É a mulher quem carrega a água do mundo na cabeça

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por Mara Gabrilli

Prestes a representar o Brasil na ONU, Mara Gabrilli explica como o acesso à água e a condição da mulher estão ligados 

Ter disputado um cargo em um comitê da ONU deu um trabalho danado nos últimos tempos. A agenda, que já era atribulada, ficou frenética. E meus esforços para entender as problemáticas da inclusão passaram de uma escala nacional para a global. 

Todo esse empenho, no entanto, valeu muito a pena. A partir do ano que vem, o Brasil terá um representante no Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o CDPD. É a primeira vez que o nosso país tem um representante ali, pensando na galera com deficiência no mundo. É uma responsabilidade muito grande. Tão grande quanto minha felicidade. Sinto que meu olhar de tetra para o planeta até ganhou um upgrade.

Hoje, questões que antes não tinham tanta correlação para mim agora fazem todo o sentido. O acesso à água e a condição da mulher no mundo são algumas delas. 

Para vocês terem ideia, mais de 2 bilhões de pessoas no planeta não têm acesso à água potável e mais de 4,5 bilhões não têm serviços de saneamento adequados. A precariedade dessa política pública é inclusive um dos maiores causadores de deficiência em alguns países.

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Atualmente, estima-se que 90% dos casos de deficiência visual estejam concentrados em nações em desenvolvimento. A maior parte poderia ser evitada com políticas de saúde.

Você deve estar se perguntando o que a causa da mulher tem a ver com tudo isso. Bom, é a mulher quem busca e carrega essa água que ainda não consegue chegar a todos que precisam.

É a mulher, sobretudo a pobre, quem carrega a água do mundo na cabeça. E não por acaso, é o contingente feminino quem mais é cometido por deficiências. E a violência doméstica perpetrada contra a mulher é um dos motivos para tal dado existir.

A cada dez pessoas no mundo, uma tem deficiência.  A cada cinco pessoas com deficiência, três são mulheres. O mundo conta com 1 bilhão de pessoas com deficiência, das quais 600 milhões são mulheres.

Ou seja, não estamos falando de um microcosmo, mas de um planeta de mulheres e meninas esquecidas. Muitas buscando água potável para a subsistência de sua família e comunidade.

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A falta de gestão para a água perpetua não só a desigualdade entre nações pobres e ricas, gera disparidades dentro dos próprios países. Isso porque, antes da disputa pela água, há ainda a luta pela igualdade de gêneros. Juntas, mulheres e meninas em países de baixa renda gastam cerca de 40 bilhões de horas por ano coletando água — uma soma feita pela Unicef.

Estar na ONU, como a personificação de uma somatória de exclusões (mulher plus tetraplégica), me faz perceber a cada missão o quanto os direitos humanos são desrespeitados no mundo. E o acesso à água é um direito humano.  

Não é de agora que escuto falar da sub-representação da mulher na política, mas confesso que nunca havia refletido tão profundamente sobre essa questão quanto agora. A sensação de fazer parte de um contingente gigantesco, mas ainda tão sub-representado — para não dizer esquecido — nunca foi tão forte e, ao mesmo tempo, incômodo para mim.  

Percebo mais que nunca o quanto perdemos quando não temos mais mulheres no poder para balancear e democratizar acessos a politicas públicas tão básicas quanto fundamentais.

A mulher é também minoria na política, onde ocorrem as maiores relações de poder no mundo. Eu sou um exemplo disso. Faço parte dos tímidos 10% de parlamentares no Congresso.

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Para chegar à água, ao saneamento básico, ao combate à violência, temos mais essa barreira a vencer: acabar com a desigualdade de gêneros nas relações de poder.  

Toda essa reflexão me fez lembrar das eleições presidências de 2016, em São Tomé e Príncipe, país no continente africano. A candidata Maria das Neves se tornou a primeira cidadã são-tomense a candidatar-se às eleições presidenciais. Ela ficou em terceiro lugar na disputa com uma diferença de menos de 1% para o segundo lugar. Após a contagem final dos votos, que foi fraudada, diga-se de passagem, ouviu de seu adversário que ela "já poderia retornar ao seu marido para lavar e cozinhar".

Mulher e pobre, Maria das Neves pregava em seu discurso a esperança e o fim da exclusão. Em sua bandeira, estava o acesso à água potável a toda a população de seu país.

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