Berna Reale: sangue, suor e arte

por Lia Hama
Tpm #165

Na jornada dupla como perita criminal e artista visual, Berna Reale encontra corpos em estado de putrefação e mulheres vítimas de violência doméstica, que a inspiram para suas corajosas performances

É sábado de manhã no Mercado Municipal de Carne Francisco Bolonha, parte do complexo Ver-o-Peso, no centro antigo de Belém do Pará. Açougueiros carregam peças de contrafilé, picanha e alcatra. Dentro de um dos boxes de venda, a artista visual Berna Reale dá instruções para seu namorado e primo, o engenheiro eletrônico Victor Reale, autor do retrato acima: “Foca no meu rosto e desfoca a carne. Isso, agora fica atrás da grade”. Faz três anos que ele fotografa as performances de Berna, um dos nomes mais importantes da arte contemporânea no Brasil.

Nascida na capital do Pará e criada no coração da Floresta Amazônica, Bernadete de Lourdes Guerreiro Reale é descendente de italianos por parte de pai, e de índios e negros por parte de mãe. Em maio do ano passado, ela representou o Brasil, ao lado dos artistas Antonio Manuel e André Komatsu, na Bienal de Veneza, a mostra de arte mais pop do mundo. Aos 50 anos, seu corpo mignon (de 1,58 metro de altura e 59 quilos) vira uma verdadeira potência ao encarnar os personagens de suas corajosas criações artísticas, que abordam temas como a violência e a injustiça.

A primeira das performances, Quando todos calam (2009), resultou numa foto icônica da artista deitada nua numa cama branca, coberta de vísceras (de bois) e rodeada por urubus. Ao fundo, o Mercado Ver-o-Peso, cenário marcante em sua carreira. “Foi ali que comecei com esse gostinho de invadir a cidade”, conta. Desde então a artista já foi carregada pelas ruas de Belém nua e amarrada numa vara; dançou “Cantando na chuva” em um tapete vermelho em meio a um lixão; remou um barco cheio de ratos; e correu com uma tocha olímpica pelos corredores de uma penitenciária.


Égua!
Formada em arte pela Universidade Federal do Pará, Berna faz jornada dupla como artista – representada pela galeria Nara Roesler, de São Paulo – e como perita criminal do Centro de Perícias Científicas Renato Chaves, na capital paraense. Como perita, trabalho que realiza há seis anos, ela observa de perto os crimes e os conflitos de uma das cidades mais violentas do Brasil. Já encarou cadáveres em estado de putrefação – os chamados “podrões” –, corpos de suicidas e mulheres vítimas de violência doméstica.

Em fevereiro deste ano, ela denunciou uma agressão que sofreu no centro de perícias. Segundo Berna, após relatar indícios de irregularidades que estavam ocorrendo no local, o diretor do instituto perdeu o controle, começou uma discussão e a empurrou contra a parede, dizendo que ia ensinar como respeitá-lo. Ela o denunciou ao Ministério Público, que encaminhou o caso para a Justiça Criminal. A primeira audiência está marcada para o dia 20 de julho.

Mulher, nascida e criada no norte do país, começando nas artes plásticas depois dos 30 anos, ganhando a vida como servidora pública, acostumada com a brutalidade e com a crueza do trabalho como perita criminal: a trajetória de Berna é um roteiro nada óbvio, muito particular. “Seu trabalho é uma equação única de potência e fragilidade, de entrega e de coragem, de vida e de morte”, avalia Luiz Camillo Osorio, curador do pavilhão brasileiro na Bienal de Veneza em 2015.

A artista recebeu a Tpm em sua casa. Em várias ocasiões, soltou a expressão local: “Égua!”, presente em seus inflamados posts nas redes sociais. E o que significa égua? “É uma exclamação, em geral para falar de coisa boa. Você diz: ‘Égua, essa comida tá muito boa!’”, explica. A seguir, toda a intensidade dessa artista e perita.

