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Um intelectual pelos ares

por Guilherme Werneck
Trip #176

Trip acompanha o cineasta Jean-Claude Bernardet, de 72 anos, numa viagem em queda livre

Jean-Claude Bernardet voa com o instrutor Tavinho

 

 

“Agora eu fico assim até a noite, a adrenalina é uma droga muito poderosa.” Passa pouco das duas da tarde de domingo. Jean-Claude Bernardet, 72 anos, acabou de tirar o macacão que vestia sobre as calças jeans e a camisa branca de linho. Segura uma garrafa d’água na mão. Bebe devagar e não para de sorrir. Para quem vive de palavras, elas não são suficientes para descrever a sensação. Há um amortecimento, uma excitação, um sentimento de que o mundo não traz estímulos suficientes para sair do transe. O que vale é a vertigem, o vento, o homoerotismo do corpo do instrutor colado ao seu em queda livre – menos de 1 min até o paraquedas abrir para uma descida suave de mais ou menos 7 min. São 12 mil pés na descendente, uma aventura sensorial que tem sentido especial para um homem que dedicou a vida ao cinema, que sempre viu e leu de maneira muito particular, e agora está quase cego.
Estamos em Boituva, no interior de São Paulo, a cerca de 100 km da capital. É o maior centro de paraquedismo do Brasil. Na realidade, uma pista de pouso com um descampado em volta, dividida por algumas escolas do esporte, que rateiam o custo dos voos de três aviões. Como num parque de diversões para adultos, há uma sucessão ininterrupta de joy rides que deixam o céu colorido. Com uma aula rápida, qualquer um está habilitado a se jogar preso ao corpo de um instrutor. A todo momento, há corpos caindo do céu. Dos inexperientes que se estabacam de bunda no chão (esse é o jeito mais seguro de aterrissar) aos profissionais, que chegam correndo, estilosos, desafiando o vento com suas curvas fechadas.
Quando chega o anúncio do voo de Jean-Claude, este repórter fica em terra, no pátio da escola Paraquedismo Boituva, tentando adivinhar quais daqueles pontos no céu é o objeto de sua matéria, rezando para voltar à Redação da Trip com um bom perfil na cabeça, não um obituário. Mas os instrutores atestam: paraquedismo é seguro; o voo duplo, mais ainda. Não há com o que se preocupar. OK.
Jean-Claude toca o chão com elegância, de pé. É a sua primeira aterrissagem assim. Nada mau para um terceiro salto, todos realizados há menos de um ano como o mesmo instrutor, Otávio de Camargo, o Tavinho, 20 anos de paraquedismo nas costas. A primeira vez foi uma surpresa. Foi levado a Boituva por uma amiga, com quem sempre faz viagens de fim de semana sem destino preestabelecido.
Essa experiência tem a ver com seu estado físico hoje. Depois de passar da fase de inconformismo com a gradativa e inexorável perda da visão, decorrente de um ressecamento da membrana que envolve o olho, num processo iniciado há mais de quatro anos, Jean-Claude começou a explorar o corpo de forma mais sensorial. As melhores experiências, além da queda livre, vieram de descer um rio boiando, semissubmerso, em Bonito, no Mato Grosso do Sul.
Porém, deixar essas aventuras apenas na conta do sensorial é um tanto reducionista. Há também outras chamas, como a perda absoluta do pensamento racional e uma busca por algo verdadeiro em si, sem explicações nem adjetivos supérfluos. Pela tangente, se aproxima de seu personagem em FilmeFobia, de Kiko Goifman, que estreia em 1º de maio. Nele, Jean-Claude interpreta um diretor de documentário que está ficando cego e busca a única imagem verdadeira: a do fóbico diante de sua fobia. O protagonista do filme se embaralha com sua pessoa pública, de cineasta, roteirista e acadêmico, da mesma forma que todo o filme joga todo tempo com o binômio realidade e ficção, colocando lado a lado fóbicos e atores, personagens reais ficcionalizados, sem deixar claro o que é verdadeiro e o que é falso. Essa é, inclusive, a maior preocupação de Jean-Claude hoje, a autoficção, a realidade submetida ao sujeito.
Não é tarefa simples definir o conceito de autoficção, vem de um desejo de capturar a realidade de uma forma que não tenha sido reduzida a fórmulas, à mera técnica. Remonta a uma tradição iniciada nos romancistas ingleses do século 18 que pavimentaram o caminho do realismo literário, passa pelo naturalismo francês, para chegar à recente onda documentarista. “A questão é que essas linguagens, que são revolucionárias em sua origem, chegam a um ponto em que se reduzem à técnica, ao domínio do fazer, e perdem o que têm de verdadeiro”, reduzo da conversa que temos no carro, durante a volta de Boituva. Ao embaralhar ficção e realidade, de modo subjetivo, perde-se a fórmula e ganha-se em verdade. É assim que vê, por exemplo, os últimos filmes brasileiros de que mais gosta: FilmeFobia e o documentário Jogo de cena, de Eduardo Coutinho, que classifica de “filosofia pura no cinema”. É também assim que um pensador que não é afeito a romances lê a obra do autor que mais o encanta em literatura, o chileno Roberto Bolaño, com sua mistura de fatos e personagens reais dentro de uma narrativa ficcional. É também por isso que assina o pay-per-view do Big Brother Brasil, a expressão mais popular e difundida de autoficção.
Em certa medida, esse perfil também é uma obra de autoficção, feita que foi a partir de uma ida e vinda a Boituva, gravador desligado. “O que ficar na memória é o que vale. Toda transcrição é mesmo uma redução, uma farsa.” Certo.
Seria fácil apresentar Jean-Claude Bernardet pelas suas qualificações profissionais, pela militância comunista histórica que o fez integrar o grupo dos professores da USP cassados depois do AI-5, a mesma turma à qual pertencia Fernando Henrique Cardoso. “Uma burrice do governo militar que transformou um professor inexpressivo numa celebridade nos anos 70.” Ou como o roteirista de Céu de estrelas, um dos roteiros mais celebrados da dita retomada do cinema nacional. Ou ainda como o símbolo do sobrevivente, do Malazartes moderno que driblou a Aids que carrega há mais de 20 anos, numa época em que ser portador da síndrome era uma sentença de morte. “E quase morri mesmo, tive uma meningite. Fumava um cigarro atrás do outro no hospital, ninguém falava nada. Era quase como permitir o último desejo dos condenados.” Mas isso não se aproxima da realidade dessa conversa interessada entre jornalista e perfilado, desse jogo duplo de sedução. Não posso dizer que depois de uma manhã fiquei sabendo quem é Jean-Claude Bernardet. De realidade, basta a queda.

 

Agradecimentos Tavinho / Paraquedismo Boituva www.paraquedismoboituva.com.br

 

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