por Karla Monteiro
Tpm #138

A melhor surfista de ondas grandes do mundo viu a morte de perto e está pronta para outra

Uma onda de 20 metros de altura, o correspondente a um prédio de seis andares. Nazaré, norte de Portugal, 28 de outubro. As imagens do acidente da surfista carioca Maya Gabeira, 26 anos, filha de Fernando Gabeira, correram o mundo. Quem viu aquilo, aquela menina miúda e linda levantando voo e despencando no turbilhão de água, certamente pensou: ela é doida, maluca, insana. Por que se arriscar tanto? Qual o barato de surfar ondas cada vez maiores? Duas semanas depois de morrer e ressuscitar na praia, Maya abriu a porta do apartamento da mãe, a estilista Yamê Reis, na zona sul do Rio de Janeiro, para a Tpm. De muletas, com o pé esquerdo quebrado, sorriso no rosto, roupa de ginástica, foi logo avisando: “Cheguei agora da piscina. Estou morrendo de fome. Quando minha comida chegar, a gente dá uma pausa, OK?”. OK! 

Determinada
Maya começou a surfar com 14 anos, na praia do Arpoador. Até ali, não era garota de Ipanema. Detestava areia. Aos 15, foi fazer intercâmbio na Austrália. Voltou surfista, competindo em campeonatos amadores Brasil afora. Com 17, ao terminar o ensino médio, tomou a decisão: não ia fazer faculdade. Ia viver a vida sobre as ondas. E no Havaí. Arrumou as malas, se mandou para lá e se tornou a melhor surfista de ondas gigantes do planeta. Primeira mulher a surfar no Alasca. Primeira mulher a surfar em Ghost Tree, na Califórnia. Primeira mulher a surfar em Teahupoo, no Taiti. Pentacampeã na categoria Melhor Performance Feminina do Billabong XXL Awards, o Oscar dos surfistas de ondas grandes. Como a própria Maya diz, ela certamente não estava em Nazaré desavisada. “Escolhi estar ali, não estava ali à toa. Ou eu ia sobreviver ou não ia, era isso”, diz, com brilho nos olhos e covinhas nas bochechas.

Quem nunca experimentou deslizar sobre a água, estar num cara a cara com Deus – tomando-se, por Deus, a natureza – não consegue compreender, de fato, do fundo do coração, as motivações dela. Palavras como “adrenalina”, “superação” etc. não explicam. O que faz brotar uma centelha de compreensão é a verdade que salta das palavras de Maya. Ela é aquele tipo de pessoa que encontrou. Seja lá o que for, encontrou. Maya é segura. Tem brilho. É altiva. Confia. Está à vontade na própria pele. O raciocínio é rápido e a fala vem carregada de gírias de surfistas: brother, pico, pô, sinistro, maneiro. O que mais chama a atenção nela é o contraste entre o jeito de moça educada nos melhores colégios, filha de intelectual de esquerda, e os cacoetes de garota de praia. Ela brinca que no seu metiê muitas vezes precisa se lembrar de que é uma moça de família. “Espera aí, galera, preciso ir ali fazer as unhas, me depilar, porque tá foda”, brinca. Dá para arriscar: Maya está – ou é – feliz. “Claro que eu estou feliz, pô. Passei a vida inteira esperando aquele momento, o momento de arriscar tudo”, diz. Na hora do “vamos ver”, conta que conseguiu atingir o que o ser humano busca: entregar-se ao imponderável. “Eu fiquei muito em paz. Super, hiper em paz.”

Do momento em que pegou a onda até acordar, com uma dor insuportável nos pulmões e a respiração travada pela quantidade de água que engoliu, foram cerca de 9 minutos. Maya lembra de cada segundo (leia nesta edição o ensaio em que Carlos Burle dá o seu relato do acidente). Depois de comer o macarrão com queijo branco a bocadas rápidas, ela se acomodou no sofá, com o pé para cima, e contou sua história, a trajetória da filha do político defensor das causas impossíveis, que resolveu surfar a onda impossível. “Meu próximo desafio? Nazaré, em outubro do ano que vem. Claro que vou voltar lá. Vou voltar todos os anos.”

