O que vai ser da gente?

por Milly Lacombe
Tpm #174

Oito mulheres que admiramos nos ajudam a pensar que tipo de futuro estamos construindo

O presente não anda lá essas coisas. Tretas, desencontros, solidão, angústias, um corre alucinado em busca de alguma coisa que não sabemos direito o que é, mas pintamos de celestial ainda que, até aqui, pareça apenas infernal. O modo como estamos vivendo nos afasta uns dos outros, fazendo com que diferenças sejam naturalizadas em preconceitos e intolerância. Então, por alguns instantes, vamos deixar essa bagunça de 2018 para lá e pousar em 2038. Se, como sugeriu o poeta James Balwin, a história não é o passado, é o presente, como podemos mudar o que estamos fazendo hoje em nome de um futuro mais doce, mais humano, mais conciliador?

Para pensar a vida nesse arco de tempo, convidamos oito mulheres que admiramos e que têm representatividade em suas áreas de atuação. Ao lado delas, buscamos entender como estaremos nos relacionando e trabalhando, como lidaremos com os gêneros, com a sexualidade, como resolveremos a desigualdade, democratizaremos os privilégios e expandiremos os direitos, como buscaremos a felicidade e entenderemos a maternidade. Todas essas questões vieram pintadas em cores bastante fortes nesse nosso maluco exercício de projetar criativamente o amanhã. Com vocês, para falar do futuro, a estudante de artes cênicas Domenica Dias, a poeta Alice Ruiz, a programadora Lauren Pachaly, a obstetriz Ana Cristina Duarte, a psicanalista Noemi Moritz Kon, a youtuber Nátaly Neri, a ativista 
Tabata Amaral de Pontes e a escritora e psicanalista Regina Navarro Lins.

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Aos 18 anos, a filha da advogada Eliane Dias e do rapper Mano Brown, Domenica Dias, mantém uma grife de street wear junto com o irmão, Jorge, e está cursando artes cênicas na Unesp. Sua vivência, rica em contrastes, lhe deu uma visão muito madura a respeito da complexidade do mundo e dos caminhos que precisamos percorrer até um ambiente mais igualitário.

Tpm. Você tem medo do futuro?

Domenica Dias. Bastante. O mundo inteiro tá nessa onda conservadora, e a gente tem que resistir. Tem a ameaça de Bolsonaros por aí...

Já foi mais otimista? Estava muito otimista uns três anos atrás, quando comecei a descobrir o que era feminismo, o que era movimento negro, o que era militância, o que era movimento estudantil. “Nossa, é isso! Agora todo mundo sabe, agora vai dar tudo certo.” E aí o tempo foi passando e não é bem assim.

Existe futuro sem feminismo? Acho impossível. Sem o feminismo negro, muito menos. As mulheres negras estão na base e, sem ela, não existe o resto.

A Angela Davis afirma que quando uma mulher negra se move, toda a estrutura da sociedade se move com ela. 
É isso. Minha mãe sempre falou o que eu sou e por que as coisas acontecem como acontecem para mim.

Acho que todas nós acabamos tendo que nos impor enquanto mulheres e feministas dentro de nossas próprias casas também. É um trabalho de todo dia, a gente conversa, bate numa tecla e aí, aos pouquinhos, eu vou vendo os resultados. De vez em quando meu pai dá uma entrevista e eu falo: “Humm... Isso fui eu que eu falei para ele um dia”. Aí ele vai e fala para 5 mil pessoas num palco e eu penso: “Que bom”. É difícil, porque ele vem dessa construção que o homem negro tem de ser muito másculo, ser bravo, ser forte o tempo inteiro.

Como a periferia pode mostrar o futuro? Mostrando a realidade do Brasil hoje. A periferia diz: “Ó, o país que você vive é este aqui. Eu existo, as pessoas que moram longe de você são assim, a gente vive assim”. Fiz o ensino médio numa escola considerada de elite e as pessoas viviam literalmente numa bolha. Tinha gente que morava no Morumbi, do lado da [favela de] Paraisópolis, e que não tinha ideia do que acontecia lá. As pessoas não tinham a mínima noção do que é diferença, do que é preconceito, do que é privilégio.

