Bill, hoje a louça é sua

por Melinda Gates

Para Melinda Gates, a igualdade de gêneros só será conquistada quando lavar, passar e cozinhar for obrigação de todos

Melinda Gates, mulher do fundador da Microsoft, gosta de dizer que é, sobretudo, otimista. Em entrevistas, posts nas redes sociais e até no nome de seu blog, “A Otimista Impaciente”. Mas no começo desta semana ela pegou o mundo de surpresa. Disse que seus filhos, os amigos deles e qualquer outro jovem que acredite que as meninas desta geração vão ter vidas muito diferentes das de suas mães e avós estão errados. “A menos que as coisas mudem, as meninas de hoje vão passar centenas de milhares de horas mais que os meninos fazendo trabalhos não remunerados, simplesmente porque a sociedade assume que é responsabilidade delas.”

A frase faz parte da carta anual que ela e o marido publicam para divulgar as metas e desafios da Fundação Gates. Melinda é uma ferrenha defensora das causas feministas. Em entrevistas sobre a carta deste ano à imprensa americana, ela contou que, na sua casa, coloca Bill para cozinhar. Ele diz saber fazer uma bela sopa de tomate. E ela criou uma regra para garantir que as tarefas tenham divisão justa. Depois do jantar, marido, mãe e filhos só saem da cozinha juntos – e depois de por tudo no lugar.

Este foi o primeiro ano em que o casal decidiu assinar mensagens separadas. Bill falou sobre a necessidade de criarmos fontes de energia limpa e barata. E Melinda, da urgência de uma nova divisão das tarefas domésticas entre homens e mulheres no mundo todo. É uma lição de feminismo, escrita de modo didático, empático e muito fácil de entender. Esta também foi a primeira vez que eles dirigiram a carta a estudantes de ensino médio. Fizeram isso porque acreditam que está nas mãos dos jovens a chave para a revolução que o mundo precisa. E também porque a mensagem foi criada a partir de uma pergunta que ouviram de um aluno de uma escola que visitaram no estado americano do Kentucky: “se você pudesse escolher ter um superpoder, qual seria?”.

Tpm traduziu o trecho de Melinda e o reproduz a seguir. Você também pode ler a versão original da Gates Letter. Embora a Fundação, que investe em projetos de saúde e educação nos países mais pobres do planeta, exista desde o ano 2000, foi só nove anos depois que Bill e Melinda iniciaram a tradição da carta anual. O empurrãozinho foi dado por Warren Buffett, o lendário – e bilionário – investidor americano que escreve longas e divertidas cartas a seus acionistas desde os anos 70 e que, com uma generosa doação realizada em 2006, duplicou os recursos da Fundação Gates (que hoje são de cerca de US$ 50 bilhões).

Mais tempo
Tenho certeza de que você já viu outras imagens como esta. Acho todas hilárias. E elas me lembram de como as coisas mudaram desde que eu era uma garota em Dallas, nos anos 1970, quando a gente assistia Mulher Maravilha e não Supergirl.

Meus irmãos, minha irmã e eu tínhamos um monte de amigos cujas mães, como costumávamos dizer, ficavam em casa ao invés de trabalhar (embora hoje eu saiba que ficar em casa é trabalhar - e trabalhar muito duro, apesar de não receber nada por isso).

As mães da nossa vizinhança pareciam passar a maior parte do tempo na cozinha. Eu me interesso por design, então, hoje sei que elas tinham cozinhas do tipo “triângulo”, com geladeira, pia e fogão dispostos para facilitar ao máximo a tarefa como, por exemplo, fazer um omelete. O design de cozinhas foi uma grande moda ao longo do século 20. Em uma demonstração, uma mulher preparava dois bolos de morango idênticos (daqueles com recheio e cobertura), um em uma cozinha padrão e outro em versão melhorada pelas últimas tendências de design. Na primeira, ela precisava 281 passos para terminar o bolo e, na segunda, só 41. A cozinha sozinha tornava o processo 85% mais eficiente!

O que a cozinha-triângulo não fez, no entanto, foi desafiar a ideia de que as mulheres deveriam passar a maior parte de suas vidas em uma cozinha, traçando e retraçando seus passos e um triângulo aparentemente sem fim.

