Qual é o significado de liberdade?

O neurocientista Stevens Rehen, a antropóloga Débora Diniz e a atriz Glamour Garcia discutem liberdade de gênero e conservadorismo

por Redação em

Qual é o significado de liberdade? Segundo o dicionário, em uma sociedade organizada, liberdade é o poder que o cidadão tem de agir livremente, porém, de acordo com os limites impostos pela lei. Ou seja, podemos dizer que liberdade é o direito de não ser oprimido desde que a gente cumpra um dever: o dever de não oprimir. E esse é dever que, infelizmente, a gente ainda não sabe cumprir. Nessa sociedade organizada muitos dos que se gabam de defender a liberdade oprimem negros e índios, oprimem mulheres e a comunidade LGBTQIA+.

E para conversar sobre opressão, liberdade e sobre o direito de sermos, de existirmos, de possuir determinadas características particulares que o neurocientista Stevens Rehen recebe no Trip Com Ciência Débora Diniz, antropóloga e professora licenciada da Universidade de Brasília (UNB). Débora trabalha pela ampliação dos direitos reprodutivos das mulheres e há alguns anos teve que deixar o país por conta do aumento do número e da intensidade dos ataques e ameaças que recebe por conta de seu trabalho. O papo conta também com Glamour Garcia, atriz que teve destaque em 2019 com a personagem Britney, da novela da Rede Globo, "A Dona do Pedaço". Para ouvir o podcast, clique no play abaixo, ouça no Spotify ou leia a entrevista na sequência.

Stevens Rehen: Débora, você atua há mais de quinze anos em temas relacionados a liberdade das mulheres, especialmente no que diz respeito aos direitos reprodutivos. Desde que você começou as coisas melhoraram, pioraram ou ficaram na mesma?

Débora Diniz. Nós nunca vivemos em uma comunidade, em uma sociedade, em que os direitos das mulheres, das meninas, estiveram no centro do cuidada e da preocupação. Então, quando fazemos perguntas sobre se estamos melhores ou piores, depende de para quem e em que ponto de vista. O que sabemos é que neste momento particular – nesse corte histórico, em uma pandemia de Covid-19 – nós nunca vivemos tamanha fragilidade. Porque a pandemia faz uma reviravolta naquilo que já estava desorganizado nas nossas vidas. Ela torna mais agudo as desigualdades prévias. E nós falamos de Covid como se fosse uma doença que afeta os corpos igualmente. E quando falamos das nossas diferenças, falamos talvez dos mais velhos, talvez daqueles que têm comorbidades prévias e a nossa imaginação foi só até onde a ciência foi capaz de ir. Na verdade, os corpos têm fragilidades prévias simplesmente pela forma com que eles estão inseridos nas normas sociais de gênero, de raça e de sexualidade. Nós somos o país com a maior taxa de mortalidade entre mulheres em idade reprodutiva grávidas no mundo. Por quê? Porque essas fragilidades prévias não foram consideradas.

Falando especificamente de você. Existiu um episódio muito marcante em que você teve o direito de ir e vir limitado. Quando você decide pelo exílio? Eu digo que vivo de exterro. O Exílio é uma categoria política e jurídica que exige uma série de configurações específicas. O que vivo nesse momento é a impossibilidade de me aterrar onde considero que pertenço, que tenho meus vínculos. O que acontece? É uma espécie de terrorismo doméstico, uma categoria que vem circulando. Eu sou uma professora universitária que faz pesquisa, produz conhecimento que é engajado no mundo. Onde está a minha agenda de pesquisa? Sempre na questão do aborto, dos direitos reprodutivos, dos direitos sexuais. Mas o que aconteceu comigo é um terrorismo muito de baixo custo. Começaram ameaças de massacre à universidade, de que se eu retornasse à sala de aula os alunos correriam o risco. Eu tenho um dever primário de cuidado não só a mim, mas às pessoas às quais eu tenho responsabilidade.