Tpm. O mundo inteiro assistiu ao acidente no norte de Portugal. Por que você caiu naquele mar, naquele tsunami?
Medo, adrenalina, superação. Fui para Nazaré porque eu queria surfar a maior onda da minha vida. É um pico novo, descoberto há uns dois anos, famoso pelas ondas gigantes. Eu, Carlos Burle, Pedro Scooby e Gordo[o surfista Felipe Cesarano], que somos uma equipe, estávamos planejando a viagem havia quatro meses. 

Vocês já sabiam que ia rolar aquela onda? Não, claro que não. Fomos conhecer o lugar, estruturar, deixar equipamento, treinar, fazer uma base. Chegamos em Nazaré no dia 14 de outubro. E foram duas semanas de muita onda. Peguei uma onda boa, rendeu para mim. Minha passagem de volta para Los Angeles era dia 24. Fazia mais de três meses que eu não ia para casa. 

O acidente foi no dia 28 de outubro. Você trocou a passagem? Não. Eu tinha um monte de contas para pagar, carro estacionado na rua. Estava com isso na cabeça: tenho que ir em casa. Aí começou o papo de que talvez um swell histórico entrasse no dia 28, 29. Mesmo assim, resolvi ir embora. Faltavam cinco dias e as previsões mudam milhões de vezes. Decidi que não ia ficar ali esperando algo que podia não acontecer. E fui para Los Angeles.

Como você estava lá naquela onda, então? Cheguei em casa e, no dia seguinte, vi na previsão que talvez fosse algo especial mesmo. Comecei a ficar angustiada. Peguei minha prancha, treinei e, no mar, resolvi retornar para Portugal. Consegui um voo que chegaria no dia do swell. O dia gigante era domingo à tarde ou segunda de manhã. 

Você passou duas noites em LA e voltou a Portugal? É. Eu não podia ficar sentada em casa enquanto todo mundo estava lá. Cheguei em Portugal no domingo com um pequeno problema nas costas. Tive sorte, porque domingo a previsão não se confirmou. Pude ir a um fisioterapeuta, dormir, descansar.

“Tive certeza [de que morreria]. Pensei: ‘Vou apagar, não tem como, é um processo sem volta, meu corpo está entrando em colapso’”

Na segunda, o mar amanheceu como você queria. Acordamos no escuro e botamos os jets na água. Tsunami. Mar em fúria. Estava todo mundo transtornado. Mas todo mundo bota no piloto automático. Você espera muitos anos por aquele momento. Então é a hora da verdade, não tem que pensar muito, é agir. Não pode paralisar. 

A que horas você caiu no mar? Meu acidente foi às 7h15. Ficou claro às 6h45. 

Como foi? Você consegue reconstruir o que aconteceu? Eu estava no jet com o Scooby. E o Gordo estava com o Burle. O Burle já entrou acelerando, botou o Gordo na corda... E capotou, perdeu o rádio de segurança, voltou correndo: “Ai, meu Deus, nunca vi isso. Tá enorme, tá enorme”. Scooby olhou para mim e pulou na água. Falei: “Não, eu vou surfar primeiro”. Naquela adrenalina toda, saltei para o jet do Burle. O mar estava especial, liso, gigantesco. Só quatro jets na água. 

Você não vacilou? Estava decidida? Vacilei. O Burle tentou me colocar numa onda, não larguei a corda. Tentou outra, não larguei. Ele falou: “Decide: vai ou não vai?”. Falei: “Tô insegura. Tá grande demais”. A gente estava num negócio que era outra dimensão. Aí fiquei quieta, ele me levantou, entrou uma onda muito maior do que as duas que eu tinha perdido e, cara, depois da chamada do Burle... 

