Como contar uma vida inteira com o surf?

por Marcos Candido

O jornalista William Finnegan fala sobre como o surf se tornou uma lente para analisar suas obsessões, frustrações e inspirações

O jornalista William Finnegan é conhecido pelas reportagens em que narra conflitos armados na Somália, desmembra a violência do crime organizado no México e mostra os horrores de guerras civis travadas no Sudão. Nos últimos meses, porém, ele entrou na lista de autores mais lidos nos Estados Unidos com um tema pouco abordado em seus textos jornalísticos: surf.

Em Dias bárbaros (ed. Intrínseca), o repórter da revista New Yorker usa a vida no oceano para recontar a adolescência no Havaí da década de 60, onde conheceu amores, frustrações, participou de gangues violentas de surfistas localistas e foi batendo cabeça até criar uma identidade paralela. “Tenho uma vida pública, como jornalista, na qual tento ser um cidadão de bem, no sentido mais antigo da palavra; e esta outra personalidade, totalmente improdutiva, irresponsável, na qual sem justificativa vivo no oceano caçando ondas", conta William. “Tentei desvendar esta última parte." 

 Dias bárbaros foi premiado com um Pulitzer na categoria Biografia – a premiação é a mais importante do mundo em literatura de não-ficção – e chegou ao Brasil no final de junho. Não à toa, o jornalista é um dos principais convidados da Flip, a Festa Literária de Paraty, entre os dias 26 e 30 de julho.

À Trip, William fala sobre como o surf se tornou uma lente para analisar suas obsessões, frustrações e inspirações para viver em intensidade com o presente e o passado. 

Por que o surf foi a principal maneira que você encontrou para contar sua história e não todas as guerras e lugares que você já foi como repórter? Escrevi muito sobre guerra, pobreza, racismo, crime organizado e outros desastres humanitários em livros e principalmente para a New Yorker, revista onde trabalho. Continuo a reportar todos esses assuntos, mas só em Dias bárbaros resolvi dar uma pausa em escrever sobre o problema dos outros e me aprofundar na minha própria história. Relembrei meu passado e tentei compreender a minha família, as minhas amizades, e transformar todas as coisas que aconteceram na minha vida em uma narrativa. Eu surfei durante tanto tempo e perdi tanto tempo indo atrás de ondas que o surf se tornou uma tema óbvio para escrever. Não queria só mostrar o meu trabalho, num lance “bastidor de reportagem", que é muito feito por jornalistas, mas, sim, falar sobre minhas obsessões. Minha vida parece uma jornada dupla. Tenho uma vida pública, como jornalista, na qual tento ser um cidadão de bem, no sentido mais antigo da palavra; e esta outra personalidade, totalmente improdutiva, irresponsável, na qual sem justificativa vivo no oceano caçando ondas. Tentei desvendar esta última parte. É uma vida de “barbárie" que, de várias maneiras, se afasta da sociedade, embora cave espaço em nosso valores e em nosso tempo. São valores que se conectam com a minha vida pessoal, e era a hora de explicar ao menos essa parte. Acabou que o surf foi uma ótima lente para enxergar cada camada da minha vida – algo que é novo e inesperado para muitos leitores que não sabem nada sobre surf e, para meus amigos surfistas, serviu como uma celebração à maneira estranha na qual escolhemos viver.

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 E você se arrependeu de algo que tenha feito ao retornar para as amizades e acontecimentos do passado? Sim. Meu egoísmo, minha insensibilidade, teimosia e egocentrismo durante a juventude. Uma jornalista em Barcelona leu meu livro e disse que a história soava como a de um namorado babaca. Fui com muita determinação atrás de meus objetivos – escrever e, principalmente, surfar ondas grandes, visitar países distantes – e muitas vezes não considerei que meus colegas, inclusive namoradas, tinham objetivos diferentes na vida. Também fiquei chocado ao relembrar alguma das coisas que fiz para financiar minhas viagens na juventude - pequenos crimes, basicamente.

“Fiquei chocado ao relembrar alguma das coisas que fiz para financiar minhas viagens na juventude – pequenos crimes, basicamente”
William Finnegan

Fiquei totalmente arrependido ao relembrar de quando participei de gangues violentas no ensino médio, lá no Havaí. Também tem aqueles arrependimentos mais gerais, como quando notamos como não fomos capazes de experimentar completamente do amor e das características únicas da vida de cada pessoa. Mas agora também é tarde demais. Meus pais, por exemplo, se foram há alguns anos. Eu daria tudo para ter um pouquinho mais de tempo com eles.

No livro me parece que você tem um pouco de frustração em relação à indústria do surf nas últimas décadas. Esse sentimento é verdadeiro? Por quê? Sim, é isso mesmo. Eu não curto ver imagens de surf rolando em praticamente todos os comerciais, ajudando na venda de caminhões a seguros de vida. Para muita gente, essas imagens são só bonitas, mas para alguém que devotou muitos anos ao surf, cada imagem do oceano tem um significado especial. Tipo o retrato de uma onda na Indonésia, onde surfei quando era criança, que tomou meses e muita dificuldade para encontrá-la e cujo encontro se tornou o ápice de uma jornada, como num ato de redenção da natureza. Então não é prazeroso ver aquela onda – que ainda posso sentir como um fenômeno privado, que parece ter uma alma própria – sendo usada por corporações como ferramenta de marketing na busca por consumidores. Indo mais direto ao ponto, eu odeio todo o marketing em torno do surf. Propagandas de surf, escolas de surf, os esforços para colocar o surf nas Olimpíadas – essas coisas são todas encabeçadas pelo que chamo de indústria do surf. E essa indústria tem seu próprio interesse em “popularizar" o esporte. Mesmo assim, tenho plena convicção de que os surfistas, em si, preferem que o esporte fique menor. Surfar já é popular demais. Muitos picos legais estão lotados. Eu iria amar ver que o surf deixou de ser cool, igual aconteceu com a patinação. Gostaria de ver menos pessoas começando a surfar. A longo prazo, não faz bem para a saúde e para os olhos. A água do oceano também faz muito mal para os ouvidos (eu já tive que fazer três cirurgia nos ouvidos). Talvez eu esteja sendo hipócrita, mesmo. Se surf fosse menos cool, teria menos gente lendo meu livro.

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Créditos

Imagem principal: Divulgação / Ocean Beach Jan 1985

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