colégio, eu escrevi uma redação muito bonita, e o professor falou assim: ‘Eu vou te dar dez nessa redação se você falar quem fez isso, porque tá nítido que você não é capaz de fazer’.
Eu era um repetente. Aí afirmei que ninguém tinha me ajudado, e ele falou: ‘Eu vou te dar a nota por você ter sabido escolher uma pessoa pra fazer a redação pra você’. Para ele, meu mérito foi esse.”

EDUCAÇÃO LIBERTADORA
“No momento em que eu fi z a opção de deixar de ser acadêmico de medicina para ser um estudante de pedagogia, essa decisão foi tomada sob o impacto muito profundo que causou em mim a leitura de Educação como prática da liberdade, o primeiro livro de Paulo Freire. Ele começou a escrever esse livro em 1964, quando estava preso pelo regime militar na ilha de Fernando de Noronha, no litoral de Pernambuco.
Então todo esse fato e a sua circunstância me fizeram perceber que o melhor veículo para fazer uma educação transformadora e crítica da sociedade era a opção pela educação libertadora de Paulo Freire. Então, no entusiasmo da minha juventude, fiz a minha opção. Eu tinha uma clareza muito grande de que o educador não é tão valorizado na sociedade como o médico, mas mesmo assim eu fiz essa opção e, se tivesse que escolher hoje, faria de novo.”

ÓPERA DO MALANDRO
“Vou falar aqui de uma frase bastante provocativa. Trabalhei na Febem de Minas Gerais com adolescentes infratoras, durante sete anos, e ali foi meu batismo de fogo na educação, por volta de 1975 a 1983. Uma vez fui conversar com um delegado de menores, porque havia denúncia de maus-tratos e abusos das meninas em relação a policiais que eram subordinados a esse delegado.
Ele disse que admirava o trabalho de um educador e que ele também se considerava um educador. Perguntei o que ele pensava de educação. Aí o delegado falou que recuperou várias pessoas que cometiam delitos fazendo elas refletirem sobre esta frase: ‘Se malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto ao menos por malandragem’ [risos]. Porque a maior malandragem é ser honesto.
Eu acho que o Brasil, o capitalismo brasileiro, se ele quisesse se tornar mais competitivo, teria que ser mais generoso com o investimento público em educação, porque falam muito em competitividade, na prioridade da economia sobre tudo o mais no país, mas eu acho que a melhor maneira de investir na economia a médio e longo prazo é investir na educação.”

ADOTAR OU NÃO ADOTAR
“Minha esposa teve problemas de saúde e, quando a gente estava naquela escola da Febem, trabalhando 14, 16 horas por dia, com cento e tantas meninas lá dentro, não pensava em adotar. Eu morava dentro da escola. Durante os anos em que fiquei lá, nunca passei Natal e Ano-novo com minha mãe, com meus irmãos e com meu pai. Depois eu fui dirigir órgãos públicos, fui presidente da Febem,
secretário da educação, oficial de projetos do Unicef, ficava só viajando, aí nós optamos por não adotar.”

SÓ A EDUCAÇÃO SALVA
“O Amartya Sen é um economista indiano, ele ganhou o prêmio Nobel de economia em 1998, por causa de seus estudos na área do desenvolvimento humano. Ele afirmou o seguinte: quanto mais um país é desenvolvido, o que vai aferir seu desenvolvimento não é o Produto Interno Bruto, não é só a renda e a sua distribuição. É importante que o país tenha renda per capita cada vez maior, que ela seja
mais bem distribuída, mas ele falou que o país mais desenvolvido é aquele onde as pessoas têm mais opções, onde podem fazer mais escolhas de vida. Ele fala que, para desenvolver seu potencial, os seres humanos precisam de oportunidades, e as únicas oportunidades que verdadeiramente desenvolvem o potencial do ser humano, como pessoa, cidadão e profissional, são as oportunidades educativas. As demais são suportes, criam condições para isso. É claro que é preciso alimentação, saúde, roupa, transporte, habitação, tudo isso é importante.
Mas, se você tiver tudo isso e não receber nenhuma educação, você não aprende nem a se comunicar, nem a falar, nem a escrever. Agora imagine um país privado de educação, onde ninguém das novas gerações fosse educado, esse país voltava ao zero. Por isso que a educação é vista como a transição do humano. Humano é aquilo que nos diferencia dos animais: os conhecimentos, as crenças, os valores, atitudes e habilidades que os outros animais da Terra não têm.”

