O menino e a música

por Camila Hessel

Conheça Binho Feffer, o homem que cocriou os arranjos sonoros da animação brasileira indicada ao Oscar ”O menino e mundo”, que tem na trilha um de seus protagonistas

Caçula de quatro irmãos, Ruben Feffer, hoje com 45 anos, sempre foi um garoto tímido, que pouco falava e muito observava. Desde muito pequeno, encontrou sua forma preferida de expressão na música. Quando menino, divertia os familiares ao tocar piano e bateria ao mesmo tempo. Foi no colo do pai, Max Feffer, que teve as primeiras lições, depois complementadas por mestres como Maria Manoela Pagano e Júlio César Figueiredo. E era dedilhando teclas que Binho (como é chamado até hoje pelos amigos e colegas de trabalho) se relacionava com ele e com o avô, Leon, acompanhando-os em sessões musicais registradas em belos retratos de família. Embora tenha começado a compor muito cedo - aos três anos de idade já era autor de composições -, só enveredou pela carreira musical aos 28.

O trabalho de composição de trilhas (para teatro e eventos corporativos) começou nos fundos de casa, enquanto ainda ocupava um cargo executivo na Suzano. Binho conta que trabalhava nesses projetos de madrugada e nos fins de semana quando se deu conta que fazer da música uma carreira era, no fundo, uma questão de inverter prioridades. "Isso não é mais um hobby, dá perfeitamente para ser a minha vida", lembra ele. Parte da confiança necessária para deixar a empresa da família e começar a construir a sua veio da certeza de que esse processo não precisava ser sinônimo de uma completa ruptura."Era preciso zelar pela companhia de alguma maneira, acompanhar quem toca o dia a dia", diz Binho. "O fundamental é que aprendi a não atrapalhar." 

“Era preciso zelar pela companhia de alguma maneira, acompanhar quem toca o dia a dia. O fundamental é que aprendi a não atrapalhar.”
Binho Feffer

Em 1998, ele deixou a Suzano e passou a se dedicar integralmente à música. Curiosamente, fez o caminho inverso do pai que, logo depois da II Guerra Mundial foi estudar na prestigiada Juilliard School, em Nova York - que abandonou para assumir a empresa da família, retornando ao Brasil aos 20 anos. Binho tocou teclado em bandas como Luni (que tinha Marisa Orth no vocal) e, em 2001, criou formalmente a Ultrassom Music Ideas.

Foi nesse processo que conheceu Gustavo Kurlat, que viria a se tornar seu grande parceiro criativo. Kurlat conta que, há pouco mais de 20 anos, foi apresentado a Binho por uma aluna da escola de teatro Célia Helena. Ele tinha de resolver muito rapidamente a gravação da trilha de uma peça. "O Binho fez o que eu precisava numa velocidade absurda, com eficiência. Tudo o que eu pensava era: quero mais!", diverte-se Kurlat. Em 1999, eles se reencontraram para a gravação de uma rádio-novela e, desde então, engatam um projeto atrás do outro.

Juntos, Kurlat e Binho ganharam uma série de prêmios, tanto por composições para o teatro - como o Prêmio Shell por Pequeno Sonho em Vermelho (2003) - quanto para o cinema - entre eles o do Festival Internacional de Pernambuco para a trilha do primeiro longa de Alê Abreu O Garoto Cósmico (2008). O sucesso da dupla de compositores com o diretor de animações viria a se repetir com O Menino e o Mundo, que concorre ao Oscar 2016 de animação com gigantes como Divertida Mente (da Disney-Pixar) e Anomalisa (dirigido por Charlie Kaufman, de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças).

O filme conta a história do menino Oninem, que mora com a família no campo, mas vai para a cidade em uma carroça em busca do pai, que embarcou em um trem e desapareceu. Lá, ele enfrenta as maravilhas e o progresso assustador das metrópoles cheias de fumaça. A animação, que quase não tem diálogos, tem um rap do Emicida e participações de Naná Vasconcelos na trilha, além de um cuidadoso arranjo cheio de "barulhinhos e sutilezas", explica Binho.