Mas, estamos em 2016 e não nos anos 1970 ou 1950. Se você é americano, três a cada quatro mães na sua escola têm um emprego. Seu pai provavelmente cozinha alguma coisa (o Bill sabe fazer sopa de tomate). Há 35% de chance de que você more com apenas um de seus pais (o que significa que ele ou ela tem de fazer todo o trabalho dentro e fora de casa). Talvez você divida o seu tempo entre duas casas e quatro adultos, talvez você tenha duas mães (ou dois pais). O mundo mudou muito.

Ouvi dos meus filhos e dos amigos deles - e também li nas pesquisas sobre como os jovens vêem o futuro -- que a maioria das meninas não acha que deve se submeter às mesmas regras que mantiveram suas mães e avós em casa. E que a maior parte dos meninos concorda com elas.

E lamento dizer isso, mas, se você também pensa como eles, está errado(a). A menos que as coisas mudem, as meninas de hoje vão passar centenas de milhares de horas mais que os meninos fazendo trabalhos não remunerados simplesmente porque a sociedade assume que é responsabilidade delas.

Trabalho não remunerado é literalmente isso: é trabalho, não diversão, e você não recebe um centavo por fazê-lo. Mas toda sociedade precisa dele para funcionar. Você pode classificá-lo em três categorias principais: cozinhar, limpar e cuidar das crianças e dos idosos. Quem faz seu almoço? Quem cata as meias suadas da sua mochila da academia? Quem fiscaliza a casa de repouso para garantir que seus avós recebam tudo o que precisam?

Mas, esse trabalho tem de ser feito por alguém. Só que a imensa maioria das pessoas espera que as mulheres o façam, de graça, queiram elas ou não.

Isso é verdade em todos os países do mundo. Globalmente, as mulheres passam quatro horas e meia por dia, em média, fazendo trabalhos não remunerados. Os homens dedicam menos da metade disso. Mas, a verdade é que o fardo desse tipo de trabalho é mais pesado para as mulheres dos países pobres, onde as tarefas domésticas requerem ainda mais tempo e a diferença entre homens e mulheres é maior. Na Índia, para citar um exemplo, as mulheres dedicam mais ou menos seis horas aos trabalhos domésticos, e os homens só uma.

A maioria das meninas de países pobres não tem uma cozinha-triângulo. Em vez disso, elas se movimentam em longas linhas retas, para frente e para trás, porque elas têm de andar quilômetros para buscar água e cortar madeira. A geometria dos passos delas é diferente, mas ainda é ditada pelo pressuposto de que a responsabilidade de manter a casa funcionando é delas. O imenso número de horas que elas passam desempenhando essas tarefas distorce as suas vidas completamente. É quase impossível para quem tem a sorte de morar em países ricos entender como o trabalho não remunerado domina a vida de centenas de milhões de mulheres e meninas.

Há alguns anos, quando visitei a Tanzânia, passei uns dias com Anna, Sanare e seus seis filhos. O dia de Anna começava às 5 da manhã, quando ela acendia o fogo para fazer o café da manhã. Depois de limpar a casa, saíamos para buscar água. Depois de cheio, o balde de Anna pesava uns 20 kilos. (A distância média que uma mulher anda para buscar na África ou na Ásia é de 3,2 km por dia. Imagine fazer isso carregando quase a metade do seu peso na cabeça!) Quando voltávamos para casa, eu estava exausta, mesmo tendo carregado a metade do peso que Anna carregava. Mas, na volta, não podíamos descansar porque era hora de acender o fogo de novo para fazer o almoço. Depois disso, íamos para a floresta cortar madeira para as fogueiras que seriam acendidas nos próximos dias, tomando cuidado para não sermos picada por escorpiões. E então, íamos buscar mais água, ordenhar as cabras, fazer o jantar… Ficávamos acordadas até depois das 10 da noite, lavando os pratos à luz do luar.

Quantos milhares de passos eu dei naquele dia? Não importa quantos foram, o que importa é que Anna tem de multiplicá-los por todos os dias da sua vida.

Por que estou contando os passos das mulheres ao redor do mundo, como se fosse um Fitbit humano?

Porque você está imaginando o seu futuro nesse exato momento, e eu quero que os seus pés a(o) levem aonde quer que você possa se realizar e satisfazer melhor. E não é só uma questão de justiça; atribuir a maior parte do trabalho não remunerado às mulheres prejudica todo mundo: homens, mulheres, meninos e meninas.