Tpm. Belém está entre as cidades mais violentas do país, com altos índices de criminalidade. Como isso se reflete em seu dia a dia?
Berna Reale. A violência faz parte do meu cotidiano. Em dois momentos: no meu cotidiano profissional, como perita criminal, e no pessoal, como mulher, mãe de duas filhas: Angélica, publicitária de 28 anos, e Carla, advogada de 23. Eu trabalho em um local onde vejo violência todos os dias. Sinto medo quando minhas filhas saem à noite, fico controlando se elas já chegaram em casa. Elas não têm a dimensão do risco a que estão expostas, mas eu tenho.

Como é seu trabalho de perita criminal? O que você faz exatamente? Nesses seis anos, passei por vários setores. Atualmente estou na equipe de patrimônio. Chego ao trabalho e tem os ofícios do delegado pedindo as perícias. Aí fazemos um sorteio e cada perito vai para um caso diferente. São ocorrências como briga doméstica, que a gente chama de “cachimblema”: cachaça, chifre e problema. Esses cachimblemas todo dia tem. É o cara que não se conforma que a mulher quer deixá-lo, bate nela e quebra tudo em casa. Ou briga de vizinhos que bebem além da conta no fim de semana.

Como você lida com os casos de violência doméstica? É punk porque interajo com a vítima. Numa cena de homicídio só existe o cadáver. Agora, num caso de violência doméstica, a vítima está lá na casa, esperando socorro. A mulher sofreu agressão na noite anterior. Tudo em volta está quebrado, jogado no chão, às vezes tem sangue. Já aconteceu de eu estar fazendo a perícia e o marido chegar e me ameaçar.

Algum policial faz a sua escolta? Policial não, mas a gente sempre leva mais uma pessoa nesses casos, que pode ser o segundo perito ou o motorista. Uma vez um cara havia agredido a namorada e não queria deixar a gente fazer a perícia, aí tivemos que comunicar o delegado. Ficamos esperando do lado de fora até o policial chegar para garantir a nossa entrada.

Acontece de a mulher se arrepender e desistir da denúncia? Teve uma vez que encontrei um casal de mulheres e uma era violenta com a outra. A violência estava a tal ponto que a agressora, daquela vez, fora presa. Quando cheguei à casa delas para fazer a perícia, a companheira queria desistir porque a outra estava sofrendo na prisão. O filho, de uns 7 anos, chorava muito e dizia: “Mãe, não desiste não, ela te bate muito”. E ela acabou autorizando a perícia.

Você atuou em outras áreas como perita? Trabalhei por dois anos com homicídios. Você chega e o cadáver está lá, o corpo ainda quente e o sangue escorrendo. Nós mexemos no corpo, observamos as lesões, fotografamos e medimos as dimensões de tudo. Com esse material, faço o laudo, descrevo em que posição a pessoa estava quando foi morta, se havia marcas no corpo dela, como estava a cena do crime, que arma foi usada e dou o diagnóstico do que aconteceu.

Você já se acostumou com essas cenas? Não gosto de suicídio. Cena de suicídio sempre me fez mal porque tem uma história prévia de desalento, de desistência. Geralmente o suicida deixa uma carta, que lhe dá uma memória de quem ele foi. Agora ruim mesmo são os “podrões”.

“A violência faz parte do meu cotidiano como perita criminal e como mulher mãe de duas filhas. Sinto medo quando minhas filhas saem à noite ”
Berna Reale

O que são os “podrões”? São os cadáveres encontrados em estado de putrefação. Na maioria das vezes, os caras morreram de morte violenta. É insuportável tanto do ponto de vista visual como do olfativo. A gente coloca Vick VapoRub no nariz e usa máscara porque fede demais. O último “podrão” estava há tanto tempo na casa, que os vizinhos começaram a sentir o cheiro. Quando o carro da perícia chegou na rua, tinha uma multidão em frente a casa. A porta estava lacrada e a polícia teve que arrombar. O que eu vi ali foi terrível, nunca vou esquecer.