Você soltou a corda. Levantei confiante numa onda gigantesca. E Garret McNamara, que é o recordista mundial atualmente, levantou junto comigo. Pensei: “Tudo bem, ele vai pegar esta e eu vou na próxima”. Foi quando ouvi o Burle gritando: “Ele caiu, vai”. Eu estava bem posicionada, com velocidade boa, fui. 

Você se jogou para o tudo ou nada? Literalmente isso. Eu me joguei para o tudo ou nada. A onda era tão grande que já estava quebrando. Puxei para dentro, para pegar a parte ainda mais crítica da onda. Minha prancha pegou muita velocidade. Segurei um voo e aterrissei. Segurei outro voo e aterrissei. A cada voo eu pegava mais velocidade. E no terceiro perdi o controle. 

Você se lembra de tudo? Tudo. Quando fui para debaixo d’água, tomei um caldo, levantei bem, subi, fiz minha respiração. Na segunda porrada, de uma onda ainda maior do que a que me derrubou, fiquei um longo tempo debaixo d’água. Percorri uma longa distância. O problema maior foi que eu peguei a primeira onda da série, entende? Fui sendo atropelada.

E o Burle? Onde ele estava? Nessa segunda porrada, o Burle me perdeu por uns 4 minutos. Eu desapareci. Ele, então, foi para a beira. Pensou: “Esse corpo vai aparecer aqui”. Viu a minha prancha chegando, viu meu colete. Quando eu subi de novo, não tive tempo de respirar, veio uma onda do além, com muita força, e explodiu de novo em cima de mim. Fui para debaixo d’água com total consciência de que eu ia apagar. Tudo preto. 

Você achou que ia morrer? Tive certeza. Achei que não fosse subir de novo. Mas subi, minha roupa também boia, tem certa flutuação. Quando cheguei na superfície, ficou tudo branco, vários barulhos no ouvido. Pensei, juro que pensei isto: “Vou apagar, não tem mais como, isto é um processo sem volta, meu corpo está entrando em colapso”. Olhei para a esquerda e vi o cliff. Olhei para a direita e vi o Burle. E vi que ele me viu. 

Você se sentiu salva? Ele veio na minha direção, jogou a prancha de resgate, não consegui pegar. Eu já estava realmente indo para um outro estágio. Ali não me lembro mais de barulho, era tudo silêncio. Ele diz que olhou no meu olho e viu: “Maya está morrendo”. Saiu das ondas, arrumou outro espaço para voltar e, quando voltou, tentou me pegar pela mão. Levanto a mão, a gente se encosta, mas não agarra. 

Caramba! Numa situação de adrenalina total, Burle me jogou a corda. Gritou: “Segura”. Não sei como eu escutei nem como tive forças para agarrar a corda. Fui arrastada o suficiente para sair da corrente que circula, do redemoinho, e ser jogada na corrente que leva para a praia. Depois de 5 metros, já estava apagada. Burle teve sangue-frio e entendeu onde eu ia boiar. Ele seguiu a espuma, se jogou no mar e me pegou. 

Qual a primeira coisa que você pensou quando acordou? “Nunca mais vou passar por isso na minha vida.” Mas esse pensamento só durou um minuto. Na ambulância, eu já estava gritando: “Tem vento ainda? Quem tá na água? Cadê a filmagem da minha onda, porra?”. E o enfermeiro brigando comigo porque eu tirava a máscara de oxigênio. 

Quem estava na ambulância com você? Meu team manager da Red Bull de Portugal, Thiago. Ele passou a ambulância inteira mentindo para mim, que minha onda tinha sido incrível, histórica. Eu falava: “Cara, eu não estou com amnésia. Eu me lembro: tomei foi uma vaca histórica”. Essa era a discussão a caminho do hospital. 

Qual era o seu sentimento, além da brincadeira? Eu estava feliz. Muito feliz. 

