por Tatiana Azevedo
Trip #180

Miguel e Pascal, com câncer, não ficam sentados no apartamento esperando a morte chegar

Os franceses Miguel e Pascal não ficam sentados no apartamento esperando a morte chegar. com câncer e sem domicílio fixo, eles preferem passar seus dias bebendo e conversando em um barzinho de Montmartre, uma das vizinhanças mais belas do mundo

Miguel Riquer nasceu na casa da avó na Picardia, norte francês. Hoje, aos 50 anos, é um SDF, ou sans domicile fixe, como são conhecidos os sem-teto aqui na França. Nas noites mais frescas, dorme em um jardim dentro de um pequeno prédio em Montmartre, bairro de tradição boêmia de Paris. Se chove ou faz frio, dorme no ateliê de um amigo pintor, um dos muitos artistas que frequentam o mesmo bar onde Miguel passa seus dias. “Ainda bem que tenho amigos. Se preciso lavar roupa, vou na casa de um. Para tomar banho, vou na casa de outro. Conheço muita gente em Montmartre, aqui é a minha casa.”

Toda manhã, chega ao Le Rendez-Vous des Amis (algo como O Ponto de Encontro dos Amigos) para tomar um café e ler o jornal que está à disposição dos clientes. Coloca seus óculos e se reveste de um ar sério nessa sua rotina matinal. Porém, já perto da hora do almoço, pede o seu primeiro copo de cerveja. Passa o dia entre o balcão e o terraço, onde sai para fumar um cigarro e conversar com os amigos, e só sai do bar quando os garçons anunciam que vão fechar. “Em breve vou procurar um emprego. Só que, agora, eu quero cuidar de mim.” Miguel precisa operar o calcanhar, trocar o pino que pôs quando tomou um tiro anos atrás, quando era soldado. E tem um câncer no estômago. “Mas está tudo sob controle. Foi descoberto no começo. E estar sempre feliz, rodeado de amigos, ajuda a me curar.” Porém, no fim da noite, quando volta um pouco bêbado, as memórias chegam bagunçadas e ele se sente um pouco triste. “Meu médico não entende a minha recuperação, como consigo estar sempre de bom humor. Mas eu digo que não posso morrer assim. Eu preciso viver.” Para Miguel, ter um câncer é apenas um problema a mais. “Não é o fim do mundo.”

Com o estômago debilitado e com as tantas cervejas que bebe, Miguel não se alimenta direito. Está magro, de aspecto frágil. É por isso que evita encontrar o filho de 15 anos, que desconhece a sua situação. Quando Pablo nasceu, Miguel estava no exército. Mas logo largou as forças armadas e voltou a trabalhar em restaurantes, ofício que o trouxe a Paris aos 16 anos, para trabalhar como aprendiz. Em 2004, divorciou-se de sua mulher e começou a perder o interesse pelas coisas. Deixou de trabalhar e já não podia pagar o apartamento que dividia com um amigo em Montmartre. Foi assim que se mudou para o jardim.

Filho de jogador e prostituta

Apesar de o bairro estar se tornando mais caro, mais turístico e menos tolerante, é em Montmartre que Miguel quer ficar até o fim da vida. Conhece todas as ruas e tem amigos que são sua família. Dentre os “habitués” do bar onde passa os dias e bebe cerveja de graça está seu amigo de longa data Pascal Dally, 46 anos, também SDF, nascido na mesma rue Gabrielle onde se encontra o bar. Como Miguel, passa seus dias entre um copo e outro de cerveja (que não precisa pagar), a contar histórias para quem quiser ouvir.

Filho de um jogador de pôquer e de uma prostituta, Pascal não tem uma história fácil. Aos 11 anos, o pai foi preso e a mãe, assassinada. O pequeno se viu sozinho, tendo que fazer favores aos moradores do bairro em troca de algo para comer. Quando não conseguia nada, passava dias à base de água com açúcar. O menino tímido e amedrontado, com histórico grave de violência familiar, aceitou sua nova realidade. Conheceu pessoas, fez amigos e descobriu o bairro onde nasceu, que até então lhe era inédito devido ao rigor do pai.