A razão? Os economistas chamam isso de custo de oportunidade: todas as outras coisas que essas mulheres poderiam fazer se não tivessem que passar tanto tempo fazendo tarefas tediosas. Que metas surpreendentes você não poderia bater se tivesse uma hora extra por dia? Ou, no caso de muitas meninas de países pobres, cinco horas extras ou mais? Há muitas maneiras de responder a essa pergunta, mas é óbvio que uma boa parte dessas mulheres passaria mais tempo fazendo trabalhos remunerados, abrindo um negócio ou contribuindo de outra forma para o bem estar econômico de sociedades ao redor do mundo. O fato de elas não poderem, atrasa o desenvolvimento de suas famílias e de suas comunidades.

Meninas em países pobres diriam que poderiam dedicar esse tempo extra para fazer lição de casa. Grace, uma das filhas de Anna e Sanares, era sempre a última pessoa da casa a ir dormir. Isso porque ela só fazia a lição de casa depois de terminar as tarefas domésticas - e isso acontecia quando o resto de nós já tinha ido dormir. O trabalho doméstico vem sempre em primeiro lugar, por isso, muitas meninas ficam atrasadas na escola. Estatísticas globais mostram que são, cada vez mais, as meninas (e não os meninos) que não sabem ler.

A mães diriam que poderiam ir ao médico. Em países pobres, geralmente são as mães as responsáveis por cuidar da saúde das crianças. Mas, amamentar e se deslocar até o posto de saúde ou consultório médico leva tempo, e as pesquisas mostram que os cuidados médicos são uma das primeiras coisas que as mulheres deixam de lado quando estão muito atarefadas.

Algumas mulheres poderiam simplesmente ler um livro, dar uma volta, visitar uma amiga, e eu dou total apoio a essas coisas também. Todos nós vivemos melhor quando mais pessoas estão satisfeitas com as suas vidas no dia a dia.

Escrevo isso porque sou otimista. Embora nenhum país tenha encontrado o equilíbrio perfeito, muitos reduziram em muitas horas a diferença que homens e mulheres dedicam ao trabalho não remunerado. Os Estados Unidos e a Europa já evoluíram bastante. Os países escandinavos foram ainda mais longe.

O mundo está progredindo ao fazer três coisas, que os economistas chamam de Reconhecer, Reduzir e Redistribuir: reconhecer que o trabalho não remunerado é trabalho também; reduzir a quantidade de tempo e energia que ele consome e redistribuí-lo de modo mais igual entre homens e mulheres.

Comecemos com o reduzir, que é a parte mais objetiva. Os países ricos já avançaram muito ao cortar o tempo necessário para fazer as tarefas domésticas. Lembram da cozinha triângulo? Era isso que ela fazia, afinal. Americanos não precisam buscar água porque as torneiras fazem isso por eles, instantaneamente. Não passamos o dia todo para lavar uma pilha de roupas porque as nossas máquinas fazem isso em meia hora. Cozinhar é bem mais rápido quando você começa com um fogão a gás no lugar de um machado e uma árvore.

Nos países mais pobres, no entanto, a maioria das mulheres ainda tem de buscar água, lavar as roupas a mão e cozinhar em fogueiras.

A solução é inovar, e você pode ajudar. Alguns de vocês podem se tornar engenheiros, empreendedores, cientistas, e desenvolvedores de software. Eu desafio vocês a servir aos pobres com energia limpa e barata, estradas melhores, água encanada. Ou talvez você possa desenvolver uma tecnologia engenhosa para economizar tempo. Será que você consegue conceber uma máquina de lavar que use pouquíssima água e quase nenhuma eletricidade? Talvez você possa criar um substituto para o pilão, essa tecnologia de quase 40 mil anos que eu vejo as mulheres usar para transformar grãos em comida toda vez que viajo pela África Sub-Sahariana ou pelo sul da Ásia.

Mas, reduzir por si só não é suficiente, quando praticamente todas as culturas esperam que as mulheres façam o trabalho não remunerado. Se as tarefas domésticas passarem a exigir menos tempo, as sociedades podem (e irão) assinalar às mulheres novas atividades para preencheras horas extras conquistadas. Não importa em que medida a gente torne o trabalho doméstico mais eficiente, nós só iremos libertar a mulher ao reconhecer que o tempo dela é tão valioso quanto o do homem.