Privilégio é perigoso porque o privilegiado passa a achar que suas conquistas são causadas por mérito, e o fracasso daquele que não é privilegiado, por demérito, preguiça, falta de capacidade. Todos os cidadãos têm direitos, mas uma parte da sociedade tira e pega para ela. Aí essa pessoa tem que se esforçar dez vezes mais para conseguir alguma coisa.

E normalmente é o privilegiado que fala em meritocracia. Ouvi tanto isso na escola... Se a gente tivesse os mesmos direitos e as mesmas condições, a meritocracia seria perfeita, mas não é bem assim. Meritocracia no Brasil não funciona, não tem como, a maior parte da população está em desprivilégio – e nem sei se essa palavra existe. Para justificar, eles contam a história, sei lá, de um cara que ia para faculdade de canoa, que andava mais 10 quilômetros de bicicleta e, depois de tanto esforço, se formou – 
“E você aí tá reclamando de barriga cheia”. Não! Esse cara não tinha que ter passado por isso. As pessoas se matam pra conseguir uma coisa que você faz com facilidade porque é privilegiado, e não deveria ser assim. A minha mãe fez faculdade em São Caetano do Sul, ela cruzava a cidade de segunda a sábado, pegava ônibus, trem e metrô com uns puta livros de direito de 
1 quilo debaixo do braço, e as pessoas: “Ah, tá vendo! Ela conseguiu e vocês tão reclamando”. Ela não tinha que passar por isso, e ela fez faculdade depois de ser mãe, depois de casada. Se ela tivesse conseguido fazer na minha idade, hoje poderia ser muito maior do que já é. Acho que ela é realmente muito guerreira, mas não acho que deva ser assim para mim. A coisa que mais me irrita nas pessoas privilegiadas é usar aqueles que sofreram como justificativa dos privilégios delas, tipo: “Quem quer, consegue”. É um em um milhão que tá conseguindo. E um em um milhão não vale. Não é a exceção que vale.

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Alice Ruiz tem 72 anos, começou a escrever contos aos 9, versos aos 16, e publicou seu primeiro livro, Navalhanaliga, aos 34, em 1980. Mas, antes disso, desde os anos 70, escrevia sobre questões feministas, as quais abundam em sua obra – e aqui, em nossa conversa.

Tpm. Por que as histórias sobre futuro são sempre distópicas?

Alice Ruiz. Tenho a impressão de que a literatura, as artes em geral, servem como alerta. Se formos nessa direção, pode dar nisso. O conto da aia é terrível: uma perspectiva sem futuro de futuro para a mulher. Ao mesmo tempo, é uma espécie de caricatura dos papéis que existem hoje. Infelizmente a gente ainda vê a mulher confundida mais com função do que com a personalidade. A Simone de Beauvoir falou que sempre haverá pressão do sistema no sentido de limitar a mulher.

O que fazer? A nossa revolução é constante, todas as gerações têm que estar atentas. Além de toda a trabalheira que dá lidar com a vida prática e com a nossa biologia, que é mais complexa do que a do homem, ainda tem essa missão de estar sempre disposta a ser guerreira da própria causa. Nós sempre estamos ameaçadas.

A saída passa pela união das mulheres? Sim, mas o sistema, sabendo disso, cria uma competição artificial entre a gente. É muito esperto da parte dele, e como a gente vive desde pequena dentro da cultura do machismo, e os homens também, o machismo pega a todos. A gente mal percebe essa manipulação que nos coloca uma contra as outras. Se a gente se une, não sobra para ninguém. Se a gente se une, somos capazes de minar esse pensamento capitalista do lucro imediato e voltar para o que realmente importa, que é a salvação da espécie, do planeta, do meio ambiente.

Estávamos indo bem… A gente tinha avançado muito, mas isso nunca interessa ao sistema. O que interessa a ele é ter uma classe submissa, e a submissão da mulher gera pessoas submissas, porque ela dá o exemplo. As mulheres serão submissas ao homem, e os homens, ao sistema.