Feliz? Pô, claro. Passei a vida inteira esperando aquele momento, o momento de arriscar tudo. Aquilo foi o meu limite. Tudo que eu já fiz pelo esporte eu botei naqueles minutos. 

“Passei a vida inteira esperando aquele momento, o de arriscar tudo”

E como é o sentimento de voltar à vida? Você morreu e ressuscitou, né? Fé, cara. De alguma forma, Deus me ajudou. Tenho certeza que alguém estava ali comigo. Tudo se conectou para eu viver. Teve uma hora que eu consegui me entregar em paz. Meu batimento cardíaco diminuiu muito. Se eu tivesse tido uma crise de pânico, não teria sobrevivido. Minha cabeça me ajudou. Meus pensamentos foram para um lugar que me poupou sofrimento, desespero. Quando eu vi que tinha dado merda, lógico, lutei pra caramba. Debaixo d’água, fiquei triste: “Pô, que merda, vou morrer”. Só que no próximo estágio me lembro que fiquei muito em paz. Super, hiper em paz. 

Explica melhor: como você ficou em paz se você estava se afogando num mar em fúria? Na hora que tive que me entregar, que não dava mais para lutar, eu me entreguei. Se fosse para ser, eu estava no lugar certo. Escolhi estar ali, não estava ali à toa. Ou eu ia sobreviver ou não ia, era isso. 

Quanto tempo durou o processo todo? Uns 8, 9 minutos. Eu ia perder minha vida em 9 minutos. Tem gente que luta pela vida um ano, com câncer e tal. Eu lutei por 9 minutos. Eu vejo como positivo. Não quero que aconteça de novo. Da próxima vez, Deus não vai me aliviar. Mas, com 26 anos, ter vivido essa experiência é incrível. Tanta coisa mudou para mim. Eu me sinto mais forte. Mais agradecida. E menos ansiosa. Quando acordei, pensei: daqui pra frente é tudo bônus. 

Você faria tudo de novo? Sem dúvida, com certeza.

Você enfrenta preconceito no esporte por ser mulher? O preconceito existe. Mas não sei se é um preconceito tão racional, tão visível. É uma coisa mais ampla da sociedade. Se isso tudo tivesse acontecido com um cara, um homem de 35 anos, as imagens não teriam chocado tanto. Um cara sarado tomar aquelas porradas parece normal. Já uma menina de 26 anos, magrinha... Nesse caso, o preconceito é uma coisa instintiva, de milhões de anos: o cara tem que se expor, tem que ir atrás da caça, tem que botar pra baixo, tem que ser mais sinistro do que o outro. Todos eles estão na caça. A comparação é num nível alto. Com a mulher, perde-se o parâmetro. Não tem comparativo. Quem é a outra mulher que estava em Nazaré? Nenhuma. Mas existem vários homens que já morreram surfando ondas gigantes. Uma mulher, nesse meio, entra no campo do desconhecido. 

Quantas mulheres no mundo surfam ondas gigantes? Dá para contar nos dedos de uma mão. 

Houve falha na segurança? O seu colete saiu pela sua cabeça. Isso é normal? Se eu tivesse morrido, teria sido uma lição. Não é absolutamente possível enfrentar um mar como aquele apenas com colete e jet. Você precisa de um segundo jet de apoio. Tem que ter ambulância na praia. Tem que ter uma roupa especial com todos os equipamentos de flutuação embutidos. A gente não podia ter perdido o rádio, o que foi uma fatalidade. Aquela cena de duas pessoas e um jet num mar daquele não dá, não existe. As pessoas lá fora nem sabiam o que estava acontecendo. Burle não podia pedir ajuda.

E o Pedro Scooby e o Gordo, onde estavam? Isso foi um problema. O certo seria eles estarem no mar assessorando o Burle. Faltou experiência nossa. Aliás, faltou experiência a todos que estavam ali. As pessoas surfam em Nazaré há dois anos. É muito novo o lugar. Não tem, digamos, um livro de regras, como existe em outros picos. Com certeza, da próxima vez, ninguém vai deixar só um jet na água. 