O trabalho de perícia criminal deixa as pessoas mais duras? Trabalho há seis anos nessa área e não consigo ter intimidade com a violência. Faço de tudo para não ter. A violência não se tornou banal, ela não pode ser parte aceitável no meu cotidiano. Todo dia que vou trabalhar, penso nisso: estou aqui para fazer com que a violência diminua. Na verdade, você ganha outro tipo de sensibilidade porque vê de perto o que é filtrado pela televisão.

Você assiste seriados como CSI? Vi uma vez porque minha filha mandou assistir, mas é muito fora da realidade. Esses seriados confundem o trabalho do perito com o de investigador da polícia. No filme, o cara vai à casa das pessoas investigar, falar com elas. Acontece que o perito não faz isso, perito só faz laudo com base nos vestígios deixados na cena do crime. Ele não interroga ninguém. Se há suspeita de que um cara falou mal do fulano, que teria motivos para matá-lo, não é nosso papel investigar isso. Nosso trabalho é científico: tem o cadáver, a cena, a arma, o projétil, o sangue. Tenho que analisar: esse projétil saiu dessa arma? Foi o que perfurou esse corpo? Como foram feitas as lesões?

Como seu trabalho de artista complementa o de perita e vice-versa? O fato de ser perita me ajuda a pensar na temática dos meus trabalhos artísticos sobre violência. Já o fato de ser artista me ajuda na cena de um crime porque observo os detalhes com mais facilidade, tenho uma sensibilidade mais apurada.

Queria falar sobre a sua vida pessoal. Como foi sua infância no Pará? Em que ambiente você foi criada? Nasci em Belém, mas minha família é do meião da Amazônia, da floresta. Minhas férias e boa parte da infância passei com a minha mãe na região do lago do Sapucuá, interior do Pará. Aprendi a nadar no rio, andar a cavalo, remar. Meu pai, filho de um italiano que fugiu da guerra, era engenheiro agrônomo. Minha mãe, descendente de negros e índios, o ajudava no sítio. Tenho três irmãos, um de criação e dois de sangue. Meu pai era autoritário, do tipo que não deixava a gente ficar na janela de casa porque dizia que era coisa de prostituta. Se ficasse, ele botava de castigo. Também não deixou minha mãe estudar. Só quando se separaram ela voltou a estudar, entrou na faculdade e se formou em enfermagem aos 60 anos de idade.

De onde veio seu gosto pelas artes? Meu avô paterno gostava muito de entalhar em madeira, era um artesão de primeira. E meu avô materno, apesar de ser um homem da floresta, apenas com conhecimento básico de leitura e escrita, tocava violino de ouvido. Então os dois lados da família tinham essa sensibilidade.

Antes de ser perita, onde você trabalhava? Sou servidora pública estadual concursada há 32 anos. Logo que entrei, passei um ano na área de saúde e depois fiz concurso para a área cultural, onde trabalhei por 26 anos, na parte de planejamento de projetos culturais.

Como começou sua carreira como artista visual? Passei no vestibular para o curso de arte na Universidade Federal do Pará em 1986, mas interrompi a faculdade porque fiquei grávida e tive que cuidar das minhas filhas. Depois voltei e me formei em 1996. Fiz alguns trabalhos, minha primeira exposição individual e, em 2005, me inscrevi no Arte Pará, um salão de arte do estado. Criei uma instalação gigantesca, fechei a fachada de um museu com 600 metros quadrados de fotografias. Parecia que o prédio estava descascando, se deteriorando. Esse trabalho chamou a atenção do curador, Paulo Herkenhoff, atual diretor cultural do Museu de Arte do Rio (MAR). Ele foi a primeira pessoa, fora do Pará, que apostou no meu trabalho. Sou eternamente devedora dele.

Como ele te ajudou? Em 2006, ele me convidou para realizar um projeto artístico no mercado de carnes de Belém. Fiquei pensando sobre o significado do mercado. Ele é o estômago de uma cidade. Ali tem miséria e tem fartura. Tem gente que se alimenta dos produtos e tem quem sobreviva dos restos. Aí pensei em colocar, dentro dos boxes de venda de carne, uns backlights com fotografias de vísceras humanas. Pedi autorização e fui para o Instituto Médico Legal (IML) fazer as fotos. 