Temos hoje um governo que praticamente nos eliminou do executivo. Poucas coisas conseguem ser mais retrógradas do que a forma como esse governo está se expressando, mas ele tirou completamente a mulher de cena e as únicas que estão lá são absolutamente manipuladas: estão convictas de seu papel secundário. É muito perigoso isso. A mensagem é clara: você só vai ter um pouquinho de expressão se rezar pela nossa cartilha e defender as nossas ideias. E as nossas ideias consistem em você ser inferior. Aonde podemos chegar desse jeito?

Aonde? Eu tenho absoluta convicção de que, assim como a mulher é modelo de submissão para toda a sociedade, somos também um modelo de libertação. Se a gente se libertar, os homens também se libertam. Os homossexuais se libertam. O diferente se liberta.

É possível sonhar com um 2038 sem preconceitos? Que coisa linda, que sonho, que vontade de acreditar num mundo sem preconceitos. Talvez a criança consiga, talvez a pessoa jovem consiga. Mas nós não fomos criadas para respeitar as diferenças, e é através disso que eles conseguem nos desunir.

Como construir um mundo com mais poesia e menos ira? Fazendo poesia. Fazendo coisas belas. É horrível dizer isso, mas veja o que nossa arte produziu no período da ditadura militar. É uma resposta, uma reação. E é isso que a gente tem de fazer. Eu senti agora, depois dos primeiros momentos do golpe, em meados de 2016, o quanto minhas amigas e amigos artistas começaram a produzir. É reagir com arte, com beleza, com uma proposta de outro olhar. Para dar energia e força para as pessoas, e para nós também. Quando a gente sente que está produzindo e unido, nos sentimos mais fortes. Quando a gente sabe que está passando força para as pessoas, também ficamos mais fortes.

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Lauren Pachaly, 37 anos, é programadora e gerente de marketing do Google no Brasil. Ela enxerga nos algoritmos o caminho para um futuro feminino e defende a importância de mais mulheres nos bastidores da tecnologia.

Tpm. A revolução vai começar pelas mulheres?

Lauren Pachaly. A gente vai detonar. Acho que quando as mulheres entenderem o poder que elas têm, é viagem só de ida. O poder de transformar. Se conseguirmos aumentar a autoestima delas, empoderar e mostrar onde está a informação, daqui a 20 anos estaremos numa situação diferente.

Como levar a revolução a todas as camadas sociais? Através de histórias. Nos conectamos por elas. Entrei nesse mundo por meio do YouTube EDU, um projeto de vídeos de educação. É preciso criar uma nova forma de ensinar. A gente deve achar essas mulheres lá da pontinha do Brasil que estão fazendo a diferença e contar a história delas para o mundo, trazer sua força como exemplo. As mulheres deveriam entrar de vez na engenharia, parar de olhar como profissão de homem. O conhecimento de tecnologia te permite questionar tudo. Para onde o mundo está indo? Qual é a próxima evolução que a gente vai viver?

Como lidar com o machismo nessa área? Por muito tempo disse que não sofri assédio, mas não tinha consciência de como é difícil ser mulher. O que amo em tecnologia é que um bom código é inquestionável, não é subjetivo; se minha lógica for boa, o meu algoritmo vai ser mais rápido que o seu. Sorry. Então, consegui me impor com o meu trabalho. 

Os algoritmos vão nos controlar? Vai depender da gente, da mulherada que precisa entrar na engenharia, e de toda a diversidade que precisa fazer parte desse mundo. A tecnologia é parte da nossa vida, assim como matemática, português, história. As mulheres precisam entender que existe uma oportunidade gigante de carreira, de conhecimento. Tecnologia é coisa de mulher, sim, a gente arrasa, tem sensibilidade, nosso algoritmo pode ser irado, podemos trazer beleza pra ele. Sinto falta de programar porque meu algoritmo era muito lindo [risos].

