Christian Dunker: BBB, Bolsonaro e saúde mental

Dono de um canal no YouTube com mais de 250 mil inscritos, o professor do Instituto de Psicologia da USP usa a psicanálise para falar sobre assuntos que vão da televisão à política brasileira

por Redação em

Quando Christian Dunker voltou do seu pós-doutorado na Inglaterra, em 2001, tinha clara a ideia de que se entendia muito de psicanálise, mas pouco sobre Brasil. Esse retorno foi marcado pela vontade de interpretar o Brasil através da cultura do condomínio, um conceito que ele criou e escreveu em seu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros, finalista do prêmio Jabuti em 2016. O termo cunhado pelo autor diz sobre como a privatização do espaço público transforma a própria vida em formas de condomínio, com seus regulamentos, síndicos, gestores e muros, criando uma desordem que será objeto de ação clínica, mas também biopolítica.

No canal do YouTube “Falando nisso”, Christian aborda temas que fazem ligação direta com a psicanálise, como filmes, livros, situações do cotidiano, política e história. A intenção é democratizar o acesso à psicanálise aos mais de 250 mil inscritos, sair dos muros acadêmicos e cativar leigos.  

Em entrevista ao Trip FM, Dunker fala sobre a saúde mental pública, a postura do presidente Jair Bolsonaro e a polêmica rejeição da cantora Karol Conká no Big Brother Brasil. Ouça o programa no Spotify, no play abaixo ou leia um trecho da entrevista a seguir. 

Trip. Eu queria que você explicasse para quem tem menos intimidade com o tema o que é a psicanálise, para que ela serve e de onde ela vem. 

Christian Dunker.  A psicanálise é uma forma de tratamento do sofrimento humano pela palavra. Ela foi inventada por Freud no começo do século 19 e envolve entender de onde vieram os nossos sintomas, as nossas inibições, os nossos pensamentos recorrentes e aquilo que nos gera inquietude. É uma forma de tratamento psicológico, de psicoterapia, pois envolve abordar tudo isso a partir do processo de lembrança, mas também do processo de relação entre o analista e o paciente. Então é como se fosse uma pesquisa, uma viagem, na qual coisas vão sendo descobertas, novas perguntas vão sendo feitas. A gente poderia dizer que a psicanálise tem uma orientação dupla: por um lado ela procura reduzir o sofrimento das pessoas – o sofrimento mental, psíquico – e curar os sintomas, mas por outro ela também é uma forma de tornar a vida mais interessante, tornar nossa presença com os outros mais intensa e fazer valer uma certa excelência no viver.  

LEIA TAMBÉM: Dá pra manter a saúde mental durante a pandemia?

Não tem como a gente não falar de Big Brother Brasil e da eliminação de Karol Conká, que teve a maior rejeição da história do programa, palavra que por si só já carrega um peso. Queria ouvir a sua opinião sobre esse processo que tomou conta dessa artista. O que aconteceu exatamente com essa menina exposta àquelas condições? O Big Brother é um experimento, é uma brincadeira, mas uma brincadeira em torno de algo que organiza a lógica nas nossas relações, que é a exclusão. Você não está lá para ser bacana, você está lá para resistir a ser expulso e rejeitado. Isso está na empresa, está na educação, está no que a gente chama de universo da competição. Então você está ali vendo e rindo de algo que te afeta e que te faz muito mal. O que acontece é que no caso de Karol Conká isso exagerou, então o princípio da coisa ficou tão nítido que eu repudio. E repudio o fato de antes estar gostando. Mas agora que aparece de uma forma tão cristalina eu tenho que me afastar, colocando em marcha o processo do cancelamento.

