Cena e sentença

por Nathalia Zaccaro

Maria Ramos registrou os bastidores da defesa de Dilma durante o processo de seu impeachment. O resultado é o filme ”O processo”, que chega ao Brasil depois de enorme sucesso internacional

No documentário Justiça (2004), Maria Augusta Ramos filmou o dia a dia do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, direcionando seu olhar para promotores, defensores públicos, juízes e réus. Em Juízo (2008), acompanhou o julgamento e a prisão de menores infratores. A cineasta brasiliense tem se dedicado a investigar as relações de poder entre os indivíduos e as instituições brasileiras. Ela quer entender o Brasil a partir do que chama de teatro da justiça.

Esse mês, ela lança no Brasil O processo, em que retrata o julgamento que culminou no impeachment da presidenta Dilma, em agosto de 2016. O filme estreou no 68° Festival de Berlim, em fevereiro deste ano, e teve recepção excepcionalmente calorosa. Ficou em terceiro lugar na escolha do público entre os documentários da Mostra Panorama, importante parte da programação do festival.

As sessões lotadas em Berlim abriram caminho para uma bem-sucedida jornada em festivais internacionais, que rendeu ainda prêmios em Lisboa, Madri e na Suíça. "Existia uma questão para mim sobre se o público fora do Brasil iria entender a questão política. Mas o filme tem sua universalidade, lida com a questão dos desafios que a democracia vive no mundo inteiro”, conta a diretora.

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Maria Augusta nasceu em Brasília, mas vive entre Amsterdã e Rio de Janeiro. Durante os seis meses que antecederam o impeachment, ela voltou a sua cidade natal, onde captou as 450 horas de material que dariam origem ao documentário de 2 horas e 17 minutos. José Eduardo Cardozo, advogado de Dilma durante o processo, e os senadores Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias são os protagonistas do filme, que se passa quase todo no Senado Federal.

Ela teve acesso privilegiado a defesa de Dilma, testemunhou bastidores do processo, como reuniões em que os advogados traçavam suas estratégias ou momentos íntimos de autocrítica do PT. Em uma das cenas, Gilberto Carvalho, ministro à época e chefe do gabinete de Lula, diz que: "Se a gente cair, estamos caindo sobretudo pelos acertos nossos, por termos contrariado os grandes interesses do capital. Isso pra mim tá muito evidente. Agora, por outro lado, é inegável que nós de alguma forma facilitamos a estrada deles através de erros graves”. Em seguida, ele cita a "naturalização dos métodos de fazer política” e a ausência de uma reforma política.

O acesso privilegiado da diretora não se estendeu a própria presidenta ou ao ex-presidente Lula, tão pouco aos senadores pró-impeachment. Como fez em seus documentários anteriores, ela optou por não entrevistar ou colher depoimentos e agir como observadora, enquadrando as cenas com mínima interferência. 

Conversamos com Maria Augusta sobre a crise política brasileira, o sucesso internacional e sua experiência in loco durante o impeachment:

De onde vem esse interesse pelo judiciário? Me interessa retratar a sociedade brasileira através do teatro da justiça. Eu não preciso sair dali para falar sobre o Brasil porque ali estão representadas as relações de poder entre os indivíduos. No caso do impeachment da Dilma, quis compreender como o processo aconteceu, quais os discursos a favor e contra e como essas interações humanas e sociais de relação de poder político se deram durante esse processo.

Quais acessos você teve e quais foram negados? Filmei 450 horas. A gente não sabia o que ia acontecer, era sempre câmera ligada. Comissões, todo o julgamento no Plenário, alguns momentos da Câmara dos Deputados e no entorno. Tive acesso a defesa da presidenta, o que me trouxe a possibilidade de chegar mais perto de personagens como a Gleisi Hoffmann, o José Eduardo Cardozo, e Lindbergh Farias, que foram fundamentais no filme. Pedi maior acesso aos senadores a favor do impeachment, mas não tive. Se tivesse tido, teria filmado. Mas eles estão no filme, acho importante que se entenda como as pessoas pensam. Isso faz parte da proposta. Entre os antagonistas, a Janaína Paschoal tem uma participação fundamental. 

Você optou por não entrevistar ninguém, não interferir, agir como uma observadora. Mas obviamente o processo de edição é definitivo para o resultado final. Como foi editar essas 450 horas? Acho que foi o processo de edição mais difícil que já fiz. Não só pela quantidade de material, mas pela natureza do tema. Foram meses de escolhas estéticas e éticas, ao lado da editora Karen Akerman. Não existe documentário imparcial, mas existe uma proposta de cinema, que é tentar retratar esse processo na sua complexidade. Dar voz a narrativa que foi contra o impeachment e que foi bem menos divulgada pela imprensa do que os argumentos a favor.

A recepção do filme em Berlim, e também em outros festivais internacionais, foi extremamente positiva. Como se sentiu? A experiência em Berlim foi maravilhosa. Não é todo dia que se faz um filme que é ovacionado em um festival importante como o de Berlim. Existia uma questão para mim sobre se o público fora do Brasil iria entender a questão política. Mas o filme tem sua universalidade, lida com a questão dos desafios que a democracia vive no mundo inteiro. Quando a gente faz um filme, queremos comunicar alguma coisa, que as pessoas se sintam tocadas, não só racionalmente, mas emocionalmente. O cinema precisa fazer as duas coisas, tem que ser uma experiência que vai além do racional.  Isso tem acontecido, as pessoas têm se comovido e isso me deixa extremamente feliz.

A versão que chega aos cinemas aqui é idêntica a que passou em Berlim? É praticamente a mesma. Quando estávamos finalizando a versão, traduzindo as cartelas, aconteceu a prisão do presidente. É uma consequência do impeachment, tinha que estar lá, então acrescentei essa cartela. Acho que foi importante ter essa informação no fim do filme. Estou na expectativa de como será recebido pelos brasileiros. 

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