Como incluir as pessoas da comunidade nesse barco? A gente precisa desmistificar. Os adolescentes são viciados em games na periferia. Eles nem imaginam, mas sabem mais de tecnologia do que eu. Todo mundo pode entrar nesse barco. Hoje, somente 29% dos estudantes de engenharia são mulheres e esse número não muda desde os anos 2000.

São as mulheres que não se interessam por essa área ou essa área é que não se interessa pelas mulheres? Fomos educadas e motivadas a não considerar essa área como opção. Bora considerar, gente. A gente precisa de mais engenheiras mulheres, engenheiros gays, engenheiros negros; de diversidade e inclusão. E precisamos entender como essa nova geração interage. Imagino a minha avó olhando para minha mãe: “Sai da frente da TV, a gente não conversa mais!”. E sobrevivemos à TV. Como vamos sobreviver ao celular? Olho meu filho de 6 anos e me dá nervoso, mas preciso tentar entender. Existe vida no algoritmo.

Como será o mundo em que sua filha, que hoje tem 2 anos, vai trabalhar? Espero que ela possa escolher o que quer ser, quem quer ser, com quem quer ficar, que possa sair na rua sem ter medo, que tenha um salário justo, que saiba questionar, que tenha opinião, que não seja uma pessoa alienada. Gostaria muito que em 2038 fôssemos uma sociedade que questiona com embasamento, com educação, qualquer que seja o desafio que a gente vá ter lá.

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Mãe de dois filhos, Ana Cristina Duarte, 52 anos, é obstetriz, educadora perinatal e palestrante sobre parto humanizado. Ela reflete e discute sobre como a gestação, o nascimento de bebês e o período posterior ao parto acontecem hoje no país.

Tpm. O que nos falta saber a respeito da gravidez?

Ana Cristina. A sociedade ainda vê a gestação, o parto e o pós-parto quase como uma obrigação, mas esse é um dos momentos mais delicados da nossa vida, em que precisamos de ajuda sob todos os aspectos. Uma atenção holística com a saúde, que cuide da mulher como um todo, das necessidades não só físicas. O feto cresce sozinho, a questão é como sentimos as transformações, se estamos dando conta. Não tem muito quem ou o que nos suporte nessa hora, somos nós por nós mesmas. Então, faz falta o cuidado.

O que é importante nesse momento? A maioria de nós, mulheres, não sabe muito bem o que está ganhando ou perdendo com os processos fisiológicos, físicos, emocionais, afetivos, espirituais, psicológicos que acontecem durante a gestação, o parto, pós-parto e a amamentação. Dependendo de como eles forem vividos, podem ser a maior e mais transformadora experiência da vida ou o inferno. Existe uma potência no gestar, no parir, no amamentar comparável à energia nuclear, porque ela se expande infinitamente. Não se fala disso e a gente tem que se adequar a um modelo formatado de sociedade.

É como se a mulher fosse tratada como hospedeira? Hoje o foco é o bebê, então a mulher é a hospedeira dele, que é seu produto perfeito, o que a sociedade espera dela. O herdeiro precisa nascer com saúde, estar bem cuidado, e a ideia por trás disso tudo é a cesárea marcada, que vai garantir a vida desse bebê. 

Por que o parto humanizado? A maternidade é uma experiência muito potente, e o parto é um portal muito importante, poderoso, que a mulher atravessa e tem vários significados. A gente não sabe ainda tudo que está envolvido na descarga hormonal do parto e qual a importância dela ao longo da vida. O bem nascer não é só uma questão de sobreviver, queremos que todas tenham a experiência mais potente e linda que puderem.

É um momento de expansão da consciência? O parto e a amamentação são. O primeiro é uma explosão de consciência que não se repete, mas deixa resquícios positivos para o resto da vida da mãe e do bebê. O puerpério [período logo após o parto] talvez seja o momento mais solitário da vida da mulher. É uma caverna emocional, uma fase de introspecção. Os primeiros três meses são um prolongamento da gestação. No último deles, acontece a mágica de o bebê se interessar por outras pessoas, e o pai consegue levá-lo pra dar uma volta, deixar a mulher dar uma dormida.

