Em sua estreia como dramaturga, Luisa Micheletti reflete sobre arquétipos femininos em uma peça que transpira sororidade
Parece existir uma régua moral que divide as mulheres entre Evas e Liliths. Pela tradição judaico-cristã, a primeira representa a fêmea bela, obediente, que nutre e acolhe, enquanto a segunda simboliza a rebeldia, a ruptura, o imprevisível. Algumas interpretações da Bíblia dizem que, por seu comportamento, Lilith foi exilada do Éden. Os dois arquétipos femininos nunca teriam se encontrado.
"Parece que uma mulher não pode ser criativa e confiável ao mesmo tempo, ou não pode ser sexy e mãe. Parece que tem sempre um 'ou'", diz a atriz Luisa Micheletti. Ela passou os últimos meses mergulhada em textos e reflexões sobre os arquétipos femininos e seus impactos na vida das mulheres. A imersão se refletiu na primeira peça teatral escrita por Luisa, Soror, que estreia hoje (05/04), no Sesc Ipiranga, em São Paulo, e segue em cartaz até o próximo dia 5 de maio. O texto propõe um encontro entre Eva e Lilith, duas forças femininas que, enquanto separadas, se enfraquecem mutuamente mas, quando reunidas, se completam e empoderam.
“Eu sempre ouvi que ‘mulher é competitiva’ e que ‘homem é muito mais parceiro’, e isso me incomodava. Quando eu tinha uns 20 e poucos anos, comecei a sacar o feminismo, andar com mulheres que pensavam sobre isso, participar de festivais de rock feminista e aí comecei a questionar essa ideia”, conta. O nome da peça, Soror, remete à sororidade, conceito fundamental do feminismo, e que é um sinônimo de “irmã”, em referência às protagonistas da obra, Eva, vivida por Fernanda Nobre, e Lilith, encenada por Luisa. A direção está nas mãos de Caco Ciocler, ex-companheiro da autora.
Trocamos uma ideia com ela sobre a estreia, se liga:
Tpm. Como você chegou nessa ideia?
Luisa Micheletti. Como mulher, sempre notei essa divisão que fazem a gente ter. Ou você é isso ou é aquilo. A partir do momento que uma mulher vira mãe, ela tem que ter um comportamento x, parece que a gente não pode ser tudo ao mesmo tempo, como os homens. Não pode ser criativa e confiável ao mesmo tempo, ou não pode ser sexy e mãe. Parece que tem sempre um "ou". E aí eu comecei a tentar entender de onde isso vinha, porque os homens não sofrem disso, não são cobrados. Intuitivamente vieram coisas bíblicas, porque eu já tinha lido sobre a Lilith, a mulher que teria existido antes de Eva e que é símbolo de insubordinação. Então eu resolvi brincar com isso. Na peça, elas ficam amigas, trabalho esse lugar da sororidade.
Deus é um dos personagens da peça? Sim, mas coloquei Deus como uma figura nada religiosa. Na verdade, Deus é um filho do patriarcado na peça. A ideia é que a união das mulheres é capaz de mudar a ordem do mundo.
Por que Lilith é tão pouco conhecida? Na Bíblia, a Lilith não é nominalmente citada, mas algumas interpretações do Gênesis colocam a possibilidade da existência dessa mulher que não se adequou ao Éden, foi embora e virou um demônio. Os textos sagrados têm muitas interpretações, porque é tudo muito metafórico, nada é preto no branco. Ela é uma força feminina muito importante, embora seja exilada. Representa essa força que geralmente a gente expulsa da gente, ou a sociedade expulsa da gente. É a força da revolta, da insubordinação, da independência, da raiva. E a gente precisa disso para ser inteira. Ficam dizendo que a gente tem que ser boazinha, sorrir, ser fofa, e aí a gente fica fraca. E se a gente tem raiva, autoridade, poder, aí chamam a gente de mandonas, de histéricas. Esse encontro das duas forças femininas é a peça.
Quem você interpreta na peça? Lilith, a mulher que rompe. E a Eva é a mulher que nutre, que cuida, que engravida, que tem esse lugar de suavidade. E ela também é importante. A ideia da peça é juntar essas singularidades, porque parece que ou você é a Eva ou a Lilith na vida. E a ideia é você pode ser as duas, por que não ser as duas? Não temos que negar nada. Podemos ser todas.
Como é interpretar um texto que você mesma escreveu? O que muda? Tem que acontecer um desapego. Quando escrevi, pensei em como seriam as cenas, mas aí chega a direção, a concepção de luzes, de cenário e muda tudo. Então precisei de uma boa dose de desapego para lidar com as mudanças, mas isso é ótimo. As ideias preconcebidas têm que ir embora para a peça funcionar e é muito bom entregar na mão de outras pessoas, que têm ideias maravilhosas e até melhores que as minhas.
Quem dirige é o Caco Ciocler, seu ex-companheiro. É tranquilo ser dirigida pelo ex? É. A gente estava junto quando eu estava escrevendo e ele acompanhou todo o processo, estimulou também. Sempre foi uma ideia nossa montar o texto, então naturalmente a coisa seguiu.
Créditos
Imagem principal: Edson Kumasaka / Divulgação