“Você acha que as pessoas são unidimensionais e, se você colocar uma câmera de um certo ângulo, vai encontrar o pior de qualquer um”
Christian Dunker, psicanalista

Você só cancela quem você amou antes. Você cancela porque criou uma imagem a partir de um sistema de ilusões e identificações. Você acha que é o dono daquela imagem, mas não é. Então o cancelamento é muito mais a descoberta de um dado das suas ilusões, da sua incoerência, do que o cara que te traiu. Porque você acha que as pessoas são unidimensionais e, se você colocar uma câmera de um certo ângulo, vai encontrar o pior de qualquer um. Você vê essa contradição, ela é eliminada pelo nosso funcionamento imaginário. Aí existe um outro capítulo, que entra nessa disputa com um certo conhecimento de como funcionam grupos desse tipo e fazendo uma função que a gente conhece, que é o bully, o valentão, aquele cara que deixa todo mundo com medo. E uma vez que a pessoa tá com medo, ela vê ele fazendo uma coisa errada e não fala nada, e acaba empoderando esta figura. A realidade de quarentena nos aproximou do programa porque estamos todos vivendo o nosso Big Brother particular. E quando a gente vê ela agindo dessa maneira, acaba reconhecendo a agressividade de intimidação, de violência que estão associados com a vida em estado de confinamento.

“A gente precisa mudar essa gramática da vítima e do carrasco, porque ela é parte do cancelamento, da lacração”
Christian Dunker, psicanalista

A Karol Conká representa uma espécie de colapso de um conjunto de narrativas sobre identidades. Porque se a gente olha de um certo ponto de vista, ela é uma mulher, Lucas um homem. Um homem contra uma mulher, o que neste país significa uma prerrogativa para mulher. Mas ela é uma mulher rica, famosa e poderosa, então muda a chave, é alguém rico contra o Lucas, que é periférico, alguém que não tem os códigos, que não consegue se ligar muito bem. Ele está tentando jogar, mas deixa muito claro as regras que ele quer pôr em curso. Você vai variando, né? Uma mulher negra exercendo violência sobre um homem negro. Isso é racismo? Será que aí estamos falando de racismo estrutural, aquele que toca a todos de forma transversal? Veja o curto circuito em que, na verdade, ela aparece numa forma que a gente não está acostumado. Essa conversa precisa de uma reformulação, a pensar a guerra das identidades a partir de personagens unidimensionais. A causa gay contra a causa queer, contra a causa feminista, contra o feminismo negro, contra o feminismo periférico. Como é que a gente junta tudo isso? O que está em jogo nessa trama é muito mais complexo do que esse alguém que está num lugar privilegiado e o outro está como vítima sofrendo nas mãos dos outros. A gente precisa mudar essa gramática da vítima e do carrasco, porque ela é parte do cancelamento, da lacração, é parte do negacionismo científico. Formamos, assim, um conjunto onde as oposições se desfazem, onde as polarizações mais simples ficaram suspensas. Esse é o lado legal do episódio da Karol Conká.

Eu quero virar a lente para outra situação que parece ter todas as características de uma patologia grave, que é o ocupante da cadeira máxima da República, nosso presidente, Jair Bolsonaro. Qual é a patologia ali, Christian? Se é que você entende que há algo. Olha, existem algumas hipóteses sobre o funcionamento do personagem, mas eu diria que isso é menos importante do ponto de vista dos efeitos que ele acaba criando do que o que a gente chama de discurso Bolsonarista. O personagem, que administra esse discurso, cria o que eu chamaria de uma patologia social. Não é porque ele seja excepcionalmente louco, excepcionalmente perverso, que ele sofra de uma histeria grave, que ele é insalubre, é pela forma como ele consegue aliciar nas pessoas o que elas têm de pior. É a forma como ele consegue montar uma coisa que Freud chamava de uma patologia artificial, que é ir lá e dizer assim: “Você não tem ódio por algum tipo de estrangeiro? Estranho? Diferente de você? Vamos amplificar esse ódio? Vamos dirigir ele para a figura? Vamos criar uma figura comunista? Vamos criar o petista?”.

