Viajar para entender

por Gisele Teixeira

Espaços de memória em São Paulo, Buenos Aires, Lima, Santiago e Montevidéu ajudam a iluminar a história recente da América Latina

Entre 1976 e 1983, a Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), em Buenos Aires, foi o maior centro de detenção e tortura da última ditadura militar argentina. Por lá passaram cerca de 5 mil pessoas. Apenas 200 sobreviveram. Muitas morreram nos chamados Voos da Morte, jogadas ainda conscientes no Rio da Prata. Hoje, no mesmo lugar funciona o Espaço Memória e Direitos Humanos, visitado por 430 mil pessoas em 2015 e sede de mais 800 eventos culturais no ano passado.

A ex-ESMA faz parte de uma lista de lugares considerados “reservatórios” de memória, que entraram de vez nos roteiros de viagem dos turistas que buscam voltar para casa com algo mais que um souvenir: saber o que aconteceu.

“O turismo de memória é uma tendência mundial forte, uma vertente que se encarrega de transformar memórias históricas coletivas ou individuais em patrimônio cultural”, diz o espanhol Rafael Mesa, coordenador do MBA de Turismo da IMF Business School de Madri.

Em geral, são lugares de horror humano, escolhidos para conhecer e render homenagem às vítimas. Entre os mais conhecidos estão a Porta do Não Retorno, memorial dedicado ao comércio atlântico de escravos, na ilha de Gorée, no Senegal; os campos de extermínio em Auschwitz, na Polônia ou o Museu do Genocídio, em Phnom Penh, capital do Camboja.

Além de vestígios arquitetônicos de um evento traumático, estes também são lugares de discurso, de debate público, de escuta, de educação sobre a história.

“São espaços importantes para a consolidação do que chamamos de ‘Nunca Mais’. Nunca mais a perda do Estado de direto e, principalmente, nunca mais o silêncio em relação a isso”, diz Amy Rice Cabrera, representante do Diretório de Organismos de Direitos Humanos no Espaço Memória.

Ela destaca que apesar dos avanços nos últimos anos – como a condenação recente dos responsáveis pelo Plano Condor, é preciso seguir avançando. “Porque ainda necessitamos a verdade sobre o que fizeram com os desaparecidos, porque ainda há netos apropriados que estão sendo buscado, e porque ainda faltam responsáveis que devem render contas ante à Justiça”.

ARGENTINA

A Argentina tem 36 lugares identificados como “sítios de memória”, ligados de alguma maneira à última ditadura cívico-militar. A maioria são ex-centros clandestinos de detenção, transformados em espaços de cultura. Em Buenos Aires, os pioneiros foram a ex-Escola de Mecânica da Armada (ESMA), hoje Espaço Memória, e o Parque de la Memoria.

Ex-Esma - Espacio Memoria y Derechos Humanos

É um lugar enorme, mas sugiro que todos façam a visita guiada ao “Cassino de Oficiais”, onde era o centro de tortura. O prédio tem três andares e um porão. O porão era a primeira passagem dos sequestrados, onde eram interrogados e torturados. Depois, as vítimas eram levadas para o terceiro andar, onde ficavam algemadas e encapuzadas, as vezes amarradas a bolas de 25 kg. O local ganhou o nome de “capucha”, capuz em espanhol. Pequenas baias formavam cubículos que separavam cada preso. Neste andar também ficava a maternidade - calcula-se que cerca de 500 recém-nascidos tenham sido roubados dos braços das mães, na Esma e de outros locais de tortura. A organização Avós da Praça de Maio, que luta para encontrar os netos perdidos, já conseguiu identificar mais de 100. Da capucha, o destino dos sequestrados era a “capuchita”, de onde saíam para os voos da morte, sempre às terças-feiras. Os escolhidos eram atirados, ainda com vida, sobre o Rio da Prata, de uma altura de 2 mil metros. Estima-se que 2.500 prisioneiros da Esma tenham sido mortos desta forma.
Vai lá: espaciomemoria.ar e facebook.com/espaciomemoria 