Você não passou mal fotografando vísceras de cadáveres? Não, eu me encantei pelo trabalho. Um dia eu estava com o meu irmão e chegou um amigo dele, que é perito. Contei que estava fazendo um trabalho no IML e ele disse que haveria um concurso. Comentei com os meninos da necropsia e eles falaram: “Berna, por que tu não tenta uma vaga?”. Respondi: “Imagina, eu, perita criminal? Não consigo passar nesse concurso, não”. Mas fiquei com aquilo na cabeça. Ganhava muito mal naquela época, por volta de um salário mínimo. Lembro que a inscrição para prestar o concurso custava R$ 100 e eu não tinha esse dinheiro, quem pagou foi meu irmão. O curso preparatório paguei parcelado no cartão de crédito. Foi R$ 320. Minha filha falou: “Mãe, pelo amor de Deus, pega nosso dinheiro de volta! Isso é metade do que a senhora ganha por mês”. Aí fiz o cursinho, prestei a prova e passei em primeiro lugar. 

“Imagina o que eu ouço quando os jornais publicam uma foto minha pelada, com um monte de urubus voando em cima de mim, e chego para trabalhar”
Berna Reale

Em fevereiro deste ano, você foi vítima de um episódio de violência dentro do Centro de Criminalística de Belém. O que aconteceu? Estou evitando falar sobre isso porque minhas advogadas me orientaram a falar somente em juízo. Só posso dizer que, para mim, foi muito duro sofrer uma violência dentro de um local que supostamente é para coibir violência.

Você sofre preconceito dentro da polícia por ser artista? Muito. As pessoas criam um estereótipo do artista como um cara relapso, que não devia estar lá fazendo aquele trabalho. Então tento me blindar sendo a pessoa mais correta possível dentro das funções de perita. Eu me cobro uma rigidez muito maior por causa desse preconceito. No dia do meu plantão, sou a primeira a chegar e a última a sair. 

Já ouviu comentários sobre o fato de ser artista? Imagina o que eu ouço quando os jornais todos publicam uma foto minha pelada, com um monte de urubus voando em cima de mim, e chego para trabalhar. Todo mundo sabe quem eu sou no [Centro de Perícias Científicas] Renato Chaves. Não tenho como escapar dos risos, das brincadeiras e do preconceito. Porque essas pessoas não têm a dimensão da arte, acham loucura o que eu faço. Sinto que nesse processo há uma tentativa de diminuir a minha pessoa pelo fato de eu ser artista. Querem colar em mim a imagem de desequilibrada, escandalosa.

Você não recebe solidariedade de colegas? Infelizmente são poucas pessoas dentro da área de segurança que têm leitura cultural. Temos muitos técnicos e cientistas, mas nem sempre o conhecimento científico vem acompanhado de conhecimento cultural. Os que entendem, apoiam, mas é uma minoria. 

Existe muito machismo dentro da polícia? Você é a única mulher lá? No meu setor, somos três mulheres e nove homens. Com certeza existe machismo. É o “deixa que eu faço isso”, como se a gente não desse conta, o que não é verdade. Eu passei em primeiro lugar no meu concurso para perita, na frente de muitos homens.

“Podrões são cadáveres em estado de putrefação. A gente coloca Vick Vaporub no nariz porque fede demais”
Berna Reale

Mas eles deixam uma mulher fazer esse trabalho de perícia com o “podrão” numa boa? Deixam. Não existe um preconceito claro. Tudo dentro da polícia e da segurança pública é muito velado quanto ao preconceito e à violência lá dentro. Eles têm muito cuidado porque são peritos também. É um tipo de discriminação velada.

