por Camila Eiroa

Durante seis dias, o Festival Psicodália reuniu quase 5 mil pessoas em busca de uma realidade que há alguma décadas deixamos de lado

Seis dias de utopia em uma fazenda afastada na cidade de Rio Negrinho, em Santa Catarina. Seis dias de uma realidade que há algumas décadas deixamos de lado, nos entregando para uma era de consumismo desenfreado e atropelando a nossa própria essência

O festival Psicodália, que aconteceu durante o Carnaval, é quase um refúgio para quem sente a necessidade - ou a curiosidade - de viver com o que basta. As barracas como morada nos questionam quando começamos a precisar do mais elaborado pra ter conforto. A comida, feita com simplicidade em um fogão comunitário à lenha, vem sempre acompanhada de muita música. Que, inclusive, parece combustível para a felicidade de quem vivencia a festa da carne longe de trios elétricos, blocos e desfiles. Lá não tem só rock'n'roll. Tem samba, tem roda de viola, tem teatro, cinema, oficinas culturais diversas e até tirolesa. Tem bebê sem dente na boca, criança, jovem, adulto e idoso. Tem todo mundo junto na mesma sintonia.

É fácil lembrar de Woodstock, festival que aconteceu durante três dias nos Estados Unidos, também em uma fazenda na cidade rural de Bethel, no ano de 1969 e que ganhou fama mundial. Na ocasião, as atrações passearam entre Janis Joplin, Melanie, Jefferson Airplane, Jimi Hendrix, The Who e Creedence. Enquanto por aqui, vimos no palco do Psicodália nomes que já faziam seu som nessa época no Brasil, como Tom Zé, Di Melo - com sua famosa Kilário, de 1975 -, Moraes Moreira, Almir Sater, Made in Brazil e também a enigmática Gong, banda de rock progressivo que nasceu em 1967 na França. Ao lado dessas atrações, uma mistura de sonoridades e idades na programação, como a paulistana Metá Metá e seus batuques africanos, a psicodélica Pedra Branca e muitas outras bandas independentes.

Esse encontro de gerações no palco, na plateia e em toda a vivência do festival abre o questionamento: temos saudade daquilo que não vivemos?

Revivendo o passado?

Moraes Moreira tocou, na íntegra, o renomado e espetacular "Acabou Chorare", segundo álbum dos Novos Baianos - lançado em 1972. Logo na passagem de som, um coro uníssono cantava Mistério do Planeta a plenos pulmões, antecipando a grande cantoria do show que estava reservada para a noite. O cantor desabafou o arrepio, assim como seu filho que toca com a banda, Davi Moraes. Sobre reviver esse estilo de vida, muito comum no movimento hippie dos anos 70, ele dispara sem rodeios que isso nunca morreu e "nem tem inveja de quem morre". Durante o show, inclusive, disse ter vontade de reviver o ácido que tomava na época.

"Sempre esteve viva essa semente que foi plantada nos anos 70, e ela continua vingando até hoje em vários lugares. Quem está querendo isso não são os saudosos nem os nostálgicos, é a juventude, e, quando a juventude faz essa releitura, tudo se renova. Não é reviver o passado, é jogar para o futuro", argumenta o cantor, que está em turnê de 40 anos dos Novos Baianos e diz que a maioria do público é composta de jovens.

 

"Não é reviver o passado, é jogar para o futuro", Moraes Moreira


Caminhando pela fazenda, também dava para escutar a música do cantor, compositor e filósofo hippie Plá, que ao ser questionado sobre sua idade, diz já ter se passado muito tempo porque, para ele, cada ano valia por 30, por viver intensamente e sem calendários, estendendo-se no tempo e no espaço. Com 54 discos lançados artesanalmente, participou de todas as edições do Psicodália. "Aqui vem gente de todo o lado. Todos inseridos na sociedade e descontentes com isso", reflete.

Plá completa "Essa galera vem aqui e consegue sair um pouco do mundo cinzento da máquina, abrir mais os portais da consciência. Não é que estamos tentando reviver, é uma busca de um novo tempo. Depois que passou o ano 2000, eu sinto que estão percebendo que o movimento dos anos 60 e 70, da psicodelia e do rock'n'roll, foi algo muito positivo e importante. É uma tentativa de desprendimento e verificação de que há outra possibilidade de vida que não a de ficar submisso ao emprego. Uma tentativa de maior liberdade, de viver uma vida paralelamente a essa coisa instituída e sair desse modelo de mundo falido".

Revolução

O comportamento das pessoas parecia de fato um pouco distante do que estamos acostumados a ver em grandes metrópoles. O horário de pico era a hora de subir para os shows, "bom dia" vinha de todos os lados. Até mesmo as filas dos refeitórios e das duchas eram alegres. Um macarrão instantâneo na Massachussets e um misto-quente na Rango Starr eram algumas das opções entre as lanchonetes que funcionavam 24h por dia com preços justíssimos. Quem tinha o copo próprio do festival - que custava cinco reais - pagava só o equivalente ao refil do chopp e ainda podia devolvê-lo, caso tivesse intacto, no último dia e pegar o dinheiro de volta. A base da Polícia Militar estava ali, tranquila em meio à paisagem verde, às Kombis com pinturas psicodélicas e aos sorrisos e rostos coloridos de quem passava. 

O líder da Gong, Daevid Allen, de 76 anos, protagonizou um show hipnotizante, daqueles difíceis de manter o equilíbrio. Entre uma música e outra, fez seu grito ecoar na garganta das mais de quatro mil pessoas que estavam vivenciando esse Carnaval: It is time for a revolution.

Todos esses dias com o pé na terra foram mais que o suficiente para perceber que sim, é tempo de uma revolução. Uma revolução que não está só em tomar banho no lago da Fazenda Evaristo entre pelados, peludos, vestidos, crianças e adultos. Mas, sim, naquela voz chamando pela busca da verdadeira essência de viver valorizando o simples, o que basta.

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