POR: Cynthia de Almeida,

jornalista e cofundadora do
projeto Vamos Falar Sobre o Luto?

“Quantos anos ela tinha? Quando
a resposta é mais de 80 ou 90,
parece que a família perde
o direito à dor profunda diante
da sua morte. Mas há pessoas tão
insubstituíveis que o tamanho
do percurso deixa um buraco
ainda maior no peito de quem ficou”

NÃO FICA MAIS
FÁCIL PERDER
ALGUÉM QUE
VIVEU MUITO

“A dor de perder pais ou avós
idosos é menor do que a da morte
de alguém mais novo? Na teoria,
podemos dizer que sim. Mas
é só mesmo na teoria que vale
o consolo de a pessoa querida
ter vivido uma longa vida,
da qual todos ao seu redor
puderam desfrutar”

“Por trás dessa racionalização há
um turbilhão de emoções e afetos
que independem do tempo passado
juntos, das expectativas futuras
ou mesmo das condições de saúde
daquele que morreu. Amamos
e choramos de saudade dos nossos
velhos, assim como de alguém que
teve sua vida abreviada precocemente.
Com olhares diferentes,
mas sentimentos semelhantes”

“Em seu lindo livro ‘Lili, novela
de um luto’, a escritora Naomi Jaffe
fala da longa vida e morte recente
da mãe e revela fragmentos ásperos
de como a sociedade costuma
subestimar a tristeza pela partida
de um idoso. A autora afirma
entender que a idade deveria atenuar
a dor. Mas se recusa esse alívio”

“Junto ao estranhamento provocado pela
resposta sobre a causa de sua morte (uma
infecção nos pés), vem sempre a pergunta
ainda mais incômoda: ‘Quantos anos
ela tinha?’, ao que eu sou obrigada
a responder, já antevendo o olhar aliviado
que se seguirá: 93. Noventa e três anos
de vida simplificam tudo. ‘Ah, bom, então
ela viveu muito, teve uma família linda…’”

“Às vezes penso que poderia até ser
o contrário e que a morte de uma pessoa
muito velha deveria ser como a morte
de uma montanha ou de um totem –
uma perda monumental, um abalo
na estrutura de uma comunidade.
Dona Lili, morta, seria como o fim
de uma árvore frondosa. Foi”

“A verdade é que, por trás dessa
forma leviana de encararmos
as vidas longas que se encerram,
há uma contradição perversa
à nossa permanente celebração
da vida e desejo de prolongá-la:
a visão de que os velhos
já podem morrer”

“A antropóloga e estudiosa
da velhice Mirian Goldenberg
descreve esse sentimento como
‘velhofobia’. Algo que, segundo
ela, já existia, mas saiu do armário
com a pandemia, quando ouvimos
políticos, empresários e autoridades
dizerem abertamente que
‘velho tinha de morrer mesmo’ –
ou que ‘só morreu quem deveria’”

“Nada disso reflete nem de longe
a dor de ver alguém amado
já bem idoso partir. Mas agrava
o luto de quem ficou, que, como
tantos, é desmerecido e descuidado
por quem pode e deve ajudar
a família nesse processo”

“Uma pessoa querida ter vivido muito
não consola o enlutado. ‘O mundo,
tal como o conhecíamos, fica
estranho e diferente. Desde
que nascemos, ela estava lá, e assim
aprendemos que seria a vida:
ela sempre estaria lá’, me disse uma
amiga que perdeu a mãe aos 97 anos

A árvore centenária que tomba
deixa um buraco gigante”