por Jamie Brisick
Trip #184

O surfista australiano Peter Drouyn virou uma mulher elegante aos 60 e nunca foi tão feliz

O australiano Peter Drouyn foi um dois mais importantes nomes do surf mundial por duas décadas. Agora, às vésperas de completar 60 anos, ressurgiu após longo sumiço. Virou Westerly Windina, senhora elegante e atrevida. E nunca foi tão feliz

Não conhecia Peter Drouyn, mas certamente tinha ouvido falar dele. Peter foi o campeão australiano de surf em 1970, inventou o formato de competição em baterias homem a homem, foi o primeiro surfista profissional a posar nu em uma revista e também o primeiro a aparecer em uma propaganda com a cueca lambuzada de ketchup, enquanto desafiava Mark Richards, quatro vezes campeão mundial. Ao longo dos anos 70 e 80, Peter foi um dos maiores visionários do esporte, mas, por uma série de razões interessantes, desapareceu da cena. E, então, em setembro de 2008, ressurgiu, em um programa popular da TV australiana, vestido de minissaia, salto alto e peruca loira. Anunciou que estava vivendo como uma mulher e que sempre acreditara ser uma mulher presa em um corpo de homem. “Meu novo nome”, disse em um suspiro, “é Westerly Windina”.

A história foi uma explosão. Espalhou-se por toda a Austrália e depois para Europa e Estados Unidos. Surfistas conservadores acharam a atitude ofensiva. Velhos fãs de Peter Drouyn se sentiram traídos. Pessoalmente, achei fascinante. Como é nascer no corpo errado? Como Westerly emergiu exatamente? Ela é feliz? Foi operada? O que acham os amigos e a família de Peter? E, talvez mais importante, se ela agora é Westerly Windina, o que aconteceu a Peter Drouyn?

Nascido em 1950 e crescido na Gold Coast­ australiana, Peter foi uma criança sensível e sonhadora. Amava filmes de caubóis e índios e costumava ir para um canto isolado de seu jardim reencenar algumas sequências. Mas, em vez de interpretar o caubói, colocava batom e minissaia e representava a jovem índia. Adorava flores e “fingia depilar” as pernas. Antes que nascesse, o médico garantiu a sua mãe que ela estava grávida de uma garota.

Peter surfou sua primeira onda aos 11 anos e participou do primeiro campeonato aos 15. Pouco depois, em 1965, ganhou o Queensland Titles, que lhe rendeu um convite e passagem de ida e volta a Sydney para surfar no famoso Australian National Titles. Na noite antes do evento, participou de um banquete para os competidores no Manly Hotel. A certa hora, um trio de surfistas hostis passou a provocá-lo, dizendo que ele não tinha chance nas competitivas divisões júnior. Depois do banquete, Peter andou até a beira da praia para checar as ondas. De repente, os três surfistas pularam em cima dele. Dois seguravam seus braços, enquanto o terceiro socava seu rosto. Foi levado até o hospital, onde recebeu 12 pontos na cabeça e quatro nos lábios. Os médicos imploraram para que ele ficasse longe da água. Mas ele não seguiu o conselho e venceu a primeira bateria na manhã seguinte – e todas as outras depois. Na final, surfou de forma impressionante, à frente do seu tempo. De pé no pódio em frente aos aplausos da multidão e aos flashes dos fotógrafos, com seu troféu erguido bem alto, o rosto coberto de faixas, o adolescente Peter sentiu-se um campeão de boxe, um Cassius Clay.

“No momento em que comecei a acreditar que era uma garota, meu corpo começou a se transformar. Fui de um gorila quadrado para uma mulher delgada”

Pênis-sanguessuga
Estou sentado em frente à senhorita Westerly Windina, em um restaurante italiano de Queensland, Austrália. Ela veste uma blusa branca, jaquetinha vermelha, saia preta, sandália de bailarina branca e preta, estilo Chanel, e joias pesadas. Lembra a avó de alguém, mas na moda e ousada. Os modos são delicados, de coquete. Trago uma longa lista de perguntas íntimas que pareciam legítimas quando as ensaiei no caminho para cá, mas, agora, na presença desse ser vulnerável e de fala macia, parecem totalmente inadequadas. Westerly, porém, vai direto ao ponto.

