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Maria de verdade

por Marcus Preto
Tpm #103

Para a filha de Elis foi necessário entender que o olho do furacão é um lugar tranquilo

Até os 26 anos, ela não queria ser vista nem ouvida. Demorou para sair do casulo. Hoje, aos 33 e três discos de sucesso depois, Maria Rita passou de desconhecida a celebridade nacional. Para a filha de Elis foi necessário entender que o olho do furacão é, sobretudo, um lugar tranquilo

 

A voz dela não acordou muito bem hoje. Provável efeito do cansaço muscular das cordas, acumulado nos shows consecutivos que fizera nesta semana e na passada. Como Maria Rita não está em período de lançamento de álbum, a maior parte das apresentações é fechada, contratada por empresas. Mas ela inventou sua maneira de estar perto do público. Armou uma temporada de shows às segundas-feiras no pequeno palco do Tom Jazz, em São Paulo, em que canta o que lhe der na telha.

Sua rotina, no entanto, não muda muito quando a voz encolhe. Tem que chegar cedo ao teatro, como sempre. Trancar-se no camarim, vestir o roupão acetinado, calçar os chinelos de dedo e começar o desenho no rosto e nos cabelos. Durante as turnês, não leva camareiro. Precisa, então, botar em prática tudo o que aprendeu nas tardes solitárias da adolescência, quando recortava a revista Capricho, colava as páginas com durex na penteadeira do quarto e replicava em si mesma os efeitos de luz, sombra e cores que as modelos expunham nas fotos.

Maria Rita, 33, passa a maior parte do tempo olhando espelhos. Não é vaidade simples, é bem mais longe do que isso. Parece mais com ansiedade, com procura. Uma sede de entender onde começa e onde termina seu espaço, que diabos tem para oferecer às pessoas que compram seus discos e os ingressos dos shows, quais os limites de alcance da sua voz. Busca essas respostas vendo a própria imagem refletida: quando se penteia, quando lança recados aos quase 200 mil desconhecidos que a seguem no Twitter, quando observa as reações que eles causam, quando responde as mensagens de texto dos mais chegados no teclado do celular, quando refaz o set list do show de logo mais na tela do computador, quando olha um retrato do único filho. Tudo isso também é espelho, ela sabe.

Faz sete anos que viveu a reviravolta. De completa desconhecida a celebridade nacional, uma das maiores vendedoras de discos da geração. Lançado em setembro de 2003, Maria Rita, seu álbum de estreia, bateu a casa do milhão de cópias vendidas. Do anonimato ao olho do furacão.

 

“Naquele começo [de carreira] o turbilhão se armou ao redor. Nego começou a pirar em meu nome. O sucesso subiu à cabeça alheia, não à minha”

“O furacão tem um olho, mesmo. Que, ao contrário do que as pessoas pensam, é um ponto muito sereno, tranquilo, quase parado. A confusão toda acontece em volta dele. Naquele começo [de carreira], senti exatamente isso. Eu estava trabalhando, focada. Mas o turbilhão se armou ao redor. Nego começou a pirar em meu nome. O sucesso subiu à cabeça alheia, não à minha. A solução, que não era a mais legal, mas foi a única que encontrei, foi reduzir o número de pessoas a minha volta. Hoje, não entra qualquer um na minha casa mesmo. Isso se chama preservação.”

De olhos bem fechados

Tinha completado 26 anos. E, até ali, por quase todos os dias de sua vida, fez a mesmíssima coisa: negar o próprio destino.

Uma história simboliza bem o período anterior à virada. Estava em Miami, na casa de amigos da família. César Camargo Mariano, seu pai, pegou o violão e pediu: “Canta isso aqui, seu tom é o mesmo da sua mãe, vai dar certinho”. A timidez era tanta que causava dores no corpo. Ela pensou em fugir, mas acabou ficando. Fechou os olhos, como faz até hoje quando se mostra, e soltou a voz. Quando abriu de volta, viu uma sala inteira aos prantos. Amigos e desconhecidos. Reagiu com um grito: “Ela morreu! Ela não volta mais!”. Entendeu como um insulto todas aquelas lágrimas. Não era com ela que as pessoas estavam se emocionando – era com a lembrança de sua mãe. Correu para o quarto e trancou a porta atrás de si. Por longos anos.

s linhas de fronteira entre sua arte e a de Elis Regina, que morreu quando ela tinha apenas 4 anos, continuam em movimento, mas o correr do tempo tem tratado de separar o que é de uma, o que é de outra e o que é das duas. E tornou o tema mais confortável para ela, a ponto de já poder ser tratado hoje com humor – o que parecia inimaginável em passado nem tão distante assim. Enquanto escolhe no iPod as músicas que quer ouvir no camarim, faz a observação: “Prefiro homens cantando. Tenho medo de ouvir as cantoras, ficar influenciada por elas e acabar imitando sem querer. Já me basta ser a imitadora oficial da Elis Regina”. Não ri, mas parece saber que a ironia da frase revela, além de amadurecimento, uma relação mais pacífica com os olhos do mundo, que nem sempre foram gentis com essas semelhanças.