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Binho e Kurlat caracterizam O Menino e o Mundo como "um projeto único", de envolvimento profundo. Foram dois anos de trabalho. Quando começaram, o roteiro ainda não estava fechado, e eles puderam construir o percurso em conjunto. Kurlat conta que além da música e da supervisão de som, eles colaboraram com elementos fundamentais, como a escolha do uso das palavras em português ditas de trás para a frente como "língua oficial" do filme. "É coisa que se faz uma vez na vida", afirma Binho. "Algumas músicas foram compostas no ritmo da cena pronta; algumas cenas tiveram a animação ditada pela trilha e alguns trechos dela foram refeitos umas vinte vezes, até que encontrássemos o tom exato."

Esse modo de criar a portas abertas é uma marca de seu trabalho - e o elemento de seu sucesso. Logo que faz um rascunho,  ele gosta de chamar o diretor ao estúdio e, a partir dali, construir em conjunto. "Embora tenha uma visão sobre os caminhos que cada trilha deve seguir, meu trabalho não é de convencimento, mas sim de experimentação", afirma. "Não gosto de monocultura."

Binho gosta de incluir toques de pop até mesmo em trabalhos mais eruditos. Musicalmente, seus ídolos são Hans Zimmer - compositor alemão responsável pelas trilhas de filmes como Rain Man, Conduzindo Miss Daisy e O Rei Leão - e Alexandre Desplat, autor da trilha de Grande Hotel Budapest. Para garantir evolução constante, ele usa plataformas como o Spotify para descobrir coisas novas e que gosta de ouvir suas próprias composições em aparelhos de som variados e em contextos diferentes, para perceber o impacto de detalhes.

Kurlat também acredita que essa abertura (que ele chama de "desapego") é o que torna os trabalhos realizados com Binho tão especiais: "Juntos nos permitimos fazer aquilo que não dominamos porque nos damos retaguarda com saberes complementares. E temos uma tolerância em relação aos nossos pontos fracos que é fundamental: atrasamos uma hora e meia para um encontro e, em vez de ficar resmungando, damos risada."

“Prometi a mim mesmo que nunca deixaria a criança interior morrer. Acho que esse é o segredo.”
Binho Feffer

O bom uso desses "saberes complementares" também está no centro de outra parceria fundamental na vida de Binho, a com a mulher - e sócia - Flávia Feffer. Eles trabalham juntos na Ultrassom desde 2008. Enquanto ele se dedica à criação, ela toca as questões comerciais. Muitas vezes, passamos o dia todo no mesmo endereço e sequer nos vemos", diz Flávia, com quem Binho tem um filho de um ano, o pequeno Rodrigo, que parece ter herdado a habilidade do pai para a música. Orgulhoso (e reconhecendo que há boa dose de corujice na afirmação), Binho diz que o bebê toca tambor sem jamais perder o ritmo e que já acompanha o pai com seu mini acordeón. Os filhos de seu primeiro casamento, Natan, de 15 anos, e Max, de 13, também curtem música - o primeiro toca guitarra e o segundo, baixo. Esse contato com os meninos o ajuda a se manter conectado com o fascínio pela exploração, fundamental ao trabalho de composição. "Prometi a mim mesmo que nunca deixaria a criança interior morrer. Acho que esse é o segredo."

Hoje, sua empresa faz trilhas para longa metragens (Quebrando o Tabu, A Viagem de Yoani, Angie), músicas originais para animações de sucesso (como a sensacional Irmão do Jorel, produção brasileira que é campeã de audiência do Cartoon Network) e toca a distribuição de filmes para a TV e meios digitais. É dele a autoria da trilha do Trip Transformadores, composta em 2014 especialmente para o projeto. Empolgado com a grande exposição trazida pela indicação ao Oscar (e também a três categorias do Annie, o maior prêmio da indústria de animação), Binho sonha com uma maior valorização da música e do som em geral nos trabalhos para o cinema e para a TV. "Não pode ser um detalhe pensado de última hora, um remendo", diz. "A música também conta a história. É preciso valorizar a função do compositor de trilhas, reconhecê-lo como coautor."

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