Hoje você conseguiria viver apenas do que ganha como artista? Égua, de jeito nenhum! Não posso perder meu trabalho, dependo dele para pagar minhas contas. Mesmo se ganhasse muito dinheiro como artista, não deixaria o trabalho de perícia porque gosto do que faço. Com esse problema da agressão que sofri, meus amigos falam: “Berna, tu não foi formada nesse mundo da violência, tu foi formada no mundo da arte. Deixa essa vida!”. As pessoas falam como se fosse um sofrimento para mim. Não é! Não tenho rotina, cada dia é uma aventura.

Em que momento seu trabalho artístico começou a ser reconhecido no resto do Brasil? Quem me deu visibilidade foi o Projeto Rumos, do Instituto Itaú Cultural, e o Prêmio Pipa (Prêmio de Investidor Profissional em Arte), ambos em 2012. Foi muito emocionante exibir minhas obras no Instituto Itaú Cultural porque quando você expõe na avenida Paulista, expõe para o Brasil.

E como foi o reconhecimento no exterior? Participei de uma mostra de artistas brasileiros na Somerset House, em Londres, em 2012. Também expus em Portugal e na Alemanha. Mas nada se compara à Bienal de Veneza, porque ela te dá um certificado e uma visibilidade. Fiz um projeto fora do pavilhão também, projetei as minhas performances na rua para que os próprios venezianos pudessem ver. Porque a Bienal é mais para os turistas e para o mundo da arte, os venezianos mesmo não vão.

“Sou uma artista pobre, que adora o luxo. Queria muito ter dinheiro para fazer coisas mais cinematográficas”
Berna Reale

Você imaginava um dia participar da Bienal de Veneza? Nem nos meus maiores devaneios! É tanto artista bom que não imaginava que justo eu seria convidada para Veneza. Quando o curador Luiz Camillo Osorio me ligou, você não tem ideia. Eu não deixava o homem falar. Eu gritava: “Para tudo, pelo amor de Deus! Égua, eu não acredito!”. Comecei a chorar, a gritar. Ele falava: “Berna, te acalma, quer que eu ligue daqui a pouco?”. Respondi: “Não, pelo amor de Deus, não desliga esse telefone, vai que você desiste de mim. Eu aceito, eu aceito!”.

Como é seu processo de criação artística? Quanto tempo demora para fazer um vídeo como Cantando na chuva (2014), em que você caminha no meio do lixão, com uma máscara de gás no rosto? Geralmente levo no mínimo seis meses para ter uma ideia do que vai ser a performance. Entre fechar a ideia e executar são uns quatro meses. Tenho que visitar o local, pedir as autorizações, ver a época do ano em que vai ser feita, produzir o figurino e tudo o mais. Então, somando tudo, são uns dez meses, no mínimo, para realizar um trabalho.

Tem uma equipe fixa que te acompanha? Tem o Victor, que fotografa as performances, e o Diego Feitosa, que é o câmera. Aí tem outros que eu chamo quando é um trabalho maior. No vídeo do Círio de Nazaré [Promessa, de 2015] foram oito: três câmeras principais, três assistentes, um produtor e um fotógrafo. Antes disso tem todo um trabalho de bastidores de pessoas que me ajudam. Tenho um amigo, José Carlos Porpino de Oliveira, que é engenheiro eletrônico e eu chamo de Professor Pardal. Eu falo: “Zé, preciso disso”. Ele faz. Foi ele quem criou a tocha olímpica de Americano (2013) e a biga de Soledade (2013). Minha mãe costura os figurinos. E tenho uma rede de amigos que me ajudam a obter as autorizações para as performances em locais públicos.

Como foram os bastidores das fotos de Quando todos calam (2009), em que urubus sobrevoam o seu corpo nu, coberto de vísceras? Era para ser com o dia amanhecendo. Se você for de madrugada no Mercado Ver-o-Peso, tu vai ver a muvuca que é. São mais de 300, 400 homens juntos, carregando açaí, peixe, farinha. Cheguei lá de roupão com a equipe. Quando vi aquele monte de homens juntos, procurei um policial para dizer que a gente ia fazer uma performance, que já tinha sido avisado ao secretário da Segurança Pública. O policial disse: “Não vou deixar porque antes da arte vem a sua vida. Não vou me responsabilizar, não tenho condições de controlar esses homens aqui. Se você ficar nua em cima dessa mesa, não vou ter como lhe defender. Faça o seguinte: volte pra casa e venha depois das 3 da tarde, que está mais tranquilo”. E foi o que fizemos. 

