O suicídio na polícia militar do Rio de Janeiro

por Marcos Candido

Como o sistema policial, que cria uma hierarquia militar cruel, a crise financeira e o ”mito do herói” levam policiais ao suicídio no Rio de Janeiro – e quem está tentando resolver a grave situação

 O policial militar João* era um cara extrovertido, ainda que o sofrimento pelo divórcio da mulher deixasse marcas em seu rosto, como rugas e olheiras. Aos 32 anos, em um dia de trabalho, João atirou contra a cabeça dentro de um Batalhão de Choque da cidade do Rio de Janeiro. Considerada pelos companheiros uma pessoa serena, Regina tinha o sonho de ser policial militar desde criança. Aos 27 anos, a cabo habituada a rondas morava sozinha em um apartamento e aproveitou a solidão do lar para dar um tiro na cabeça. Miguel era um policial conhecido pelo histórico de violência em casa. Nos relatos dos familiares, um de seus costumes era "brincar" de roleta-russa na frente da mulher e dos filhos. Em vez de sofrer calado, comunicava abertamente o desejo de se matar. Ao chegar em casa depois do expediente, foi ao banheiro, calculou aonde os jorros de sangue poderiam chegar. Debaixo da porta, deixou um bilhete: "Vou sair antes do combinado. Desculpe a sujeira". E atirou. Com queixas à falta de pagamento na corporação e com um divórcio à espreita, Francisco transmitiu a morte ao vivo, via Facebook. São trajetórias de vida e perfis psicológicos diferentes, mas com uma coisa em comum: fazem parte do grupo de PMs suicidas no estado do Rio de Janeiro. A boa notícia é que 2017 promete ser o ano em que esse cenário começa a mudar.

Em 1992, uma pesquisa encabeçada por pesquisadores dos Estados Unidos descobriu que a taxa de suicídios entre agentes de segurança era 1,3 vezes maior do que na população em geral. No Brasil, o problema foi detectado por pesquisadores em 2005, quando um estudo da Fundação Getulio Vargas revelou que a taxa de suicídios entre PMs paulistas chegava a ser quatro vezes maior do que a da população em geral (no ano de 2003). Desde então, os militares de São Paulo contam com um programa específico de prevenção, em que psicólogos especializados em suicídio atendem a tropa, e a taxa caiu pela metade.

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No Rio de Janeiro, os dados oficiais não deixam claro o tamanho do problema. Para jogar luz no assunto, a socióloga Dayse Miranda, criadora do Gepesp (Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção) e pós-doutora em ciências sociais pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, mergulhou em 18 unidades de polícia da capital e do interior nos últimos anos. Segundo os dados recolhidos na pesquisa, um policial militar no Rio de Janeiro tinha, em 2009, um risco 6,6 vezes maior de cometer suicídio em relação ao restante da população. Sua investigação cuidadosa do tema do suicídio dentro do efetivo fluminense tirou o esqueleto do armário e ganhou o respeito do alto-comando no estado. 

A pesquisa analisou 394 policiais; destes, 81 afirmaram que tentaram ou já pensaram em se matar e 89 disseram conhecer uma vítima de suicídio na corporação. "É provável que esse número seja ainda maior, já que mais de 900 fichas foram remetidas à tropa e mais de 500 militares não se dispuseram a conversar sobre o assunto", conta. Em depoimentos de familiares, colegas de farda e policiais que tentaram suicídio, três fatores pintam esse quadro trágico: a rigorosa e gélida hierarquia militar (com sua burocracia, problemas como falta de atendimento médico e distância afetiva abissal entre colegas), o acesso à arma de fogo e a exposição a um estado de guerra (para ficar em um exemplo recente, em 2015 o Rio de Janeiro teve 33 mortes a cada 100 mil habitantes, enquanto São Paulo teve 13 mortes a cada 100 mil, segundo o relatório do Fórum de Segurança Pública)."O PM é criado pela corporação para ser um guerreiro invencível", explica o tenente-coronel Fernando Derenusson, chefe do Núcleo de Psicologia da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro. "Há uma cultura interna que impõe a ideia de que o policial é um soldado capaz de lidar com todos os problemas sozinho. E não é bem assim." O tenente faz o diagnóstico: policiais aderem ao silêncio por acreditar que cada um deve cuidar dos próprios problemas.

“Temos em mente que ‘missão dada é missão cumprida’, mas são pessoas de carne e osso que cumprem as missões”
Wilman René, comandante do Comando de Operações Especiais

Há entrevistas na pesquisa feita por Dayse, compartilhadas com a Trip, de policiais que alegavam normalidade à tropa, porém, na companhia dos familiares, choravam durante horas após experiências traumáticas. "Tomei um tiro depois que tentaram roubar minha moto próximo ao batalhão. Os oficiais só perguntaram se eu possuía habilitação. Ninguém me perguntou se eu corria risco de vida, ou se estava bem. A partir daí peguei raiva da farda, pela falta de companheirismo dentro da corporação", afirma o policial Cássio*, que tentou se matar. "Fiquei quatro meses sem trabalhar, com pânico de sair de casa, e ninguém investigando o caso por mim. Me senti um lixo. Me perguntava: vivo sem perspectiva e sem amigo. Por que eu vivo?", desabafa. Outros depoimentos dão a entender que a solidão no fronte é estimulada pela hierarquia militar, que cria uma barreira entre os próprios subalternos e com seus comandantes. "Em casos de suicídio é comum sermos questionados se éramos muito próximos do cara que se matou. A resposta é quase sempre não – a instituição cria esse cenário", diz o colega de uma vítima de suicídio.