Qual a sua relação com o Burle hoje? Estamos trabalhando juntos há sete, oito anos. É um comprometimento muito intenso você botar alguém numa onda em que a pessoa pode morrer. O Burle é uma pessoa-chave na minha vida. 

Vamos falar um pouco da sua história, da sua vida. Como é ser filha do Fernando Gabeira? Quando a gente era criança – eu e a minha irmã, Tami –, meu pai não era tão popular. Ele era um pouco à frente demais, defendendo causas como legalização da maconha, da prostituição, casamento gay... Ele sempre defendeu as minorias, antes de todo mundo. E nós, as filhas, sentíamos um pouco isso. 

Você sofreu bullying por ser filha do Gabeira? Meus amiguinhos me zoavam bastante, principalmente na Escola Alemã Corcovado, que era mais conservadora. Aos 11 anos, me cansei daquele ambiente e saí, fui para escolas mais alternativas. 

Você sabia o que o seu pai representava? Claro. Vi O que é isso, companheiro? com 10 anos. A gente cresceu tendo muita noção da história do meu pai e das posições dele, por mais que ele não falasse muito. 

Como era a sua relação com ele? Meu pai sempre confiou muito em mim, sempre me deu muita liberdade. Isso me ajudou a seguir o caminho que eu segui, um caminho totalmente não convencional, pelo mundo, desde muito nova. Se ele não fosse um pai libertário, talvez isso não tivesse acontecido. 

Quantos anos você tinha quando saiu do Brasil? A primeira vez, 15 anos. Meu pai sempre me deu apoio a distância, isso foi fundamental. 

Quando você percebeu que queria ser surfista? Você surfa desde pequena? Com 14 anos eu iniciei no surf através de um namorado e nunca mais larguei. Novinha, gostava de dança, jazz e sapateado. Dos 6 aos 11, me dediquei à dança. Aí passei alguns anos sem achar uma coisa que substituísse. Acabei me tornando um pouco rebelde na adolescência. 

Rebelde em que medida? Ah... Saía à noite, fazia merda, aquela coisa de adolescente na zona sul do Rio de Janeiro. 

Você fumava maconha? Tudo que é liberado perde a aura. Cresci numa casa em que se falava de maconha o tempo inteiro. Já experimentei, claro, mas nunca fui fundo, até por causa da minha asma. Também não gosto de beber. E bagulho me deixaria morgada. Eu gosto de adrenalina. Minha droga é outra. 

Você era garota de praia, garota de Ipanema? Não, não, nunca fui. Minha mãe até brinca comigo porque eu odiava areia. Na infância chorava para não ir à praia. 

A ideia que se faz de você é da menina carioca que cresceu no Posto 9. De jeito nenhum. Até natação não era a minha. Fiz natação bem pequenininha. E fiquei sem nadar anos. Quando comecei a surfar, eu nadava cachorrinho. 

Por que você começou a surfar? Só para agradar o namorado? É, fiz escolinha no Arpoador. E a gente fazia viagens tipo Bahia, Guarda do Embaú, essas viagens típicas de surfistas. Aí fui evoluindo. 

Você se apaixonou de cara pelo esporte? A primeira vez que eu peguei a prancha debaixo do braço, caí no mar de short jeans. Não consegui ficar em pé, nada, mas achei aquilo o máximo. Com a prática, fui ficando totalmente viciada. 

Viciada é a palavra? É uma droga natural muito poderosa. Eu fui evoluindo aos poucos. Depois de dois meses na aula de surf, meu pai me deu minha primeira prancha. Depois de um ano e meio, fui para a Austrália. 

A Austrália foi definitiva para você se tornar surfista profissional? Eu fui para fazer intercâmbio e surfar como hobby mesmo. Mas lá eu me descobri surfista. 