APOSTA NA SALA DE AULA
“Eu acho que o investimento público em educação tem conhecido aumentos, mas se a gente for comparar o nosso investimento com o dos países que deram certo nós vemos que ainda não investimos o suficiente. E o problema não é apenas o quanto investir, é também como investir, colocando ênfase em quê? Eu acredito que é na valorização do educando e do educador. O [economista] Cláudio de Moura Castro fala o seguinte: a política educacional que não chega à sala de aula não chegou a lugar nenhum, a política educacional tem que se refletir no que acontece na sala de aula. Nós estamos
vendo no Brasil de hoje adolescente chegando até a oitava série que não tem ainda o domínio da leitura e da escrita.
Isso foi uma opção que se tomou pelo chamado regime progressivo, pra evitar que o aluno repetisse o ano, mas essas políticas de progressão só dão certo se houver um sistema muito eficiente de avaliação no processo.”

QUANTIDADE X QUALIDADE
“O Brasil progrediu muito colocando todas as crianças, praticamente, no ensino fundamental, o ensino médio tem avançado muito também na quantidade de matrículas, mas no nosso país a quantidade e a qualidade são como se fossem duas irmãs inimigas, onde uma entra, a outra sai. A universalização da educação e a universalização da saúde convivem com o mesmo desafio. Todas as vezes que o poder público brasileiro amplia a cobertura de uma política pública o faz em detrimento da qualidade das ações para o destinatário
final, que é o cidadão.” escrevi um livro com um programa de educação para o empreendedorismo, com dez toques para os adolescentes. O primeiro deles era sobre informação: leia jornal, revista, escute rádio, assista a televisão, acesse a internet, frequente bibliotecas.
A dica é diversificar as fontes de informação, não se deixar pasteurizar pelo que dizem as revistas semanais de grande circulação. Interação: em todo lugar há gente que pensa de maneira semelhante e compartilha das mesmas angústias, procure sua turma. Discussão: converse muito, marque reuniões ou aproveite os encontros informais, mas troque ideias. Opinião: identifique pessoas entendidas no assunto, não tenha medo; mesmo sendo famosas ou superocupadas, elas sempre encontram um tempinho para atender quem quer aprender. Decisão: lembre-se de que estamos em uma democracia, em conjunto a ação a ser realizada vai ganhar mais força e respeito. Planejamento: procure defi nir claramente o que se pretende fazer, com que objetivo, quem vai fazer, como será organizado, com que
recursos e para quando está previsto o início e o término da ação. Os meninos adoraram, disputavam o livro a tapa.”

O MENSALÃO E A ÉTICA
“Você tem que pensar nas pessoas, no planeta e no lucro das empresas, é aquela coisa do ‘triple bottom line’, o tripé da sustentabilidade. Porque uma empresa não ter lucro é uma falta de responsabilidade social, porque ela não vai pagar os empregados, não vai pagar impostos, ela não vai viver como empresa.
O mensalão mostrou claramente pra gente a importância da ética da co-responsabilidade. [O filósofo político italiano] Norberto Bobbio falou o seguinte:
‘Tudo é política, mas a política não é tudo. Acima da política deve existir alguma coisa capaz de colocar limites na luta legítima dos homens para conquistar, manter e expandir o poder político’. Todo partido quer o máximo de poder pra ter o máximo de influência na sociedade. Agora, o que coloca limite na política? É a ética. Então ele falou: ‘Tudo é política, mas a política não é tudo, a ética está acima da política’. Eu falo assim: a empresa que não dá lucro é irresponsável socialmente, ela foi feita pra dar lucro; agora, se você colocar o lucro acima de qualquer outro bem ou interesse, você vai quebrar normas boas de convivência social, você vai fazer propaganda enganosa, você vai superfaturar, que são questões éticas.
Então, a ética é a capacidade das pessoas de tomar decisões e agir, porque a ética é a teoria da ação humana.”

Crédito: Arquivo pessoal
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