Começou a fazer terapia há seis anos, logo depois que o filho, Antonio, nasceu. Tinha algumas coisas que ela precisava entender. “Ser mãe sem ter tido mãe é bem complicado. E, naquele momento da carreira, eu tinha que lidar com questões de filha pra mãe que eu nunca tinha resolvido, nunca tinha olhado. Senti que era uma hora bem fundamental. Logo depois do nascimento do Antonio, o pai dele saiu de casa. Também tive isso pra tratar. Porque tem o arquétipo do pai, o arquétipo da mãe, o arquétipo da família. Como boa virginiana, sempre me analisei demais. E chega uma hora que isso começa a virar uma piração. É bom ter alguém do lado de fora pra ajudar a dar o devido tamanho às situações, às dificuldades.”

Barriga de fora

Em dias como hoje, em que a voz pode não responder completamente aos seus comandos, ela recorta o repertório do show de acordo com o esforço físico que cada canção exige. As mais dramáticas devem ser evitadas. Mas a loucura desse ofício é que, mesmo em dias assim, a adrenalina que o palco despeja no corpo do artista não vai embora depois que o espetáculo termina. Fica ali por horas, estimulando. Tira o sono. Difícil é acordar no outro dia às seis e 15 da manhã, como de costume, a tempo de levar o menino à escola.

 

“Como boa virginiana, sempre me analisei demais. Chega uma hora que começa a virar uma piração. É bom ter alguém do lado de fora pra ajudar”

Os dois moram no Rio desde 2007, ano em que ela lançou o terceiro álbum, Samba Meu. Aconteceu ali uma metamorfose. A menina ensimesmada dos dois primeiros trabalhos explodiu. Pela via da música, explorou o canal da sexualidade. Emagreceu, diminuiu significativamente o comprimento do vestido, botou a barriga de fora. No início desse processo, tinha aulas regulares com um personal trainer dentro de casa, já que “em academia a pessoa acaba virando um hamster enjaulado”. Caneleira de 12 quilos, esteira. Depois, dispensou tudo isso em nome de uma nova ordem: fechar a janela, ligar o som e sair dançando pela casa. Além disso, recorre à drenagem linfática, para desintoxicar. “Depois de velha comecei a inchar muito com avião, a drenagem ajuda com isso. Faço limpeza de pele, hidrato o cabelo. É tudo meu isso aqui. Não tem nada de mentira aqui não.” E controla a alimentação, sobretudo antes das apresentações. Hoje, no camarim, comeu apenas uma pera – que já chegou a suas mãos descascada e cortada em cubinhos – e uma salada árabe.

“Até os 18, 19, eu achava que beleza era uma coisa superficial. Meu negócio era ser intelectual, Páginas Amarelas da revista Veja, ler o máximo possível. Mas, no fundo, eu sofria com isso. Via editorial de moda nas revistas e tudo o que eu mais queria era usar uma daquelas roupas. É preciso de tempo pra poder entender como as coisas funcionam. Quando a gente é menina e as amigas perguntam qual é seu tipo de homem preferido, a resposta é: ‘Ah, ele tem que ser moreno’. Mais velha, vira: ‘Ah, tem que ser trabalhador’. Hoje, é: ‘O cara tem que me aceitar’. Porque já estou com 33 anos e não vou mudar.
É isso e pronto. Não vai dar? Então tchau, meu filho. Não venha atrasar minha vida.”

Está solteira e, sempre que necessário, repete o clássico mantra do “antes só do que mal acompanhada”. Quer ter outros filhos, mais quatro. Se não for possível fazê-los da maneira tradicional, pensa em recorrer a outros métodos disponíveis no mercado – da adoção ao banco de esperma. Bom é ter uma família grande.

Espelho meu

O show vai começar em 20 minutos. É hora de entrar no vestido, calçar o salto. A voz já não parece cansada depois dos exercícios de aquecimento. Está bonita e elástica como sempre foi. Tudo certo com a maquiagem?

O tempo passou depressa e já é o produtor batendo na porta. Maria Rita está à beira de se encontrar de novo com seu espelho predileto: retinas vidradas de centenas de desconhecidos que a esperam crispados, ansiosos pelo momento em que ela vai entrar em cena, abrir a boca e deixar a voz fazer o resto. A saudade que sentem agora pertence, enfim, exclusivamente a ela. Ou pertencerá, muito em breve.

ESTILO PICIDA GONÇALVES E RENATA FILOSI (DUAS ASSESSORIA) PRODUÇÃO ANA LUIZA TOSCANO E CHRISTINE LIBER ASSISTENTE DE FOTO ARMENAK NETO MAQUIAGEM AGNES MAMEDE (CAPA MGT) MANICURE MARCIA FERREIRA (ESMALTE REVLON 670 LOVE THAT RED) TRATAMENTO DE IMAGEM FABIO MEIRA (OSMEIRA)

MARIA RITA VESTE BLUSA COLCCI, SUTIÃ PELU, ANEL E PULSEIRA GUERREIRO, JEANS ACERVO PESSOAL.

AGRADECIMENTO SEIZI TAGIMA CUSTOM SHOP R. TEODORO SAMPAIO, 888 (11) 3082-2814 WWW.SEIZITAGIMA.COM.BR E X5 MUSIC R. TEODORO SAMPAIO, 825 (11) 3064-6000 WWW.X5MUSIC.COM.BR

 

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