Como seria a sociedade que respeita os direitos da mulher? Quatro meses de licença-maternidade não dão para nada; seis seriam o mínimo. “Ah, mas isso custa caro para a sociedade.” E o que o Estado gasta depois com as crianças que foram prejudicadas por desmame precoce, por todas as doenças que vêm em decorrência disso? Se queremos uma sociedade justa, igualitária, em que as pessoas tenham a chance de ser felizes, temos que começar com o nascimento digno e uma primeira infância de qualidade. Não damos isso e depois vamos tampando buracos, construindo cadeias.

É respeitar o direito de escolha da mulher? Não consigo pensar numa sociedade justa na qual as mulheres não possam escolher quando elas querem ser mães, na qual sejam punidas por fazer sexo. Começa pelo direito de escolher quando, como, com quem engravidar, quantos filhos ter – ou não. A base da justiça para as mulheres é ter filhos que tenham sido desejados e que isso seja o começo da criação.

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Noemi Moritz Kon, 57 anos, autora do livro Freud e seu duplo: reflexões entre psicanálise 
e arte, é psicanalista e doutora pela USP e investiga a relação da obra do fundador da psicanálise com 
as questões do feminino.

Tpm. O que te faz ser otimista em relação ao futuro?

Noemi Moritz. A potência do encontro psicanalítico. Meu primeiro paciente se chamava Felipe e a essa altura ele deve ter 40 anos, porque naquela época ele tinha 7 e vinha com a queixa da mãe de que ele não falava. O Felipe entrou, bagunçou a sala, a gente brincou. Quando saiu da sala, o Felipe falava. A mãe olhou pra mim e falou: “O que você fez?”. Eu não fiz nada, cara, não tenho a menor ideia do que possa ter acontecido. Esse é um encontro inaugural pra mim, de atravessamento de uma potência linguageira.

Ter voz é essencial, é disso que as minorias políticas precisam? É assombroso que até há pouco tempo não havia praticamente material sobre os efeitos nefastos do racismo contra o negro na formação subjetiva, não só de negros, mas de brancos também. Nosso mundo trata certos lugares como se fossem de uma ordem natural. Não é. Fazemos assim para mantermos certas superioridades, porque para alguns privilegiados vale a pena a manutenção dos seus privilégios.

Precisamos de um futuro negro? De um futuro colorido. Tem uma pesquisa que pediu para as pessoas falarem de forma espontânea a sua cor. Ela traz mais de uma centena de cores – de azul, verde, preto, queimado, café com leite. E, mais do que tudo, tem uma coisa de um colorido no sentido de que todas as cores cabem. Esse é um marcador de diferença fundamental na nossa sociedade. As diferenças nos fazem mais ricos, com mais perspectiva de conhecimento; a desigualdade é a perpetuação de uma diferença como menor.

Em 20 anos, seremos menos racistas, menos machistas, menos misóginos? Estava lendo A história da vagina e elas 
começam falando do pênis e do clitóris. Como a ideia do clitóris foi por muitos séculos de que era um minipênis. Freud o usa como a desvantagem das mulheres: porque elas teriam um minipênis, se sentiriam menores. Agora sabemos que as estruturas de um clitóris não são diferentes das do pênis, e que o que a gente vê é a pontinha do iceberg, e é um iceberg bem do grandão. Freud fala que as mulheres teriam inveja do pênis, e que os homens, por sua vez, abandonariam o seu amor – sempre heterossexual – por sua mamãe para manter intacto o seu corpo, para preservar o seu pênis, que dá tanto orgulho e prazer. Nesse momento, Freud é um teórico com a idade de um menino na fase fálica, muito orgulhoso do seu pintinho. Por muito tempo a psicanálise manteve esse lugar de que na verdade a mulher jamais amadurece, enquanto o homem, sim. Esse modo de apresentar uma mulher é estarrecedor, e não faz tão pouco tempo que a gente diz abertamente: “Isso não, Freudão. Você é um cara muito do bacana, mas, quanto à questão de gêneros, há um equívoco profundo”. Isso é sinal de que, pelo menos com relação à diferença de gêneros, a gente tem avançado.

