Práticas extremas provocaram mortes. Qual é o limite para esses voadores solitários?

 O Wingsuit deu asas ao homem. Mas práticas extremas provocaram mais de 20 mortes no esporte apenas este ano. Qual é o limite para esses voadores solitários? 

A paisagem é riscada por um ponto em alta velocidade. Durante o voo, asas tiram fino de um paredão rochoso e rasantes são desferidos a poucos metros das copas das árvores e do chão. O objeto voador poderia ser confundido com uma ave de rapina, mas a cena é protagonizada por outro tipo de animal, um que, a princípio, não é dotado da habilidade de voar: um homem trajando um wingsuit, nome do traje especial com asas embaixo dos braços e entre as pernas.

As primeiras versões dos wingsuits surgiram na década de 1930 e, nos anos que se seguiram, dezenas de pessoas basicamente deram suas vidas para aprimorar o equipamento (entre 1930 e 1965, 71 das 75 pessoas que usaram o traje morreram em testes). As versões mais modernas e estáveis surgiram na década de 1990, pelas mãos da lenda do paraquedismo Patrick de Gayardon, francês que levou o esporte a um novo patamar – entre suas acrobacias mais célebres está a de saltar de um avião e voltar a ele sem abrir o paraquedas. Gayardon morreu em 1998, testando, justamente, um wingsuit.

Desde então, a técnica dos praticantes e a tecnologia dos trajes levaram à criação de uma modalidade ainda mais desafiadora, o voo de proximidade (proximity flying), na qual o atleta passa a poucos metros de pontes, árvores e montanhas. Alguns poucos se arriscam em uma versão mais extrema, chamada de terrain flying, ao ficarem a centímetros do chão. A margem que separa os atletas de um acidente fatal é tão pequena que é difícil para uma pessoa comum não taxá-los de “malucos viciados em adrenalina”.

Fernando Gonçalves, 34 anos, é um dos mais experientes pilotos brasileiros de wingsuit e dos poucos a se arriscar nas vertentes mais extremas. “Me incomoda um pouco ser taxado de louco. Existe uma ciência por trás desses voos”, diz ele. “Além do mais, treino todo dia. Fazemos todos os estudos, os cálculos, a leitura da montanha, do tempo, do clima e dos ventos. Eu dedico minha vida inteira a isso.”

Entretanto, mesmo com toda a técnica e dedicação, o esporte continua a fazer um número aterrorizante de vítimas. Apenas em 2013 foram mais de 20 mortes – cinco delas em um período de apenas sete dias do mês de agosto. A que ganhou repercussão mundial foi a do paraquedista britânico Mark Sutton, que ficou famoso ao servir de dublê para o ator Daniel Craig, o atual 007, na abertura dos Jogos Olímpicos de Londres. Entre os brasileiros, o alpinista e base jumper Fernando Motta sofreu um acidente fatal em Utah, nos Estados Unidos, ao tentar um voo de aproximação.

Se voar muito próximo ao Sol foi o que condenou Ícaro na mitologia grega, para Nicola Martinez, parceiro de Fernando Motta em diversas escaladas e saltos, o ímpeto de voar cada vez mais rente às paredes e, especialmente, ao chão é a principal causa dessas mortes: “O terrain flying é o culpado por quase todas as mortes que aconteceram este ano no wingsuit. Está na hora de a gente dar um passo pra trás e reavaliar os limites desse esporte”.

O próprio Nicola tomou essa distância há alguns anos, depois do acidente que vitimou sua mulher, Allisyn. “Ela teve um impacto contra a parede com o paraquedas já aberto. Foi um momento muito difícil da minha vida, que me fez repensar meus valores. Eu levo o wingsuit como um hobby, uma filosofia de vida. É para viajar, conhecer novas culturas, fazer amigos, mas o perigo compensa até certo ponto. Eu quero sempre aterrissar de forma segura e, no fim, tomar uma cerveja e dar risadas com a turma assistindo aos vídeos”, diz.

O registro em vídeo, aliás, é outro ponto levantado por Nicola como uma possível causa para o elevado número de acidentes recentes. “Essa geração YouTube tá puxando o limite de forma inconsequente, saltando sem experiência e sem ter o completo controle dos trajes. Os praticantes estão queimando etapas importantes”, afirma. Fernando concorda: “Os vídeos que a gente posta são irados, né? Colando nas paredes, dando rasantes perto das árvores. Vendo no vídeo parece fácil, mas e as dezenas de voos que foram abortados? Esses ninguém vê”.

Se as estatísticas parecem tão desfavoráveis, por que as pes­soas continuam se arriscando? “É um silêncio, uma concentração e uma conexão com a natureza inacreditáveis”, conta Fernando. “Passar próximo de uma árvore, de uma pedra ou do chão te dá uma referência de velocidade, de plano... É difícil de explicar. É o homem voando.” Ainda que exista a pressão de patrocinadores, o narcisismo digital e a vontade de chegar cada vez mais próximo dos obstáculos, entre outros fatores que levam atletas a desrespeitarem os próprios limites, os dois fazem coro: “É uma atividade que não dá margem para erros”.

Mesmo com toda a técnica dos praticantes, em 2013 foram mais de 20 mortes


SEM LIMITES - Sabia (acima) foi o primeiro brasileiro a usar um traje de Wingsuit. Para ele, ninguém está forçando a barra - os atletas estão apenas se aprimorando no esporte

“Pessoas arriscam suas vidas por vários motivos, não necessariamente para atingir um novo patamar no esporte, por exemplo. Saltei de wingsuit de milhares de lugares diferentes e, depois de 14 anos de prática, continuo na ativa, voando sempre que possível. Como tudo na vida, existem atletas bons, excelentes e medianos, além de vários ‘pregos’ com dinheiro e sem categoria, vocação ou domínio. Assim como os equipamentos, os atletas estão evoluindo. Agora, acidentes acontecem: calouros morrem porque não sabem onde estão e bons pilotos morrem porque abusam.”


PERTO DEMAIS - Luís Roberto Formiga (acima) já experimentou todo tipo de salto que se possa imaginar. Aqui, ele dá sua opinião sobre o proximity flying

“Eu participei da história do wingsuit desde o começo, acho até que a primeira roupa feita no Brasil foi minha. A ideia sempre foi permanecer mais tempo no ar e poder voar que nem um pássaro. Naquela época, a gente nem pensava em algo como o proximity flying. É claro que pra quem vê de fora parece loucura, mas o desenvolvimento das roupas e dos procedimentos permite que o cara faça um voo completamente radical e relativamente seguro – não é uma atividade suicida, mas um esporte de alta performance. O problema é que as roupas ficaram muito acessíveis, o que pode ser perigoso demais. O limite entre morrer e sobreviver a um voo de proximity é muito tênue. Graças a essa facilidade, tem muita gente negligente, sem conhecimento e preparação necessária se jogando e se matando. Do outro lado, tem um pessoal experiente, com toda a capacidade e conhecimento, que está obcecado pelo aumento da performance, em passar mais perto e mais rápido dos obstáculos pelo prazer de desafiar os limites. É aí que acontece um acidente.”


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