Agora Montmartre é seu território, e o Le Rendez-Vous des Amis, seu bar. Enquanto conversávamos, sentados na calçada do outro lado da rua, copo de cerveja na mão, um casal de namorados passa para conversar. Cinco minutos depois, um motoqueiro também se aproxima para saber como ele está. E então um jovem chega e, com um aperto de mão, lhe entrega qualquer coisa, tentando ser discreto. Conversam um pouco e, depois que ele vai embora, Pascal vira e diz: “Não se preocupe, ninguém aqui é traficante. Ele é apenas um amigo que conhece a minha situação e me ajuda de tempos em tempos”. E mostra a nota de dez euros que o rapaz lhe entregou. Depois solta uma gargalhada que Montmartre inteira pode escutar. “Nunca roubei na vida. Não, mentira. A única vez que roubei, eu tinha fome e peguei um Camembert. Mas o dono da venda me flagrou!” Outra gargalhada.

África, Guerra do Golfo e Sarajevo

Você já matou alguém?”

“Essa pergunta eu não vou responder”, disse, desviando o olhar do meu. “Mas isso já diz tudo.”

Acho graça em sua sinceridade disfarçada. Ele também. Rimos. Mas logo o franzino Miguel, fica sério novamente. Não é fácil relembrar os anos em que serviu no exército. “Ainda hoje tenho pesadelos. Tanto com a minha primeira missão, em Kolwesi, na África, para onde fui com apenas dois meses de treinamento, ainda moleque, quanto com os horrores da primeira Guerra do Golfo ou de Sarajevo, o pior lugar de todos. Sonho com tudo o que fiz, com tudo o que vi.”

Especialista em bombas, em seus mais de 20 anos de exército Miguel combateu o narcotráfico escondido em florestas venezuelanas e também teve uma história de amor com uma índia de uma tribo de Manaus. As inúmeras viagens eram o que o alimentava. “Eu não posso viver longe da natureza. Nos meus anos de exército, sempre fui voluntário. Nunca suportei a ideia de ficar fechado em um escritório, cercado de pilhas de papéis, trabalhando atrás de uma mesa. É por isso que hoje eu moro em um jardim.”

“Faz quase 30 anos que não saio daqui. Montmartre não é Paris. É como se estivéssemos no interior, onde as pessoas se conhecem e se ajudam. Tem gente aqui que eu vi nascer. Tem famílias que eu conheço depois de três gerações: os avós, os pais, os filhos.”

A mulher havia se enforcado

Você tem medo da morte, Pascal?” Ele pensa. Olha para sua casa, uma barraca de camping no topo de uma escadaria, com uma bela vista de Paris. “Sim e não. Sou feliz porque tenho amigos, e é esse cuidado que me reconforta. Quando alguém que eu não vejo faz tempo me liga somente para saber se tudo vai bem, sei que não estou sozinho.”

Mas Pascal tem um segredo que não quer que Miguel saiba. Também está doente. Quando lhe pergunto o que tem, põe a língua para fora. Amarela. “Eu tenho um câncer generalizado. Nunca tomei remédio, porque acho que é isso que mata.” Então espera. Em silêncio. Tranquilamente. E diz que é feliz porque pode compartilhar com amigos momentos especiais como esta entrevista.

Quando está sozinho, Pascal lê. Desde seu primeiro livro, um romance de Henry Miller (1891-1980) de cujo título não se lembra, a literatura sempre foi seu refúgio e sua companhia. E sua história poderia virar um livro, não fosse tão dramática.

Um dia qualquer, começo da década de 90, Pascal leva sua moto à oficina. Quando chega em casa, descobre que sua mulher havia se enforcado. A polícia já estava lá, mas não tocou no corpo para ver sua reação, pois ele era então tido como suspeito. O veredicto: inocente. Vinte dias mais tarde, sua filha, de 4 anos, internada já havia algum tempo, sucumbe à leucemia. Pascal perdera tudo. Pegou sua moto e foi visitar um amigo próximo para lhe contar o ocorrido, em busca de conforto. Correndo na estrada, a mais de 200 km/h, obviamente foi parado pela polícia. Desabou. Entre lágrimas, contou sua história. A noite acabou em cerveja, com a conta paga pelos policiais, tocados por sua situação. Mais tarde, encontrou o amigo, também doente. Deu-lhe a notícia, e ele também se foi. “Às vezes eu penso que ele só esperava a minha chegada para morrer.” “Pelo menos você estava ao lado dele.” “Sim, ele morreu segurando a minha mão.”

As vidas de Miguel e Pascal estão intimamente ligadas. À rua. A um passado difícil. À cerveja. A Montmartre. À morte. Porém, no olhar desses dois, está a sabedoria de quem sobreviveu a muitas rasteiras, de quem assistiu a muitas tragédias. Miguel tem câncer. Pascal tem câncer. Mas os dois não podiam estar mais vivos.

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