Como avançaremos mais? Não me parece que exista o futuro da mulher sem que a gente pense simultaneamente no futuro do homem. Temos cromossomos diferentes, nascemos com corpos diferentes, genitais diferentes, mas as nossas funções, comportamento, performatividade são marcados contextualmente. Aquilo que pudermos mudar para homens, mudará também para mulheres. Não há uma predeterminação que diga respeito a homens e mulheres. A mulher tem vagina, útero, mas eu posso ser um homem trans, preservando a minha vagina e o meu útero, e engravidar.

Seguiremos buscando a felicidade? Freud fala que o aparelho psíquico do humano não é feito para a felicidade. No máximo, a gente diminui a infelicidade. A gente fica feliz, mas a felicidade não se perpetua no momento seguinte e não vai demorar para que estejamos atrás de alguma outra coisa. Nesse sentido, a psicanálise é esperançosa. A gente não vai ser feliz o tempo inteiro, a gente vai ser eventualmente feliz, mas com a esperança de que a gente possa contar a nossa vida de outras formas e, de fato, transformá-la. Isso é de verdade.

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Nátaly Neri, 23 anos, é estudante de ciências sociais e comanda o Afros e Afins. No canal do YouTube, que conta com mais de 350 mil seguidores, ela aborda temas que discute na universidade e nos espaços de militância negra e feminista, além de também falar de moda e beleza.

Tpm.  As tretas podem nos levar a um futuro melhor?

Nátaly Neri. Sou a favor delas. A raiva talvez impulsione muito mais as pessoas do que a calma ou a conversa. Ela é um sentimento que faz você querer quebrar tudo. O amor é legal, move, mas é: “Ah, eu amo, né?”. Conheço os dois porque já estive no YouTube com ódio e hoje estou tentando cuidar da minha sanidade mental. Temos falado muito sobre ativismo gentil, isso é legal. Tem gente que não aguenta sair na rua e falar: “Sou uma guerrilheira, aí vem revolução”. Mas é fundamental para um futuro melhor contar com a galera que tenha estômago para apontar um dedo na cara, para falar alto, para botar o pé na porta. As duas coisas têm que coexistir. Vivo com essa dualidade: de um lado, quero enfiar o pé na porta, quebrar tudo, quero revolução agora, mas, por outro, tenho 23 anos, quero viver, dormir em paz. Às vezes, quero só me preocupar com coisas do tipo: “Ai, meu deus, cadê o meu batom?”.

Tretar não é necessariamente um discurso de ódio. Tô falando da galera da treta do bem, que problematiza, que faz textão. Essas pessoas não podem ser abolidas porque isso levaria a gente para um futuro apático. Quero um amanhã de pessoas ativas que afetem umas às outras. No futuro ideal, o que tenho entre as minhas pernas não deveria definir de forma absoluta o caminho que vou seguir, as roupas que vou vestir.

Você quer transformar o quê? Não posso e não devo ser responsável por transformar outras pessoas, porque essa é uma responsabilidade grande demais para um indivíduo e não quero isso nas minhas costas. É uma obrigação da sociedade. Sou praticamente uma adolescente. Como vou ter responsabilidades tão gigantes como transformar a mente de um bolsominion?   

Existe futuro sem a democratização do conhecimento? O conhecimento acadêmico político e científico é absolutamente elitista. Mas estou na academia e incentivo todas as pessoas a entrarem. A única saída é a gente estar lá dentro produzindo conhecimento. Cientistas já chancelaram muita porcaria: racismo e homofobia. Eram pessoas que diziam que indígenas não tinham alma. Então a gente tem que questionar todo o conhecimento, tem que entender onde e por quem ele é produzido.