Foi uma viagem iniciática, digamos. É. Quando voltei para o Brasil, oito meses depois, já passei a competir em campeonatos amadores. Mas ainda surfando mal, bem mal. Eu estava mesmo viciada. Ficou difícil na escola, pois eu só queria surfar. 

Nesse momento você já sabia que seguiria carreira? Acho que sim. No ano seguinte, competi no circuito amador no Brasil. Fiquei nessa um ano e meio, dois. Com 17, fui para o Havaí. 

Você tinha terminado o ensino médio, decidiu não fazer faculdade, como foi isso? Decidi não fazer faculdade.

“Cresci numa casa em que se falava de maconha o tempo inteiro. Experimentei, claro, mas nunca fui fundo”

Como foi dizer isso para os seus pais? Tipo: pai, vou ser surfista no Havaí? Não, eu não falei isso, pô. Não se solta uma bomba dessa. Eu só disse que ia passar um ano viajando para pensar direito o que eu queria fazer na faculdade. Só que um ano viraram vários anos. 

Seus pais toparam? Meu pai topou. Minha mãe ficou desesperada. Mas ela sabia que não tinha como me segurar. O que minha mãe fez foi tentar me cercar. Ela se conectou com algumas pessoas no Havaí. Depois se conectou em Bali. Depois na Austrália. Foi sempre assim, tentando cercar de alguma maneira. 

Como foi desembarcar no Havaí aos 17 anos, sozinha, com uma mochila nas costas? Eu dei muita sorte. Fui para a casa de uma família brasileira que alugava quartos. Era um casal muito presente, me acolheu por dois anos. Fui me adaptando, já comecei a trabalhar na primeira temporada. 

Trabalhar em quê? Como garçonete. Trabalhei no mesmo restaurante por três anos. Toda temporada eu já tinha trabalho, era do lado de casa e do lado de onde eu surfava.

Onde? Perto de Pipeline. 

O surf ainda era um hobby ou você já tinha um foco profissional? Já estava ficando mais sério. Não profissional, porque não existia essa categoria de mulher em onda grande. Nenhuma mulher estava fazendo dinheiro com isso. Também não tinha competição. Ainda era uma área muito crua. Esse meio que eu queria entrar era muito masculino. 

Quando exatamente você chegou ao Havaí? Outubro de 2004. 

Como foi o seu começo num pico de surf tão badalado, procurado pelos melhores do mundo? Comecei surfando Velzyland, que é uma onda fácil, que as crianças surfam, em frente de casa mesmo. Outubro é um mês que ainda não está tão grande o mar. Em novembro, as pessoas começaram a chegar e eu fiz amizades com a galera do surf profissional. Aí fui surfar em outros lugares, fui me desenvolvendo, me adaptando aos poucos. 

Qual era a sua rotina no Havaí? Dependia do horário que eu trabalhava. Eu tentava trabalhar mais para o fim de tarde, à noite. Aí ficava com o dia para treinar, correr, fazer ioga. 

Quando você começou a pegar onda grande? Já nessa primeira temporada. Não onda gigante. Onda grande.

Quantos metros uma onda tem que ter para ser considerada gigante? Onda grande tem até uns 12 pés havaianos, que são 4 metros. Depende do lugar, na verdade. Pipeline com 4 metros já é um absurdo, o máximo que dá ali. Só que eu não surfava Pipeline. Eu surfava Waimea, onde o mar é mais calmo. Ou 3 metros em Sunset, que já era mais desafiador. 

Quando você começou a surfar ondas gigantes? No ano seguinte. Fui evoluindo. Tem lugar que, quando está gigante, são 4, 5 metros. Em outros, 35 metros. Todo lugar tem a sua situação-limite, dependendo do tanto que suporta de ondulação. 

