"A origem do mundo" resgata a história da vulva

por Carol Ito

”Eu mesma já senti muita vergonha do meu corpo quando era adolescente”, diz Liv Strömquist, autora da HQ que expõe os tabus ligados à vagina

A quadrinista sueca Liv Strömquist tinha um objetivo claro quando criou a história em quadrinhos A origem do mundo: fazer com que as leitoras se sentissem empoderadas em relação ao próprio corpo e sexualidade. “Uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado” é o subtítulo da graphic novel que aborda o tabu em relação à genitália feminina. A obra já foi traduzida para mais de dez línguas e chegou às livrarias brasileiras dia 22 de junho, pela Quadrinhos na Cia., selo de HQs da Companhia das Letras.

A vulva foi muito mal estudada ao longo da história e Liv, com um humor satírico, traz dezenas de exemplos que comprovam essa tese. É o caso do médico inglês Isaac Baker Brown (1811–1823), opositor ferrenho da masturbação feminina, que realizava cirurgias de remoção do clitóris (a clitoridectomia) com o pretexto de curar histeria, dor de cabeça, depressão, perda de apetite e o que chamava de desobediência. 

Os estudos só melhoraram em 1998, quando a urologista australiana Helen O'Connell descobriu o verdadeiro formato do clitóris, que se projeta internamente e é muito maior do que o “ponto minúsculo” descrito em muitos livros de anatomia até então. As justificativas para tanta negligência vão desde a falta de cientistas mulheres estudando o corpo feminino até a repressão religiosa em torno do desejo sexual. 

Liv Strömquist, de 40 anos, nasceu em Österlen, sul da Suécia, um país que já “percorreu um longo caminho quando se trata de igualdade de gênero e educação sexual”, segundo ela. A cartunista é formada em ciência política e,  além dos quadrinhos, tem um podcast chamado Conversa de verão, em que fala sobre menstruação. Já escreveu uma peça de teatro e o roteiro de um curta sobre o cineasta Ingmar Bergman, que foi exibido em Cannes, este ano.

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Em 2017, a artista foi convidada a expor a série The Night Garden, de desenhos de mulheres pintadas em preto e branco com manchas vermelhas na calcinha, no metrô de Estocolmo. As ilustrações, que se referiam à menstruação com naturalidade, provocaram críticas nas redes sociais e duas peças foram danificadas.

Liv também é autora das HQs Cem por cento de gordura (2005), Desejo (2006), A mulher de Einstein (2008), Os sentimentos do príncipe Charles (2010) e A cartilha da Liv (2011), ainda não lançadas no Brasil.  No próximo dia 5, a youtuber Jout Jout Prazer, a psicanalista e fundadora da Casa Prazerela, Mariana Stock, e a jornalista Gabriela Borges, criadora do projeto Mina de HQ,  se reúnem na Casa Prazerela, em São Paulo, para um bate-papo sobre o livro.

Em entrevista à Tpm, Liv conta que “a percepção negativa do órgão sexual feminino, culturalmente tratado como repugnante ou vergonhoso, afeta as mulheres em um nível psicológico muito profundo”. Ela também reflete sobre menstruação, machismo e o papel dos homens em meio ao feminismo em ebulição.

Tpm. Você traz muitos dados em seu livro, como foi essa pesquisa?
Liv Strömquist.
Eu via coisas muito estranhas pesquisando palavras como “vagina”, “boceta” e “vulva” no Google, então, fui procurar literatura sobre isso. Quando tive informações suficientes, comecei a escrever o roteiro dos quadrinhos. Isso foi o que levou mais tempo.

Por que você escolheu a vulva como ponto de partida? Na língua sueca, nem existe uma boa palavra para "vulva" que não seja em linguagem chula. É uma parte do corpo que mesmo as mulheres sabem muito pouco, especialmente quando se trata da história cultural da vulva, da menstruação e assim por diante. Eu mesma já senti muita vergonha do meu corpo quando era adolescente e queria investigar porque isso acontece, tentar mudar.

“A vulva é uma parte do corpo que está rodeada de muitos sentimentos histéricos em nossa sociedade”
Liv Strömquist

Como as pessoas costumam reagir à sua HQ, que expõe tantos tabus em relação à sexualidade e ao corpo feminino? Eu realmente fiquei surpresa por ter levado meu trabalho para vários países. Achei que era radical demais e que meus quadrinhos seriam interessantes apenas para um grupo muito pequeno de pessoas (meus dois ou três amigos). Mas, desde o começo, senti que as pessoas estavam interessadas.