Parque de la Memoria

Inaugurado em 2007, o Parque de la Memória é um espaço de 14 hectares, na Costanera Norte, à beira do Rio da Prata, onde muitos corpos foram jogados durante a ditadura. Logo que a gente chega, impressiona um muro gigante com milhares de placas com os nomes de pessoas desaparecidas, reunidas pelo ano em que foram sequestradas e em ordem alfabética. Algumas trazem a idade que tinham na época e, no caso das mulheres, se estavam grávidas ou não. Esta lista se complementa com um arquivo digital, com fotos, desenhos e objetos pessoais de cada um deles. Há ainda um espaço de arte, chamado Sala Pays (Presentes, Ahora y Siempre), com exposições temporárias e conferências, além de um Centro de Informação, uma biblioteca, um arquivo de imprensa e oficinas educativas. O parque conta ainda com diversas esculturas. Uma das mais impactantes é Reconstrucción del Retrato de Pablo Míguez, de Claudia Fontes, homenagem a um dos mais jovens desaparecidos, aos 14 anos. A estátua, em tamanho real, se mantém em pé sobre as águas do Rio da Prata, a 70 metros da costa.
Vai lá: parquedelamemoria.org.ar e facebook.com/ParquedelaMemoria 

Lima - LUM, Lugar da Memória, Tolerância e Inclusão Social

Cerca de 70 mil pessoas morreram no Peru durante os anos de violência no país, entre 1980 e 2000, quando os grupos terroristas Sendero Luminoso e Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA) se enfrentaram com o estado peruano. Os números são da Comissão da Verdade e Reconciliação e representam o dobro de mortes registradas na Argentina na época última da ditadura militar. Muita gente. Esta história está contada de uma maneira interessante no LUM, um lugar que vale a visita também por seu projeto arquitetônico, espetacular, encravado numa pedra gigante, em frente ao mar. A mostra permanente se divide em três eixos temáticos, um por andar. Começa com as raízes universitárias do Sendero Luminoso, e como o movimento foi se transformando, segue com a forma com que o Estado lutou contra o terrorismo (quase sempre com mais violência) e termina com a organização da sociedade civil. Por fim, o LUM tem um enorme Centro de Documentação, com centenas de arquivos, áudios e fotos.
Vai lá: 
lum.cultura.pe facebook.com/LUMoficial

Chile – Museu da Memória e Direitos Humanos

Este é um dos lugares mais impressionantes dentre os museus de memória, por muitos motivos. Primeiro pelo tamanho e diversidade do acervo - mais de 140 mil documentos, 39 mil fotos, além de centenas de depoimentos em vídeo e objetos dos desaparecidos durante a ditadura militar chilena, entre 1973 e 1990. Mas também porque é totalmente interativo. É possível pesquisar desde as sentenças judiciais até cada um dos lugares de detenção ou cada uma das vítimas desaparecidas. Inaugurado em 2010, tem 5 mil m2 de área, com uma exposição permanente e várias temporárias. A ditadura chilena foi uma das mais terríveis da América Latina. Está tudo contato com arquivos de diferentes formatos, do golpe de Estado à repressão dos anos posteriores, a resistência, o exílio, a solidariedade internacional e a defesa dos direitos humanos. Impossível não se emocionar.
Vai lá: 
museodelamemoria.cl

Uruguai – Centro Cultural e Museu Memória

Criado em 2006, fica numa casona de 1878 no bairro do Prado, em Montevidéu, a uns 30 minutos do Centro. Tem uma exposição permanente com objetos, fotografia e documentos organizado em sete salas que são a espinha vertebral de todo o processo: instauração da ditadura, resistência popular, as prisões, o exílio, os desaparecidos, a recuperação democrática e as histórias “não concluídas”. Não deixe de conhecer o jardim, que segue o conceito os paisagistas do renascimento italiano, com fontes, esculturas, grutas e mais de 80 espécies exóticas.
Vai lá: 
mume.montevideo.gub.uy e facebook.com/centroculturalmuseodelamemoria

São Paulo – Memorial da Resistência

Fica na Pinacoteca do Estado, onde funcionou (de 1940 a 1983) o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – Deops/SP, uma das polícias políticas mais truculentas do país, principalmente durante o regime militar. Inaugurado em 2009, o espaço foi elaborado por museólogos e historiadores e traz muita informação interessante sobre esta época: o edifício e suas memórias, como funcionava a repressão (há uma maquete do espaço carcerário, construída a partir da memória de ex-presos políticos que estiveram no local), como era o cotidiano nas celas e testemunhos de quem viveu este período obscuro da história brasileira.
Vai lá: 
memorialdaresistenciasp.org.br e facebook.com/memorialdaresistenciasp

Créditos

Imagem principal: Matías Poblete Aravena

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