Quanto vale o silêncio?

A Trip convidoua neurocientista Suzana Herculano-Houzel para refletir sobre a pergunta

A Trip convidou uma neurocientista para refletir sobre a pergunta acima. A resposta foi surpreendente: a ausência de estímulos externos pode ser fundamental à paz de espírito, mas não é isso que garante uma boa noite de sono. Para cada pessoa, o silêncio tem um valor e uma função completamente diferentes

texto Suzana Herculano-Houzel*  fotos jackson eaton

Bem escasso que se preza torna-se instantaneamente valioso. Assim é com o silêncio. Nos dias de hoje, com tantas atribulações e tarefas, aparelhos eletrônicos barulhentos e companhia constante, quase não temos mais momentos de silêncio - e este tem valor essencial para nosso sono, certo? Meu lado neurocientista-de-plantão sente-se obrigado a dizer que a coisa não é bem assim.

O silêncio é valioso, claro, para quem deseja paz, seja para pensar ou adormecer. Os conflitos e a distração que vêm com o ruído constante do dia-a-dia moderno são certamente um empecilho à paz de espírito, e algo de que queremos fugir.

Mas a raridade do silêncio tem sua razão de ser, pois ele não é intrinsecamente bom, nem tem sempre a mesma utilidade. Se para uns ele é razão de paz e de fato um convite ao sono, há quem prefira aproveitar a ausência de ruído externo para trabalhar, em vez de dormir - como meu marido, escritor e tradutor, que lamenta não poder, por razões de convívio social, trocar completamente o dia pela noite para escrever de madrugada, quando o telefone não toca.

Para outros, no entanto, silêncio é evidência de solidão, algo angustiante, ominoso, anúncio da iminência do desconhecido, do potencialmente pavoroso (crianças, por essas e outras razões, são inimigas do silêncio, sobretudo no quarto de dormir, e gostam de companhia, histórias, canções de ninar e conversa. Talvez isso também explique por que o banco de trás do meu carro só fica quieto quando seus ocupantes cativos, de 4 e 8 anos, adormecem).     

Se uns gostam e outros detestam, uns aproveitam para dormir e outros para trabalhar, precisaremos todos de silêncio, então?
Ele é fundamental, sim - só que não no sentido que primeiro nos vem à cabeça, em benefício do sono. Porque não é a ausência de estímulos característica do silêncio o que nos faz adormecer.

 

ENGANO ARISTOTÉLICO

Aristóteles não pensava que o cérebro servisse para grandes coisas além de resfriar o sangue, mas já tinha suas idéias sobre o que nos faz, todas as noites, deixar o estado de atividade diurna e entrar em torpor até o raiar do dia: a ausência de luz solar e, com ela, a de outros estímulos - como quando, hoje em dia, falta luz e ficamos quietos, sem ousarmos nos mexer no escuro (alunos adormecidos em plena sala de aula iluminada provam diariamente que Aristóteles estava enganado, o que me faz suspeitar que ou os alunos de Aristóteles não tinham tamanha audácia, ou ele era um professor extraordinário - ou extraordinariamente cego.).

Dois milênios depois, nos anos 30, um belga chamado Frédéric Bremer, que já achava que o cérebro servia sim para algo mais útil como produzir os pensamentos, ainda concordava com Aristóteles - e acreditava ter provas para tanto. Afinal, quando ele separava com um talho o córtex cerebral do gato de quase todos os nervos que trazem informações dos sentidos, o animal entrava em um estado semelhante ao sono profundo. Mas, se fazia o corte mais abaixo, de modo a subtrair ao córtex apenas as informações sensoriais do pescoço para baixo, preservando as da cabeça, o animal adormecia e acordava várias vezes ao longo do dia, como fazem os gatos normalmente.

Foi na década seguinte, quando uma dupla de neurocientistas usou eletrodos para estimular o cérebro com eletricidade, que ficou claro não ser o silêncio sensorial a razão do sono profundo e irreversível do animal operado. O que faltava nele era a influência sobre o córtex da atividade de uma estrutura específica, a primeira a ser identificada dentre a dezena de estruturas cerebrais que hoje sabemos controlar o sono e o despertar. Para a neurociência moderna, o sono é um processo auto-regulado, conseqüência inevitável da vigília (e não dependente de estímulos externos ou ausência destes), gerido por vários sistemas movidos a novidades, interesses e riscos que nos mantêm estáveis no "modo acordado" até que o acúmulo de horas em vigília nos leve ao ponto crítico em que, como uma gangorra, fazemos rapidamente a transição para o "modo sono" - e nele ficamos até que o cérebro tenha se restabelecido, para começar tudo de novo no dia seguinte.

Se não adormecemos por falta de estímulos, certamente podemos acordar com eles, contudo. Embora a hora de despertar seja programada internamente pelo cérebro, ficarmos totalmente insensíveis durante o sono seria perigoso demais. Assim, aqueles estímulos intensos o suficiente para serem considerados motivo de alarme pelo cérebro, ou aqueles que aprendemos serem importantes, mesmo que fracos, como o choro do filho ou o chamado do próprio nome, têm acesso a algumas das estruturas cerebrais que nos acordam - e estas, em poucos segundos, colocam cérebro e dono de pé, prontos para a ação.