Como é a educação sexual na Suécia? Isso influenciou seu trabalho? Mesmo que a Suécia tenha percorrido um longo caminho quando se trata de igualdade de gênero e educação sexual, ainda não estamos na utopia. Quando estava lendo livros de biologia que ainda são usados em escolas suecas, por exemplo, encontrei informações erradas sobre o clitóris. Um livro diz que ele é um “ponto minúsculo” quando, na verdade, é um órgão bastante grande que se espalha pelo interior do corpo.

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Com o seu livro você quer que as mulheres se sintam empoderadas. Em que sentido? Acho que a percepção negativa do órgão sexual feminino, culturalmente tratado como repugnante ou vergonhoso, afeta as mulheres em um nível psicológico muito profundo. O órgão sexual feminino é retratado como algo fraco – "não seja uma pussy" –, enquanto o órgão sexual masculino está constantemente ligado a conotações positivas de potência, força, masculinidade e assim por diante. Claro que isso afeta como nos sentimos sobre nós mesmas e limita a ideia do que podemos fazer no mundo. É um auto-ódio, eu acho. Para mim foi importante descobrir e aprender todas as informações que conto no livro, porque isso me fez sentir mais fortalecida e espero que a leitora sinta o mesmo.

“As religiões monoteístas tiveram que extirpar as antigas religiões que cultuavam a fertilidade e o feminino, a fim de ter poder absoluto”
Liv Strömquist

Os homens teriam gasto "uma energia exagerada concentrada em colonizar, de várias formas, o corpo feminino até o último canto úmido e escuro", como você diz no livro. Por quê? Tem a ver com a vontade de poder, penso eu. Nas religiões monoteístas existem apenas divindades masculinas - e há uma mudança clara em que o corpo feminino, a sexualidade feminina (e todos os tipos de sexualidade humana) são removidos do "sagrado" para o "oposto do sagrado".

E com a chegada da ciência moderna? Quando a religião foi substituída pela ciência, depois de 1880, a última teve que tentar encontrar explicações para o por que das mulheres serem muito diferentes dos homens. Antes, só podiam dizer "as mulheres não têm poder na sociedade porque é isso o que Deus quer". Mas depois tiveram que apresentar razões científicas e foi aí que a ciência médica começou a ficar obcecada por útero, a menstruação etc.

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O ciclo menstrual ainda é pouco compreendido pelas mulheres, em geral? No livro, você comenta que o período da TPM, por exemplo, favorece a criatividade e sensibilidade da mulher. Sim, acho que há muito a aprender sobre menstruação e menopausa, pontuando que as mulheres experimentam esses períodos de maneiras muito diferentes. Algumas mulheres são muito afetadas por isso, enquanto outras não. Acho uma má ideia tratar as mulheres de maneira diferente dos homens por causa de nossa menstruação. Isso poderia levar a um determinismo biológico que não seria bom para as mulheres.

“Não é tão simples dizer que as mulheres são sempre oprimidas e os homens são sempre opressores”
Liv Strömquist

Em entrevista, você disse que o radicalismo feminista pode gerar misoginia. Como isso é possível? Acho que é importante que nós, como feministas, não dispensemos os homens. Há muitos homens que são perdedores na economia global, que têm grandes dificuldades para encontrar um lugar nesta ordem mundial neoliberal, não é tão simples dizer que as mulheres são sempre oprimidas e os homens são sempre opressores. Quando alguns homens são confrontados com o feminismo, pensam: “O que elas estão dizendo? Eu não tenho nenhum poder. Estou desempregado, enquanto Hillary Clinton diz que sou um opressor com um privilégio”. Isso simplesmente não faz nenhum sentido para eles.

Como torná-los aliados? Sou socialista, por isso estou interessada em sindicatos entre os oprimidos para que juntos possamos lutar contra o poder real: a elite das finanças corporativas, o 1% da população. Tragicamente agora vemos muitos desses "perdedores" se aliando à elite da direita, porque eles não podem encontrar um lugar no movimento liberal de esquerda. Eles apenas veem feministas como mulheres que os responsabilizam por todo o mal no mundo, que se recusam a reconhecer qualquer aspecto positivo da masculinidade. Esse não parece ser um grupo muito convidativo para participar. Então, se queremos ganhar, acho que temos que trabalhar juntos como irmãos e irmãs.

Créditos

Imagem principal: Divulgação / Liv Strömquist

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