“Esta é a revelação de alguém experimentando uma nova existência”, diz. “Fui colocado em uma nova dimensão. Parece esquisito, eu sei. Vivo dizendo para as pessoas: ‘Não é intencional’. Esta garota está solta, mas é real. E, quanto mais entro nisso, menos provável que eu queira sair.” Explica que Peter nunca foi homossexual, nem Westerly é lésbica. Ela é temporariamente assexuada. Acredita que, para uma “transição” apropriada, é essencial um período de abstinência sexual.

Westerly refere-se a si mesma na terceira pessoa, e a Peter na terceira pessoa no pretérito. Lembra uma atriz falando de seu personagem em um filme. Pergunto se fez a operação. Westerly responde que não importa. “Não importa se você ainda anda por aí com testículos e um pênis. É como se os testículos e o pênis fossem estrangeiros. Não deveriam estar lá! E você tem que se livrar deles assim que possível. É como uma sanguessuga que se infiltrou no seu corpo, você tenta arrancá-la, mas metade dela está presa. Mas se você sabe que é uma garota, e a operação está por vir, o que importa?”

Depressão e teatro
Peter Drouyn escalou rankings rapidamente. Venceu o Makaha Pro em 1970 e foi às finais do famoso Bells Beach em 71, 74 e 77. Foi pioneiro de um estilo agressivo que influenciaria a “revolução das pranchinhas” no fim dos anos 60. Surfou ondas gigantes, assustadoras, em Sunset Beach e Waimea Bay, apareceu em revistas e filmes de surf e transou com belas mulheres em países estrangeiros. Foi uma das maiores estrelas do surf de sua era, conhecido pelo estilo exibicionista dentro e fora das águas.

Mas, apesar de seu sucesso, havia uma profunda desconexão entre sua persona pública e privada. Por fora, era carismático, mas internamente se sentia pouco apreciado. Para Peter, o mundo do surf nunca o levou a sério, nunca reconheceu suas contribuições. Sofreu terríveis crises de depressão. Tinha o que os médicos hoje diagnosticam como transtorno obsessivo-compulsivo. Receitaram vários remédios, nenhum funcionou.

Em 1971, se matriculou no Instituto Nacional de Artes Dramáticas, em Sydney. Estudou o método Stanislavski, em que os atores mergulham em emoções e memórias para compor os personagens. Peter era um ator nato. Participou de peças e comerciais de TV e chegou a conceber um Método do Surf, fusão da técnica Stanislavski com seu estilo no esporte. Esse conceito foi documentado em Drouyn... and Friends, filme de 1973 em que surfa em Bali, França, Japão e ilhas Maurício e corre pelado pelo deserto de Angola.

“É como se os testículos e o pênis fossem estrangeiros. Mas, se você sabe que é uma garota, e uma operação está por vir, o que importa?”

LSD e Muhammad Ali
Westerly lembra-se da carreira de Peter com tristeza. Acredita que os colegas nunca o entenderam ou apoiaram. Se sentia terrivelmente sozinho. “Peter era extremamente sensível.” “Peter tinha emoções de uma garota.” “Peter passou por tanta dor.” Ela diz que surfar ajudou a salvar Peter, mas o manteve à distância de seu verdadeiro eu, que só iria emergir quando tinha 50 e poucos anos.

Pergunto quais eram os heróis de Peter quando jovem, e ela menciona Muhammad Ali, Juan Belmonte (o famoso toureiro espanhol) e... “você não vai acreditar nisso, mas também Marilyn Monroe de O rio das almas perdidas, O pecado mora ao lado e Nunca fui santa; mas me decepcionei com ela em Os desajustados”. Westerly se ilumina com a menção a Marilyn. Diz sentir uma afinidade enorme com a estrela. Lembra que ambas sofreram ataques de pânico, foram internadas em instituições psiquiátricas e tomaram LSD na mesma época, entre outras “coincidências Marilyn” de uma lista. “Se você virar minhas iniciais de ponta cabeça, W.W., o que vira?”

Nesse momento, volto a conversa para Peter. “Se Westerly Windina está viva, então o que aconteceu a Peter Drouyn?” Ela toma um gole de água. “Ele se foi...”, faz uma pausa para se aprumar, “acho que ele está lá em cima com mamãe e papai”, diz, apontando para o céu.