Como você financia seus trabalhos? Vou guardando dinheiro e reinvestindo o que ganho de vendas. Mas meu patrocínio maior se chama Victor Reale, tenho uma dívida enorme com ele, está tudo anotadinho. Meus amigos me ajudam a vender as obras. Uma amiga acabou de vender dois trabalhos meus para pagar meus advogados.  

Quais são suas referências artísticas, quem são os artistas que você admira? O Matthew Barney [artista norte-americano que faz esculturas, fotografias, instalações e vídeos, como a famosa série de cinco filmes, The Cremaster Cycle, realizados entre 1994 e 2002] eu amo de paixão. Ele é abusadamente bom no que faz, está à frente dos outros e chama uns caras de tecnologia avançadíssimos para trabalhar com ele. Gosto disso. Sou uma artista pobre que adora o luxo. Queria ter muito dinheiro para fazer coisas mais cinematográficas. No Brasil, um artista de quem gosto demais é o Cildo Meireles [artista carioca conhecido por seus trabalhos de cunho político]. Sou muito fã dele e quando tive a oportunidade de encontrá-lo, me derreti por inteiro, beijei, abracei, apertei. 

Seu trabalho Rosa púrpura mostra um grupo de 51 mulheres marchando em ritmo militar de saia rosa e boca de boneca inflável. Qual é a mensagem por trás? Queria falar sobre a violência sexual contra as mulheres, principalmente as com menos voz: crianças, adolescentes e mulheres de menor condição social. São as maiores vítimas de violência sexual.

“Que democracia é essa em que você só é bom se concordar comigo? ”
Berna Reale

Você é feminista? Olha, até pouco tempo atrás eu não sabia que era feminista, tinha até um certo preconceito com isso. A palavra feminista ficou impregnada de estereótipos, feminista era vista como mulher mal resolvida, solitária, então essa palavra não me soava bem. Até que fui convidada para participar de um ciclo de debates em São Paulo, no Sesc Belenzinho, chamado Guerrilheiras ou para a terra não há desaparecidos, que acompanhou uma peça de teatro com o mesmo nome sobre mulheres que lutaram na Guerrilha do Araguaia. Lá conheci outras mulheres atuantes como eu e descobri que sou feminista, sim, e que luto para a igualdade dos gêneros. Mas o tema principal dos meus trabalhos é a violência, e não o feminismo.

É a favor da legalização do aborto? Totalmente a favor. Minha mãe quer morrer quando eu falo isso porque ela é super-religiosa, acorda e anoitece rezando.

No trabalho Soledade, de 2013, você aparece como Dilma Rousseff numa biga romana sendo levada pelos porcos. Qual era o seu objetivo? Queria aproveitar que estávamos sendo governados por uma mulher para falar do Executivo, não era minha intenção falar só sobre o PT, e sim sobre o poder de forma geral. Quando assume o poder, o Executivo depende do Legislativo. E esse Legislativo é puxado por quem? No caso de boa parte dos países da América Latina, por uma corporação de políticos com grandes indícios de corrupção. Então fiz um paralelo entre os porcos e as pérolas – numa alusão à frase “Não jogue pérolas aos porcos” – e também ao ditado popular: “Quem se mistura com porcos, farelo come”.

Você tem sofrido críticas nas redes sociais por causa dessa obra. Você acha que, quando faz um pacto com o diabo, como a Dilma fez, o diabo, no caso o PMDB, não vem cobrar a conta? Não dá pra ser ingênuo. Agora dizer o que você pensa e não só ecoar o que os outros dizem traz um custo. Ontem mesmo vi um crítico no Facebook dizendo que ele está anotando os nomes dos artistas que se posicionaram a favor do impeachment e citaram o meu nome. Só que eu nunca me posicionei dessa forma.