Qual a discussão que não podemos deixar de ter? O povo diz: “Você quer o fim do capitalismo, mas tá aí ganhando dinheiro”. Gente, preciso ganhar para estudar porque hoje o conhecimento tem um preço. As pessoas perguntam: “O que você acha do fim da desigualdade de gênero?”. Então, querido, vamos discutir primeiro capitalismo, gênero e depois a gente debate o fim da desigualdade de gênero. Paguei R$ 2 mil em um curso sobre feminismo interseccional e latino-americano que transformou a minha visão de mundo, mas foi caro pra caramba e não teria essa grana se não trabalhasse. As pessoas dizem: “Nátaly, quero que você destrua o capitalismo agora!”. Sei que o capitalismo precisa ser destruído, mas o que vou fazer? Tenho 23 anos, sou taurina, não tenho virgem no meu ascendente, não sei me organizar [risos].

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Tabata Amaral de Pontes, 24 anos, cresceu na periferia de São Paulo, representou o Brasil em cinco olimpíadas internacionais de ciências e se graduou na universidade Harvard (EUA). A paulistana é cofundadora do VOA!, projeto que prepara alunos de escolas públicas para olimpíadas científicas; do Acredito, movimento de renovação política; e do Mapa Educação, que luta por um ensino de qualidade para todos os brasileiros.

Tpm. Como conseguiu furar a bolha?

Tabata Amaral de Pontes. Quando tinha 13 anos, ganhei bolsa para uma escola privada no centro de São Paulo. Sou de um bairro chamado Vila Missionária, que fica a uma hora e meia dali. Saí de um cenário no qual você tinha que conseguir um emprego no shopping e entrei numa realidade na qual todo mundo falava em fazer faculdade, talvez até no exterior. E ainda havia questionamentos sobre sua felicidade e sobre o seu bem-estar.

O que mais você percebeu ao entrar na bolha? Meu pai tinha vícios e doenças psicológicas, era a pessoa que não queria nada com nada, o vagabundo. Fui parar num ambiente em que uma pessoa com as mesmas doenças dele era aquela que precisava de atenção, de carinho, de cuidado. “Por que os pais dos meus amigos são tratados dessa maneira e o meu de outra?”, me questionava. E aí vinha outra pergunta que doía mais: “Por que ganhei uma bolsa e deixei todo mundo da minha escola pública?”. 

Quando seu pai morreu? Aos 39 anos, quatro dias depois que fui aceita em Harvard com bolsa. Ele era a pessoa que mais acreditava em mim.

De quem é a culpa? Achava que era das pessoas ricas que viam tudo isso e não faziam nada. Mas entendi que há pessoas boas e outras sem noção nenhuma em todo o canto da sociedade. Depois, comecei a achar que a culpa era do governo. Agora, acho que não é de ninguém, mas de todo mundo. É a estrutura em que a gente vive, são as regras que se tem para mulheres e para homens, para negros e para brancos, para todo mundo.

O que nós precisamos transformar agora? Tenho muita coragem para lutar contra o racismo, a homofobia, o machismo, mas um pouco menos para combater o capitalismo porque, ao criticar o sistema, as pessoas dizem que você é comunista. E ao criticar as regras, teria medo de as pessoas acharem que sou louca. A maior ofensa que você pode cometer é desacreditar aquilo que uma mulher está falando. É como você excluir aquela pessoa e dizer: “Você não é nem capaz de expor uma opinião”.

É conveniente que seja assim. Meu pai foi morador de rua e ver uma pessoa que está ali, pedindo comida, me faz muito mal. Se a gente não desenvolve certa capacidade de ignorar aquilo, de ficar menos sensível, não consegue viver. E fazemos isso de uma maneira coletiva e ficamos menos sensíveis de tal maneira que naturalizamos as coisas erradas.

No futuro seremos menos humanizados? Os índices de felicidade são sempre mais altos nos países menos desenvolvidos, e acho que isso tem a ver com o quão humano você ainda consegue ser. Cada vez que você olha para um morador de rua e não sente nada, um pedacinho seu vai embora. Cada vez que trata alguém de cor ou gênero diferente como inferior, um pouquinho de você morre. É como uma doença. Parece que tem um pouquinho mais de humanidade na periferia de São Paulo do que no centro, sabe? O desafio é perguntar como a gente se desenvolve, como cria uma sociedade mais ética e mais inclusiva, sem perder essa humanidade.