Quando você saiu, como foi olhar o Brasil de fora? Existe um dentro e um fora aí: porque eu nunca estive tão intensa no debate público brasileiro nas redes sociais, mas eu não estou de corpo presente, mesmo antes da pandemia. Desse lugar de fora, como uma brasilianista ou uma latinista que pensa a América Latina e o Caribe, é possível perceber que nós somos o laboratório do mundo do autoritarismo de gênero neste momento. O poder político que nos governa se rege por um olho de um redemoinho que desde sempre teve gênero como uma das questões centrais. Então se há um encontro de forças políticas diversas contra as liberdades em que se une armamentismo e militarismo, existe também um núcleo silêncios contra o gênero. Somos um laboratório de autoritarismo, mas o autoritarismo patriarcal

A antropóloga Débora Diniz - Crédito: Divulgação

Glamour, desde muito cedo você teve a sua liberdade de ser existir censurada. Sei que é uma questão delicada, mas você pode contar como o entendimento de ser uma mulher aconteceu ou se desenvolveu dentro de você?

Tenho 33 anos, nasci no interior do Estado de São Paulo, acho que tudo isso vem como um grande prefácio. Na verdade, eu sinto que, como muito provavelmente toda mulher e todo homem trans, tenho essa percepção desde muito jovem. Mas vou puxar um pouco da fala da Débora. Esse estado extremo de violência autoritária que a gente vive sempre criou em mim um senso de proteção, um senso de sobrevivência, pois eu sabia que era impossível em determinado momento ser, apenas ser. Eu sinto que a gente ainda vive um momento muito delicado em relação aos direitos das pessoas trans. Quando a gente fala sobre direitos existenciais de uma mulher trans no Brasil a gente está falando de uma guerra existencial de cada cidadão. Eu fui construindo essa trincheira na minha vida.

Débora, o conservadorismo cresceu mesmo ou só ganhou mais meios de expressão?

Eu não chamaria conservadorismo. Estamos falando de um desejo de morte, uma imposição de horror. Isso não é só conservadorismo, a misoginia é muito mais do isso; a homofobia e a transfobia são muito mais do que isso. É uma força virulenta que precisa impor nos corpos o seu código de ódio. Não é uma morte qualquer, é uma morte com tortura. São vários tiros: é a exposição na frente da família, o corpo dilacerado na rua, é aquele corpo filmado e exposto para ser circulado. Nós podemos nomear os corpos trans que assim morreram e as mulheres sis que assim morreram. É o patriarcado na sua expressão mais virulenta de disciplinamento. Eu também queria dizer que o armário é nosso, o armário não é deles. Se alguém está saindo do armário são outros grupos e outras populações. Eles sempre estiveram na sala de jantar da casa grande. O que eles saíram foi da sala de jantar para o WhatsApp.

A atriz Glamour Garcia - Crédito: Divulgação

Glamour. Eu sinto que a minha experiência de vida me diz, de alguma forma, que era mais possível sonhar antes; era mais possível se expressar com tranquilidade. Muitas pessoas vão me perguntar do que estou falando, visto o espaço que as mulheres têm para discutir sobre o próprio corpo. Mas eu acredito que não, que o que existe hoje é um trending topic. Falo isso pela minha própria percepção. Esses tópicos vêm para alimentar essa máquina da mídia. Vivi muito a repressão, vivi muito tempo desejando ser a mulher que hoje eu sou. Sinto que antes a gente tinha o direito de sonhar, de fazer poesia, de conversar. Hoje você se expressa, mas depois aguenta a bucha porque virá um canhão de destruição em cima de você. Acho impressionante como está formalizado hoje o machismo em seu lugar de direito de expressão. O lugar de falar se desvirtuou de uma forma muito absurda Se as pessoas tinham alguma opinião ligada à violência extrema, isso era mais problematizado.

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