“Não faço arte apenas para quem frequenta galerias. Procuro simplificar o meu trabalho para alcançar mais pessoas”
Berna Reale

Você votou na Dilma? Não, votei na Marina Silva no primeiro turno e no segundo turno eu estava na Alemanha. E não votaria no Aécio, nunca acreditei nele. 

Qual é sua opinião sobre o processo de impeachment? Eu não quero o impeachment, eu luto por novas eleições. As pessoas acham que ou você é a favor da Dilma ou é inimigo. Elas não conseguem aceitar o meio-termo, as nuances. Que democracia é essa em que você só é bom se você concordar comigo? Parece a Idade Média.

Sua próxima performance é na avenida Paulista. Como será? Vou falar sobre a questão da polícia, da segurança pública e da nossa vulnerabilidade como cidadão no Brasil. Estou no início do processo, ainda não tenho definido como será, mas meu plano é fazer em setembro.

Que reação você pretende causar no público com sua obra? Infelizmente a arte visual tem pouco alcance. Não faço arte para ser vista apenas por quem frequenta museus e galerias, procuro simplificar ao máximo meu trabalho, usar símbolos do cotidiano para alcançar mais gente. Mas não tenho a pretensão de transformar ninguém, tenho a intenção de provocar uma reflexão. Se conseguir isso, já vou ficar feliz.

Serena e Trágica

Uma breve conversa sobre a obra de Berna Reale com Luiz Camillo Osorio, crítico de arte e curador, ao lado de Cauê Alves, do Pavilhão Brasileiro da Bienal de Veneza em 2015

Tpm. Como uma mulher que trabalha como perita criminal em uma cidade do norte do país, longe do eixo Rio-São Paulo, se tornou um dos maiores nomes da arte contemporânea brasileira, sendo convidada para representar o Brasil
na Bienal de Veneza?
Luiz Camillo Osorio. Estar no norte do país, no coração da Floresta Amazônica, com uma tradição rica que vem da cultura ameríndia, depois da riqueza de época da borracha e que se desfez na decadência e na opressão daqueles que exploram as riquezas naturais, faz daquela região uma mina de potencialidades e de tragédia. Lugar ideal para a sensibilidade de uma artista. Soma-se a isso o fato de trabalhar como perita policial, de conviver com um mundo medieval, machista, racista e doloroso. A vida como ela é, na sua forma mais cruel e brutal. Isso atravessa a obra da Berna e ela faz isso sem ser ilustrativa, sem reproduzir a realidade, mas deslocando-a em um universo de fabulações que multiplica as possibilidades de sentido diante deste mundo irreal.

“O trabalho de Berna Reale é uma equação única de potência e fragilidade, de entrega e de coragem, de vida e de morte”
Luiz Camillo Osorio, curador do pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza de 2015

Que trabalhos dela você destacaria? Por razões óbvias, por ser o trabalho que escolhi, junto com Cauê Alves, para apresentar na Bienal de Veneza, destacaria o vídeo Americano. A sua corrida, carregando a tocha olímpica, por dentro de um presídio paraense é uma das metáforas mais poderosas do momento em que vivemos. Ao mesmo tempo em que temos condição de realizar um espetáculo como as Olimpíadas para o mundo, temos prisões bárbaras espalhadas pelo país, em que a vida humana não vale um figo seco, em que as condições de civilidade são reduzidas a nada. E ela percorre o espaço, com uma câmera muito marcada pelas tonalidades lúgubres do lugar, de forma olímpica, serena, trágica. Uma obra que, tenho certeza, ficará para sempre.    

Qual foi seu primeiro contato com a obra de Berna? Foi o trabalho que ela fez no mercado público em Belém, deitada nua em uma maca, coberta de vísceras e com os urubus voando em volta. A força desta cena me marcou. Uma equação única de potência e fragilidade, de entrega e coragem, de vida e morte.

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