Teatro, Método do Surf, bateria homem a homem e ideias excêntricas e futuristas se fundiram em 1984, quando Peter Drouyn desafiou o campeão Mark Richards. As propagandas nas revistas de surf eram lendárias: Peter de cueca, lambuzado de ketchup, posando de gladiador, com provocações estilo Muhammad Ali pela página. O desafio foi um desastre. Peter reuniu o primeiro sistema de computadores de contagem de pontos, juízes do Instituto Nacional de Artes Dramáticas, uma coleção de diferentes pranchas para determinar “o surfista mais versátil” e cobertura de mídia de todos os cantos da Austrália. Mas, no dia do evento, uma tempestade fez o circo literalmente voar para fora da praia.

A parada seguinte foi o Extremo Oriente. Matriculado em cursos de mandarim e cheio dos australianos, Peter decidiu que iria levar o surf à China. Redigiu uma proposta formal, apresentou-a ao governo chinês e, em 1985, tornou-se o primeiro professor de surf oficial do país. Foi recebido como membro da realeza e se sentiu “um Lawrence da Arábia” no primeiro mês. Mas depois as coisas foram de mal a pior, e ele voltou para casa.

O final dos anos 80 e todos os 90 foram duros para Peter. Quebrou financeiramente e teve crises de depressão. E, então, em 2005 foi surfar em Burleigh Heads, perto de casa, e teve uma experiência que transformou sua vida. As ondas passavam pouco da altura da cabeças mas, em uma vaca rotineira, ficou debaixo d’água por um tempo anormal. “Nunca vou esquecer a sensação”, lembra Westerly. “Peter se sentiu terrivelmente desorientado, não sabia diferenciar o que era o raso e o fundo.” Depois do que pareceu uma eternidade, Peter emergiu com um jorro de sangue saindo da orelha esquerda. Se agarrou à prancha e boiou até a praia. Por um longo tempo, ficou deitado na areia, o mundo girando à sua volta.

Pantera de andar gracioso
Pouco depois disso começou a mudar. Saindo da praia um dia, Peter encontrou um shortinho na areia. A peça era rosa e branca, de garota. Serviu perfeitamente. Rodou então os brechós locais atrás de roupas femininas. De noite, sozinho em seu apartamento, colocou música clássica, experimentou as roupas novas e dançou pela sala. Depois ele faria o mesmo na praia. Em pouco tempo, já usava mais roupas femininas do que masculinas.

“No momento em que comecei a acreditar que era uma garota”, conta Westerly, “meu corpo começou a se transformar. Fui de um gorila quadrado para uma mulher delgada. A cintura está mais alta, a bunda ficou empinada. Os médicos não conseguem acreditar!” Westerly toma seu café latte com três colheres de açúcar. Suas emoções parecem estar sempre à flor da pele. Pode ir da risada à lágrima numa mesma frase. Lamenta os infinitos maus-tratos a Peter e, de repente, anima-se para falar da recente transformação. “Foi como uma intervenção divina. Como se Westerly brotasse de mim.”

Quando pergunto se poderia imaginar voltar a ser Peter Drouyn, ela diz que absolutamente não, que a vida de Peter foi um desastre, que sempre quis ser uma garota. Perguntada sobre o que sua família e amigos pensam a respeito, responde que seus pais estão mortos e que não tem tantos amigos assim.
Ao irmos para um gramado em frente, ela me pergunta se quero vê-la andar à minha frente. É um caminhar feminino, gracioso, como o de uma pantera. Com seus lábios vermelhos, cabelo loiro brilhando ao sol e saltos altos fazendo barulho no cimento, é fácil imaginar um vento malandro levantando sua saia e revelando as coxas, como Marilyn.

Nos meses seguintes, passamos a conversar quase diariamente. Westerly estava radiante e otimista em um dia, derrotada e deprimida no seguinte. Em um telefonema, diz: “Meus peitos estão ficando maiores. Minha voz subiu uma oitava. A cada hora fico mais feminina”. Ela conta que vai me enviar autorretratos e menciona “a operação”, que pretende fazer o mais rápido possível.

A história de Westerly me mostrou que, de um lado, nossos corpos são prisões às quais estamos confinados por toda a vida; e que, por outro, sempre podemos nos reinventar e reconstruir.

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