 

VAZIO ENSURDECEDOR

A idéia aristotélica de que o silêncio nos faz dormir, ou ao menos relaxar, levou a uma moda inusitada nos anos 70: as câmaras de isolamento, ocupadas por pessoas em busca de silêncio absoluto. Nesses quartos completamente brancos e isolados acusticamente, ou em tanques escuros de água salgada morna, que neutraliza todas as sensações táteis, térmicas e gravitacionais do corpo, voluntários esperavam encontrar a mais completa paz - mas sem sucesso. No silêncio absoluto, primeiro vem o desconforto de ouvir em alto e bom som os ruídos do próprio corpo: o coração batendo, a saliva enxaguando a boca, a pressão nos ouvidos com cada deglutição. Logo em seguida, o cérebro, na ausência de estímulos externos, começa a criar as próprias imagens, e alucinações visuais e auditivas enchem o quarto isolado de sons e cores vindos do lado de dentro da cabeça, mas tão reais quanto quaisquer outros vindos de fora. O cérebro detesta o silêncio absoluto, e aproveita a primeira oportunidade para criar seus próprios estímulos.

 

CÉREBRO PREGUIÇOSO

Feitas as devidas ressalvas, voltemos ao valor do silêncio para o sono. Por que o silêncio facilita o adormecimento, além de ser relaxante para alguns? Porque, além dos ritmos internos do próprio cérebro, o que nos mantém acordados é uma mistura de interesse, motivação e preocupação - e o silêncio é a antítese disso tudo.

Partes variadas do cérebro se encarregam de nos deixar atentos, e portanto acordados, enquanto houver algo interessante, novo ou preocupante acontecendo: o jogo no computador, um filme instigante ou assustador, música no ambiente ou na festa ao lado, a sensação de barriga vazia da fome. Se não há estímulos para atrair a atenção, ou se eles são repetitivos e portanto totalmente previsíveis, como o ronco de um aparelho de ar condicionado (ou a voz monótona de um professor ensinando um assunto tedioso), mantermo-nos atentos passa a ser uma questão de motivação interna, naturalmente elevada durante a manhã, mas que vai minguando até a hora de dormir.

A causa da sonolência e letargia crescentes ao longo do dia é o próprio funcionamento do cérebro no modo acordado, que leva ao acúmulo progressivo de uma substância, a adenosina, que reduz progressivamente a sensibilidade das estruturas responsáveis pela motivação. O resultado é aquela preguiça típica do fim da noite, quando levantar para buscar água na cozinha ou alcançar o controle remoto passa a ser uma tarefa árdua enfrentada apenas quando a sede se torna terrível ou o programa insuportável. Some-se a preguiça do cérebro já no final de sua jornada à monotonia do silêncio que buscamos em nossos quartos, ou o filme nada apaixonante na televisão, e tem-se um cérebro pronto para adormecer. Para um cérebro que já trabalhou demais, o silêncio é de fato um amigo valioso do sono. Justamente por isso, atividades estimulantes demais tarde da noite são inimigas do sono: exercício físico, música alta ou jogos violentos no computador acendem o sistema de motivação do cérebro e seguram-nos acordados e atentos por mais algumas horas (afinal, lembrar que o despertador vai tocar às cinco da manhã é preocupação de outra parte do cérebro, não do sistema de motivação).

MENTE SILENCIOSA

Mas estímulos externos não são os únicos inimigos do sono. Contas por pagar, problemas a resolver e até coisas boas e excitantes nos aguardando no dia seguinte nos mantêm acordados na cama, mesmo quando a mais completa paz reina no quarto. Nessas horas, de nada adianta o silêncio externo. A razão? Ansioso, o cérebro, não importa se por bons ou maus motivos, não consegue encontrar paz de espírito para abandonar os processos em andamento e adormecer.

O responsável pelos estragos da ansiedade parece ser o hipocampo, parte do córtex cerebral que forma memórias novas, associando informações recentes, e que portanto cuida da agenda do dia, mantendo ativas na mente todas as idéias urgentes de que precisamos lembrar de pensar ou fazer. O hipocampo é a melhor das agendas, pois seu alarme é embutido e dificilmente silenciável: enquanto houver tarefas em sua lista (pois o diabo do alarme só desliga quando elas são cumpridas), ele ativa as estruturas do cérebro que nos mantêm acordados, atentos e preocupados. Naturalmente, é impossível adormecer assim.

Também acontece comigo, e por motivos positivos (ainda bem!): projetos novos e apaixonantes a pesquisar. Eu, que normalmente pouso a cabeça no travesseiro e adormeço em tempo recorde - meu marido sabe que tem poucos minutos para fazer a ronda das janelas da casa, buscar um copo d'água e ainda me encontrar acordada na cama -, às vezes me descubro insone, revirando mentalmente o que fazer primeiro no dia seguinte. O silêncio externo só faz as vozes internas falarem mais alto, então procuro um livro bobo ou vou para o sofá ver um filme que eu conheça de cor para ocupar meu cérebro e ajudar a afastar do hipocampo as idéias que me acendem a mente.

Quem melhor acalma meu hipocampo hiperativo, no entanto, é meu marido, que vem ao socorro do meu silêncio mental oferecendo um remédio hoje indicado pela neurociên­cia, mas velho conhecido de pais e companheiros atenciosos, para mentes irrequietas, avessas ao sono: carinho e voz baixa, tranqüila e lenta como uma canção de ninar. Seja na forma de palmadinhas no traseiro ou de uma mão alisando os cabelos, carinho é um santo calmante para o hipocampo, e ajuda a ninar o cérebro. Acompanhado da voz tranqüila de uma pessoa querida, então, é melhor ainda.

Em instantes meu hipocampo cede e aceita deixar os assuntos palpitantes para o dia seguinte. A paz de espírito que me permite adormecer tranqüila não vem com o silêncio absoluto do lado de fora, e sim com a presença de quem me acalma a mente e a alma.

 

*Suzana Herculano-Houzel é neurocientista, professora da UFRJ e autora do livro Fique de bem com seu cérebro, entre outros.

 

 

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