Sem mancada não tem samba

por Henrique Skujis
Trip #186

O Arnesto do samba de Adoniran Barbosa diz que não convidou ninguém para uma festa no Brás

Muso do “Samba do Arnesto”, de Adoniran Barbosa, Ernesto Paulleli virou símbolo de pisada na bola. mas, aos 95 anos, ele diz que nunca convidou ninguém pra festa nenhuma no Brás

Sim, o figura da foto é o Arnesto da famosa música de Adoniran Barbosa. Foi ele que, segundo a letra da canção, convidou a rapaziada para um samba no Brás, não apareceu e deu o cano histórico. E o pior. Não deixou nem recado na porta. Mas antes que o caro leitor olhe torto para o simpático senhor de cabelos brancos, voz pausada, andar lento e memória de moleque, deixemos claro que tudo não passa de um embuste. Os versos do samba são pura licença poética da cabeça de Adoniran. “Eu não convidei ninguém pra samba nenhum”, garante o próprio Ernesto, hoje com 95 anos de idade. A única vez que ele chamou o compositor à sua casa foi para tomar um refresco. “E ele riu da minha cara. Me deixou falando sozinho e disse que preferia dar um tapa no beiço com uma dose de água que passarinho não bebe”, lembra.

Os dois se trombaram pela primeira vez em 1938. Quando foi tocar com Nhá Zefa, estrela do cancioneiro caipira, Ernesto encontrou por acaso com Adoniran na portaria da rádio Record. “Ele foi com a minha cara. E eu com a dele.” Um dia, ao ler o cartão de visita de Ernesto, Adoniran, com seu vocabulário pra lá de singular, trocou a vogal inicial. Ernesto confessa não ter gostado muito da brincadeira. Nem aí com o aborrecimento do amigo, Adoniran continuou: “Seu nome dá samba, Arnesto. Vou fazer um samba pra você”. No ano seguinte, Ernesto ficou noivo e, por amor à futura esposa, pendurou o violão. “Ela tinha ciúme dos ambientes festivos onde eu tocava. Temos que ficar felizes quando a mulher tem ciúme da gente.” Largou a música e virou auxiliar de contador em uma fábrica de ceras também chamada Record.

ERRO PERPETUADO
Quase duas décadas depois da promessa, em uma tarde de maio de 1955, Ernesto ouviu o locutor anunciar os Demônios da Garoa com a nova do Adoniran: “O samba do Arnesto”. O erro ortográfico estava perpetuado. Abraçado à mulher, ouviu a “homenagem”, chorou de felicidade e riu ao lembrar-se do dia em que Adoniran disse não ter jamais composto um samba-enredo por não se julgar culto o suficiente. Ernesto tinha esse mesmo sentimento. Seu pai havia lhe tirado da escola ainda no primário. “Fui trabalhar de engraxate e de vendedor em um armazém de secos e molhados.”

Aos 50 e poucos anos, resolveu retomar os estudos. Terminou o ginásio, fez o colegial e em 1974, aos 60, formou-se em direito. Exerceu a profissão até os 85, quando sofreu um derrame, que o tornou mais lento no andar, mas nem relou na sua capacidade de se lembrar do passado e contar detalhes de sua passagem na Terra. Desde então, dedica-se aos livros e aos estudos. “Enquanto eu conseguir ler, quero seguir neste mundo”, diz o quase centenário músico que ainda toca violão e tem uma pilha de livros sobre a antiga escrivaninha onde estuda português, latim, álgebra e filosofia. Sobre a gozação de Adoniran na letra da música, Ernesto diz que ficava incomodado quando era cobrado na rua pela mancada que não cometeu. “Não dou bolo, não minto. Sou pessoa do bem”. O amigo compositor justificou-se da seguinte forma: “Segura essa aí. Você sabe. Sem mancada, não tem samba”.

 

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