À sombra de Bogotá

por Sabrina Duran
Tpm #95

Deixando os guias no hotel, a jornalista Sabrina Duran achou o melhor do lado B de Bogotá

 

Não falhou uma só vez. Durante os 20 dias que passei trabalhando em Bogotá, capital colombiana, sempre que abria a janela do quarto ao acordar, meu mundo ainda sonolento era invadido por uma salsa no talo. A música, algumas vezes, vinha da casa de vizinhos; em outras, brotava da TV da recepção do hostel no qual me hospedava e onde Genna, a simpática recepcionista, trabalhava ao som do típico ritmo colombiano. Antes de ser um incômodo, a descoberta de que Bogotá tem som ambiente foi animadora. Disposta a andar e me perder pelas ruas da cidade, o fato de ser acompanhada pela música que escapava de casas, bares e lojas me dava ânimo e aguçava minha curiosidade para descobrir quem era o anônimo por trás da salsa.

É lá também que está o BiciCafé, misto de bistrô e bicicletaria onde são organizados passeios de bike pela cidade – Bogotá tem cerca de 300 quilômetros de ciclovia, uma das maiores do mundo

Bogotá é para se perder e se encontrar sem querer. Especialmente no bairro La Candelária, o centro histórico da cidade e excelente ponto de partida para uma jornada turística. Lá estão o Museu Botero, o Museu do Ouro, a praça Simón Bolívar, onde fica o capitólio colombiano, sede do congresso nacional e uma das principais obras arquitetônicas do país; e a rua Sétima, larga e movimentada via apinhada de ambulantes, artistas de rua, lojas e sebos de livros. É de lá que saem os teleféricos e funiculares que levam ao Santuário do Senhor Caído, em Monserrat, no topo da cordilheira que envolve toda a costa leste da cidade – o santuário fica a mais de três mil metros de altitude. É lá também que está o BiciCafé, misto de bistrô e bicicletaria onde são organizados passeios de bike pela cidade – Bogotá tem cerca de 300 quilômetros de ciclovia, uma das maiores do mundo. E, mais que tudo, é na Candelária que existem as ruelas e suas casas coloniais com fachadas coloridas e um mundo de atrações obscuras quase nunca recomendadas por agentes de turismo. Como eu prefiro conhecer o lado B dos lugares que visito, foi justamente nessas ruelas que comecei a me perder para encontrar o melhor de Bogotá.

Bizarrices
Por um feliz acaso, uma amiga fez chegar às minhas mãos o livro Bogotá Bizarra (ed. Aguilar, 322 pgs., em espanhol), um guia de viagem com indicações das coisas mais esquisitas para se fazer na cidade – entre elas, visitar um cabeleireiro de drag queens, comer em restaurantes trash, ir a uma briga de galo (que é legalizada na Colômbia) e outras coisinhas do lado obscuro da força. Por 45 mil pesos (cerca de R$ 40) comprei meu exemplar numa livraria local e sem ele não saía de casa.

 

A primeira dica do livro foi até bem dentro da normalidade: visitar o Vagão Café, um café pequeno e estiloso que fica dentro de um vagão de trem desativado. Com decoração retrô e jazz como música ambiente, o melhor do rápido programa é tomar um tinto (o café puro deles) e comer um pão salgado ultramacio (almojábana). Três mil pesos (R$ 2,50) são suficientes para o lanche. Se ainda assim a fome persistir, as ruas da Candelária e de toda Bogotá são cheias de padarias que oferecem constantes fornadas de pães e roscas e ambulantes que vendem churros incríveis, lascas de banana frita (salgadas), empanadas de carne e frango, formiga frita (!) e outras sortes de comida de rua. Eu, que torço o nariz para comida de rua, comi churros e empanadas quase todos os dias da viagem e não passei mal uma única vez. Sorte? Não. No óleo fervendo e no forno quente nenhum mal sobrevive.