Uma característica desse personagem é a sua autenticidade e ele realmente é um caso muito interessante, porque ele não está mentindo. Ele está um pouco como Big Brother, nos mostrando como a gente se ilude, como a gente acha que não é ele. “Ele vai manter a economia porque ele está falando do Ipiranga. Olha só o Guedes. Você está se enganando, você sabe que não é isso”. Assim como: “Esse negócio de armas, violência, é só para campanha, quando ele ganhar vai ser diferente”. Veja, no que ele está se baseando? Em ilusões que ele cria? Não, nas suas ilusões. Ele está jogando com o seu sistema de ilusões e isso é extremamente devastador, porque ele vai até o nosso sistema de afetos dentro da família, dentro das nossas referências simbólicas. Tanto faz se o que ele disse é verdadeiro ou não, se é bom ou não. Os argumentos que ele levanta têm a ver com a patologia específica, é dividir a nossa referência simbólica. Então é um discurso que, por exemplo, vai dar poder e legitimação indireta para a violência sobre quem tem menos poder. Essa história de atacar os quilombolas, de ser misógino, “mas é o jeito tio do churrasco e tal”. Essa é a mensagem daquele inconsequente, aquela que só acredita na palavra dele e acha que as palavras são feitas, assim, de fumaça. Mas o que vai acontecer lá no Brasil profundo vai ser o homem que vai pegar isso e se autorizar para bater em uma mulher. Vai ser o rico que, através disso, vai se autorizar para excluir o pobre. Essa capilarização da violência está acontecendo e ela está acontecendo segundo uma aprovação gozosa do personagem.

“Se eu tivesse que recorrer a um diagnóstico, Bolsonaro é um canalha, mas não no sentido do grande maléfico, e sim da pessoa limitada”
Christian Dunker, psicanalista

Então, do ponto de vista clínico, parece ser alguém que o Lacan faria duas afirmações curiosas: “O pior diagnóstico que há é anormalidade, porque esse não tem cura”; e “a gente deve recusar a psicanálise aos canalhas”. Porque o canalha, quando vem para análise, começa a descobrir do que é feita a canalhice dele e ele vira um bobo. Ele vira uma pessoa débil, uma pessoa sem personalidade. No fundo, se eu tivesse que recorrer a um diagnóstico, ele é um canalha, mas não no sentido do grande maléfico, e sim da pessoa limitada, que não consegue se pôr em dúvida, que não consegue entender o que é um lugar simbólico, não consegue entender o que é representar. É alguém assim, limitado. Uma pessoa muito, muito simplificada do ponto de vista psíquico. 

O SUS tem sido muito elogiado por ser uma rede pública única no mundo, mas, por outro lado, parece que no âmbito da saúde mental há muitas falhas e questões a serem abordadas. Como está a saúde mental pública? A gente vive uma crise de saúde mental que é anterior à pandemia e ela se aprofunda vigorosamente, tanto pela dificuldade de fazer atendimento por telas e da preparação do setor público para isso, quanto pelo fato de que nessa administração a saúde mental vem enfrentando desmontes, desaparelhamentos, parasitagens. Havia uma debilitação do sistema pra enfrentar aquilo que já estava ruim. Hoje se fala na volta do eletrochoque, no retorno de internações em escala patrocinadas por certas associações entre Estado e Igreja, ou seja, o tratamento moral do sofrimento psíquico, que é uma coisa pré-Freud, de achar que seu sofrimento psíquico é falta de Deus, de fé, de Cristo no coração. Isso é uma regressão que só piora o problema, que introduz a culpa individualizada como a gênese do problema, que legitima a prática de violência com internações compulsórias. Está tudo errado no momento em que a gente mais precisava disso. O que se salvou foi a organização dos psicólogos e psicanalistas, que começaram a fazer movimentos para tornar a saúde mental mais acessível para as pessoas, mas em nítido confronto com a política de estado.

Créditos

Imagem principal: Divulgação

Arquivado em: Trip FM / Comportamento / Política / brasil / Trabalho