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Regina Navarro Lins, 69 anos, é psicanalista e autora de 12 livros, entre os quais A cama na varanda. Uma das maiores referências brasileiras quando o assunto é relacionamento e sexualidade, faz palestras por todo o país, participa do programa Amor & sexo, da TV Globo, e do Em pauta, da Globonews.

Tpm. No futuro as relações serão abertas serão mais comuns?

Regina Navarro Lins. Na história da humanidade, só tivemos 20 anos em que o sexo foi realmente livre: de 1962 a 1982, entre a pílula e a Aids. Depois, começaram as preocupações com a doença. De quatro anos e meio pra cá, comecei a receber no consultório um tipo de conflito que nunca tinha visto: uma das partes propõe abertura da relação, e a outra se desespera. São casais de todas as idades, que estão juntos há três, dez, 40 anos. Mas para as pessoas se libertarem disso, têm que ter coragem.

O que seria a evolução do amor romântico? Um amor sem idealização, sem você atribuir à outra pessoa características que ela não tem. Quanto maior for a diferença entre a idealização e a realidade, maior é a frustração e o ressentimento que vem daí. Acredito que vai surgir um tipo de amor sem a exigência de exclusividade.

O futuro vai ser menos exclusivista? Acho que vão existir pessoas que vão querer se limitar ao casal, mas acredito que a maioria vai optar por relações livres. Você chega à idade adulta não sabendo o que deseja realmente e o que aprendeu a desejar. Então, às vezes, faz escolhas achando que são suas, mas não são. Elas já foram totalmente determinadas por um condicionamento cultural.

Para onde essa mudança pode nos levar? O sexo no casamento é uma tragédia, é onde menos se transa. As pes-soas sofrem muito, mas ninguém conta. O que mais escutei a vida inteira foi a mulher dizer no consultório: “Amo meu marido, não quero me separar, mas não quero transar com ele”. Gente, tem alguma coisa errada nesse modelo de casamento. Nossa cultura devia ensinar a capacidade de ficar bem sozinho, que é a condição humana, mas prega que você tem que encontrar a alma gêmea, a pessoa que te completa, como se fosse recuperar aquela plenitude, aquela satisfação.

Como começar? As crianças deveriam ser educadas desde cedo a desenvolver a capacidade de ficar bem sozinhas na vida adulta. E não é como uma paciente me disse: “Semana passada, o meu marido foi a São Paulo e fiquei muito bem sozinha”. É ter projetos, amigos, liberdade no sexo.

Qual é o futuro dos gêneros? Acho que a gente caminha para o fim do gênero e isso é muito importante. Porque as pes-soas foram muito mutiladas. “Homem não chora”, “ele não faz isso, mulher não faz aquilo”. Sempre foi muito marcado o que é masculino e feminino. Isso não existe. Esses conceitos são criados pela sociedade patriarcal para aprisionar ambos os sexos em estereótipos. Todos nós, homens e mulheres, somos fracos e fortes, corajosos e medrosos, passivos e ativos.

O que representaria na vida da mulher o fim da opressão? A gente tem que caminhar para uma sociedade de parceria. Hoje, há muita fragmentação no movimento feminista, mas em 20 anos a gente poderá ver homens e mulheres se aliarem para romper com a mentalidade patriarcal porque ela também os oprime.

A comunicação também tem que evoluir, e o sexo é uma forma de comunicação? Sim, e bastante profunda, a ponto de poder transformar as pessoas. O sexo foi visto como abominável. Todo xingamento tá ligado a ele. A criança, desde muito pequena, aprende que ele é perigoso e sujo. A gente tem que batalhar para se libertar.

E o futuro da sexualidade? Não tenho dúvida de que a tendência é a bissexualidade. Acho que pode demorar 20, 30 anos, não dá pra precisar, mas, pelos sinais, é para lá que vamos.

Créditos

Imagem principal: Vitoria Bas

Luiz Maximiano

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