 

Já a segunda dica bizarra de Bogotá fez mais jus à proposta do livro. Um boliche de 1941 na Jimenez, avenida troncal da Candelária. Com cheiro de mofo perpétuo, madeira velha, decoração demodé e sapatos especiais puídos, o boliche San Francisco é uma experiência antropológica. A reposição dos pinos e da bola é feita manualmente por dois rapazes que ficam nos fundos da pista. A comunicação dos pineiros com os jogadores é no grito. Se você, por exemplo, fizer um strike e, por despiste, atrever-se a jogar uma outra bola logo em seguida – regras próprias do San Francisco –, receberá um grito das profundezas dizendo algo como “marque seu ponto no quadro e dê a vez ao adversário!”. Um jogo com 20 bolas, para uma dupla de jogadores, mais duas cervejas longneck saem por menos de R$ 10 por pessoa.

Um pouco abaixo do Boliche San Franciso está a Plazoleta del Rosário, com sua estátua do fundador de Bogotá, Don Gonzalo Jiménez de Quesada, e sua feira diária de livros usados, discos, artesanato, roupas e revistas antigas. Colecionadora do último item, gastei cerca de R$ 30 em raridades – a mais antiga é um folhetim francês de 1913 com cenas de guerra pintadas à guache e pela qual paguei menos de R$ 5. Jimmy, o dono da banca, era pura disposição e conhecimento na hora de me oferecer os itens mais raros da coleção.

Supra-sumo trash
A terceira dica de Bogotá Bizarra foi tão longe quanto eu não poderia imaginar: comer no restaurante El Rincón de Jorge, a sudoeste da cidade. Foi um teste de fogo e óleo para meu estômago de mulherzinha. Encalacrado numa esquina suja da rua 55, o restaurante é o típico boteco engordurado e poeirento das periferias de metrópoles. Orelha e rabo de porco estavam no cardápio – cheiro monstro de gordura –, mas preferi o peixe. Quem serve os clientes é a esposa de Jorge, Margoth, ou La Mamita (a mamãezinha), como a tratam todos. Um prato bem servido e delicioso com peixe, arroz, salada e banana frita sai por cerca de R$ 5. Se quiser visitar a cozinha e socializar com La Mamita, uma senhora roliça e divertida, vá por sua conta e risco – coisas cascudas caminham pelas paredes. À saída, aproveite para conhecer os mariachis bogotenhos, versão andina dos bigodudos menestréis mexicanos com seus chapelões, trompetes, violões e cantos dramáticos. A rua 55 é o reduto dos mariachis, que abordam toda e qualquer pessoa que passa pela via e oferecem seus serviços para bodas, batizados e até enterros.

 

 

Por fim, a quarta dica B side bogotenha é o Templo do Índio Amazônico, na avenida Caracas. O templo é, na verdade, uma loja marcada pelo sincretismo: há desde santos católicos até cartas de tarô, elixires milagrosos e pedras mágicas. Se você tiver sorte, poderá topar com o Índio Amazônico que dá nome ao local – o problema é que, segundo atendentes do templo, ele passa o ano viajando por diversos países a fim de operar curas espirituais – ainda tenho cá minhas dúvidas sobre se ele existe de fato.

A la ordem
Se dizem que nós, brasileiros, somos gentis e amáveis, o povo colombiano é mais. De pessoas simples a executivos engravatados, não há exceções para a solicitude dos bogotenhos. “A la ordem” (à sua disposição) é a frase mais ouvida quando se pede uma informação ou compra-se algo. No interior de Bogotá a coisa fica ainda mais interessante. Em Cota, por exemplo, povoado a cerca de uma hora da capital, basta sair caminhando pelas ruas e ir entrando nas lojinhas de artesanato, sentando-se em bancos de praça ou comendo nos restaurantes caseiros – sempre com pratos bons e fartos a R$ 5 – para conhecer algum nativo e papear sobre qualquer assunto. Para quem gosta de sair à deriva por lugares desconhecidos, Bogotá e seus arredores oferecem um sem fim de surpresas, das mais conservadoras àquelas para os turistas de gosto ao revés.

 

*Sabrina Duran, 28 anos, é jornalista e está prestes a comprar uma bike pra continuar conhecendo cidades e pessoas, de outro ângulo. Seu blog é www.sabrinaduran.com

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