Não acho que se trate de uma conspiração mundial para oprimir as mulheres. É mais sutil que isso. A divisão do trabalho obedece a normas culturais. E nós as chamamos de normas porque parecem… normais. Tão normais que a maioria de nós sequer percebe. Mas a geração de vocês pode olhar para isso com outros olhos -- e chamar a atenção para elas até que todo o mundo passe a prestar atenção.

Pense nas tarefas que você faz em casa. Se você é uma menina americana, provavelmente dedica duas horas mais por semana que os meninos às obrigações domésticas. Se você é um menino, você tem 15% mais possibilidade de receber algum pagamento por fazer as suas obrigações domésticas. E qual a parcela das tarefas realizadas por meninas que é feita dentro de casa e dos meninos fora? Por que isso?

Com que frequência você vê, nos comerciais de TV, homens lavando roupa, cozinhando ou correndo atrás das crianças? (A resposta é: 2% do tempo) Quantas das mulheres que aparecem na televisão fazem propaganda de cozinha ou de produtos de limpeza? (Mais da metade).

Quando passamos a enxergar essas normas, podemos substituí-las por algo melhor
Como são essas normas melhores? Como você irá redistribuir as tarefas que precisamos fazer para viver? Não existe resposta fácil. Ninguém apoia uma divisão meio a meio das tarefas o tempo todo. Cooperação é uma boa parte do que faz uma família e, em alguns momentos, alguém terá de trocar fraldas mais vezes porque o outro está focado em uma missão importante.

Além disso, nem todo trabalho não remunerado é igual. Dobrar as roupas lavadas não é um trabalho super recompensador, a menos que você seja uma daquelas pessoas obcecadas por organização (eu não sou). Mas, cuidar de uma criança ou de um parente doente é muito significativo e muitas pessoas, inclusive o Bill e eu, querem ter tempo para dedicar a isso. Dividir o fardo das tarefas domésticas também significa dividir algumas alegrias.

Estudos mostram que os pais que têm direito à licença paternidade costumam passar mais tempo com as crianças e dividir mais as tarefas domésticas ao longo dos anos. No Canadá, os homens que tiraram licença paternidade aumentaram 23% o tempo dedicado às tarefas domésticas, mesmo depois de voltar ao trabalho. O resultado é que eles estabelecem laços mais fortes com os filhos e com suas mulheres. E essa é uma das razões pelas quais defendo a importância do acesso a licença parental (e médica) remunerada para as famílias.

No fundo, o objetivo é mudar o que achamos que é normal - e não achar engraçado ou estranho quando um homem põe um avental, busca as crianças na escola, ou deixa um bilhetinho fofo na lancheira do seu filho.

Quando se fala de Reconhecer, Reduzir e Redistribuir, a história de Anna e Sanare, o casal que visitei na Tanzânia, é inspiradora. Quando eles casaram, Anna se mudou de uma parte próspera do país para viver na região de origem de Sanare, abalada pela seca. Ela teve muita dificuldade de se ajustar ao trabalho extra. Um dia, Sanare voltou para casa e Anna estava sentada na porta, com as malas prontas e Robert, o primeiro filho deles no colo. De coração partido, Sanare perguntou o que podia fazer para que ela desistisse de ir embora. “Vá buscar água para que eu possa amamentar o seu filho”, ela disse. Reconhecendo o desequilíbrio, ele começou a caminhar quilômetros até o poço todos os dias. No começo, os outros homens do vilarejo riam dele e até acusaram Anna de bruxaria. Mas, quando ele alegou que seu filho poderia ser mais saudável porque ele ajudava a mulher, outros homens aceitaram redistribuir. Cansados de trabalhar tanto, eles construíram cisternas para coletar água da chuva mais perto do vilarejo. Eles Reduziram, e agora não importando tanto quem tem de buscar a água. O caminho mais curto permite que os dois tenham mais tempo para brincar com Robert e com as outras crianças.

O mundo pode aprender muito com esse casal
E eu mal posso esperar para ver aonde os seus passos vão te levar. Não necessariamente em triângulos. Não em linhas retas, a menos que isso seja o que você queira. Mas em qualquer direção que você escolha.

Publicado com autorização da Fundação Bill e Melinda Gates, com tradução de Camila Hessel.

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