Qual foi a primeira onda gigante que você surfou? Seis de fevereiro de 2006, em Waimea. Era uma onda de 35 pés, 12 metros. Essa onda me marcou porque foi a primeira vez que surfei um mar realmente grande. Saí do mar com muita adrenalina, euforia, pilhada, ligada, com muita energia. 

Como descreve o sentimento? Não é só o instante. A adrenalina não é só naqueles 10 segundos que você está na onda. Ali, na verdade, é quando você descarrega. A adrenalina começa quando você vê o mapa da meteorologia. São dez dias que você vai acumulando adrenalina, ansiedade, expectativa... Quando você cai no mar, é quando você começa a descarregar. E quando você sai da água é uma descarga muito forte, e também uma conquista pessoal enorme. 

Qual é o barato de surfar ondas cada vez maiores? O que eu já disse: medo, adrenalina, superação. Também por não ter muita mulher no surf de ondas gigantes. 

E por que você vai para lugares como Alasca? Quais os lugares mais frios que você surfou? Além do Alasca, Califórnia e África do Sul, bem diferentes do Havaí. A temperatura e o equipamento mudam o surf. Sua resistência fica debilitada. É outra experiência.

O que você mais gosta no surf? Já experimentou de tudo? O estilo de vida, a liberdade. Ao mesmo tempo que estou viajando, tenho mais ou menos uma casa em vários lugares do mundo. Pessoas que eu reencontro a cada temporada. Conviver com culturas totalmente distintas. Comer comidas completamente diferentes. Isso me enriquece como pessoa. Você ganha conhecimento, experiência, aprende a ficar flexível e a se adaptar ao outro. Eu não fui para a faculdade, mas fui para a faculdade da vida. 

Como foi sua trajetória no surf profissional? Como se tornou uma das surfistas mais conhecidas do mundo? Não foi nada convencional. Não venho de família de surfistas. Tive de conquistar as coisas sozinha. Como a categoria de onda grande feminina não tem competição, era uma questão de exposição, de reconhecimento. A partir do momento que comecei a sair nas revistas de surf mais prestigiadas, comecei a me destacar. Um marco foi quando ganhei o Billabong XXL Awards, em 2007. É o prêmio mais importante na nossa área. 

A partir daí surgiram os patrocinadores? Eu já estava conversando com a Billabong, minha antiga patrocinadora, e com a Red Bull, minha patrocinadora até hoje. Com o prêmio, consegui fechar os contratos. 

Tudo sozinha, sem agente? Minha mãe me ajudava um pouco.

Onde você mora, onde é a sua casa? Hoje, em Los Angeles. Os primeiros cinco anos eu ficava no Havaí cinco meses. Depois pegava minha mochila e ia para a Austrália. Depois ia para a Indonésia. E retornava ao Havaí para a temporada. Quando para de dar onda no hemisfério norte, começa a dar onda no hemisfério sul. Eu seguia as ondas. Aliás, continuo fazendo isso. 

Como você se prepara para enfrentar situações como Nazaré? Eu treino a parte explosiva na areia. Também faço musculação e treino de apneia. Consigo ficar debaixo d’água uns 4 minutos. Instintivamente, acho que isso me ajudou em Portugal. Devo ter usado as técnicas. O corpo sabe. Meu desmaio foi muito tardio. Fico me perguntando e perguntando para os meus instrutores: como eu não apaguei antes? 

Como? Não sei. Imagina: o colete sai pela cabeça; fica tudo preto; fica tudo branco; ouço barulhos; pego aquela corda meio viva, meio morta; consigo segurar uns 10 metros, o que é uma força danada. Meu corpo só desiste quando vejo a areia. O Burle falou que eu peguei um jacaré apagada quase até a areia. Muito louco. 

Qual é o próximo desafio? Nazaré, em outubro do ano que vem. 

Não acredito que você vai voltar lá. Claro que vou, todos os anos. 

Você quer ser mãe? Acho que quando se é mãe se arrisca menos. Eu não sei, por enquanto não é minha prioridade.

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