Em agremiações especializadas, o número de suicídios cai. O Bope, por exemplo, em cerca de 20 anos, teve apenas um registro. "Buscamos líderes que diminuam a distância hierárquica e se interessem em conhecer os pontos fortes e os fracos de seus subalternos e de si mesmos", diz o coronel-comandante Wilman René, do Comando de Operações Especiais. "Temos em mente que ‘missão dada é missão cumprida’, mas são pessoas de carne e osso que fazem a missão, cumprem metas e conquistam objetivos", conta.

A mudança na cultura da corporação é determinante para a evolução do quadro, assim como sua reestruturação. Para o chefe de psicologia da PMERJ, tenente-coronel Dereusson, os 98 psicólogos e dois psiquiatras não são suficientes para atender 50 mil policiais (ativos e reformados) e seus familiares em todo o estado. "A equipe desarma algumas bombas como pode", afirma. Levantamentos trienais do departamento mostram que "um terço dos PMs que atua em batalhões e UPPs em favelas onde há conflitos armados possuem problemas psicológicos, como depressão e ansiedade", conta Dereusson.

ESTADO DE GUERRA

Mais difícil, porém, é ligar a questão da exposição à violência e o porte de armas à questão do suicídio na corporação. "Os policiais com problemas psicológicos não citam que causar mortes lhes faz mal", explica Carmen Cortês Furtado, tenente psicóloga da PMERJ e pesquisadora da Gepesp. "Talvez eles não consigam digerir o quanto conviver com a morte os afeta", analisa a policial. Os registros do Instituto de Segurança Pública do Rio mostram que policiais militares foram os causadores de 815 homicídios no estado fluminense ano passado – casos em investigação ou não notificados podem inflar ainda mais o número. Mais de 115 policiais foram mortos e 655 feridos de janeiro até outubro de 2016, de acordo com a PMERJ. Parece natural que o entorno os influencie, mas ainda assim eles preferem não falar sobre o assunto, o que só faz aumentar a angústia – a análise é dos pesquisadores.

"Cheguei no batalhão e me fardei todinho. Peguei a arma e coloquei a munição na agulha. Saí do alojamento e fui falar com um oficial. Eu não queria morrer longe de alguém. Queria alguém para me tirar de onde eu estaria. Tirei a pistola, botei na cabeça e, quando um colega me viu, tirou a arma da minha mão", explica um PM que tentou se matar dentro de um Batalhão de Choque na capital. Era a segunda tentativa. Na primeira vez em que tentou se matar, em casa, o patrulha teve o revólver arrancado das mãos pelo próprio filho. "O acesso à arma de fogo é um facilitador para o policial que está sob pressão", explica Dayse. Com base nos dados do Ministério da Saúde, o maior número de suicídios no país e no mundo é cometido por enforcamento. O grupo de policiais militares suicidas no Rio, entretanto, recorreu à arma de fogo. "Ele ainda tinha uma arma, mesmo depois de ter sido internado por problemas psicológicos", desabafa a esposa de um PM suicida.

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Só agora a corporação criada há mais de 200 anos se prepara para instalar um programa de prevenção ao suicídio em sua estrutura. Desde o início do segundo semestre de 2016, chefes do setor de psicologia, comando de Operações Especiais, coordenadores de campanhas internas da PM e pesquisadores da Uerj se reúnem para debater a chamada "valorização da vida" com a tropa. Para acelerar o processo, mais de 120 agentes do Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência) estão sendo treinados para ministrar palestras contra suicídio em 33 UPPs do Estado. A intenção é que o assunto entre na pauta desde a formação e se torne uma política permanente dentro da corporação. "Há cinco anos, muitos policiais assumiam que suicídio simplesmente não existia na corporação. Naquela época, eles ainda estavam discutindo como implementar aulas de direitos humanos. É muito forte ouvir um capitão afirmar que já teve vontade de se matar", destaca Dayse. É uma corrida contra o tempo: dias depois de aferidos os dados para a pesquisa anual do Instituto de Segurança, em novembro, mais um policial militar se matou no estado do Rio de Janeiro. 

Créditos

Imagem principal: Colagem com fotos Lambert / Getty Images e arquivo Ag. O Globo

Uma primeira versão dessa reportagem foi publicada no dia 19 de dezembro de 2016. Para a edição impressa de Trip, o texto passou por uma segunda edição para melhorar a clareza e adicionar dados, mas sem prejuízo das informações publicadas anteriormente. *Os nomes foram alterados a pedido da pesquisadora.

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