Prancha & prancheta

por Emilio Fraia
Trip #166

Gui Mattos conta como conseguiu manter o equilibrio perfeito entre a arquitetura e surf

Na cobertura de um prédio de três andares na avenida Cidade Jardim, em São Paulo, o escritório do arquiteto paulistano Gui Mattos, 45, é interrompido por uma quadra de tênis. Ou o contrário: o verde da quadra é que imediatamente sofre um corte e, pelo vidro, dá espaço para um Mac, o branco de mesa e paredes, nenhum livro, tudo muito clean, a sala onde Gui trabalha. Vazia, a quadra parece um pouco melancólica. "Uma época eu costumava ter aulas de tênis aí, com um amigo meu, às sete da manhã", lembra Gui. "O problema é que a quadra fica perto demais do escritório, eu começava a jogar, olhava aqui pra sala e logo já estava pensando nos compromissos e reuniões do dia. Era muito difícil desligar um botão e ligar o outro."

Autor de projetos como os da boate Sirena, em Maresias, do restaurante Japengo e das lojas Mandi, em São Paulo, Gui sempre foi apaixonado por esportes. No início, era o pólo aquático. "Aos 15 anos, eu jogava em praticamente todas as categorias: júnior, aspirante, principal", conta. "Treinava sério, meu sonho era fazer faculdade e jogar pólo na Itália, chegar às Olimpíadas." Ao mesmo tempo, Gui sempre gostou de desenhar. Era freqüente gastar toda a mesada na papelaria, em canetinhas e lápis de cor. "Então, nessa época, acho que colocaram na minha cabeça que arquitetura era um jeito mais sério de fazer arte", ri. "E que talvez fosse um caminho mais fácil de ganhar dinheiro."

Com 17 anos, Gui passou no vestibular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos, precisou mudar-se para o litoral e abandonar o pólo. O que parecia uma infelicidade, a troca das piscinas pelo mar, logo se revelou como a descoberta de um novo mundo, o do surf. Era 1980 e Gui morava no apartamento de sua avó, na praia de Pitangueiras, no Guarujá.

Estudava à tarde e surfava de manhã. Começou a treinar, tomar gosto pela coisa e logo já estava participando de campeo­natos. "Eu estava ali para estudar, por causa da arquitetura, mas me apaixonei pelo surf", diz. Gui se viu dividido entre a prancha e a prancheta. Ia para a faculdade, mas era na crista das ondas que seu coração pulsava. Quando terminou a faculdade, tirou um ano para surfar. Foi uma época de intensa dedicação. "Era o início do surf profissional no Brasil, não havia suporte nenhum", recorda. "Eu também tinha consciência de que havia chegado um pouco tarde ao surf, a concorrência era dura, muita gente boa estava surgindo naquela época."Assim mesmo, Gui disputou 50 campeonatos; surfou competitivamente na França, Inglaterra e Espanha; chegou à 85ª colocação no ranking mundial e 17ª no brasileiro.

Enlouquecendo na cidade

Em determinado momento, porém, Gui se viu novamente diante da arquitetura. "Recebi uma proposta para trabalhar em São Paulo", conta. A decisão foi dura, mas aquele parecia ser um caminho mais seguro a trilhar. "Eu não tinha a mentalidade do surfista profissional e sabia que a vida do atleta tem certas limitações", diz. "Subi a serra, larguei o surf. Passei seis meses na cidade e. fiquei louco! Estava há sete anos na praia, a adaptação foi muito difícil." Nessa época, um amigo de Gui o convidou para fazer um projeto em Maresias. "Topei na hora. Meus pais tinham uma casa em Camburi e acabei me mudando de novo." Tudo para ficar perto do mar e dos fins de tarde sobre a prancha. Esses quatro anos que Gui morou no litoral antes de voltar definitivamente para São Paulo foram de profundo aprendizado. "Na faculdade, eu não tinha sido o aluno brilhante, acadêmico, estudioso. No curso de teoria da arquitetura, por exemplo, eu mal aparecia", lembra Gui. "Uma vez, quando tinha 15 anos, estava com a minha família no museu do Louvre e lembro que tomei uma bronca porque em vez de olhar pra Mona Lisa eu ficava olhando pro teto, pro saguão, pro espaço do museu e pensando: ‘Cara, que lugar lôco'. Era essa minha maneira de ver as coisas." O aprendizado de Gui, segundo ele mesmo, foi até certo ponto intuitivo. "Além de fazer os projetos, eu tocava as obras: ajudava a descarregar caminhões de cimento, de tora, comia com a peãozada. Adoro essa parte braçal, de fazer", fala. "Na época, na minha equipe de carpinteiros, havia um tiozinho baiano, o seu Tancredo. Ele tinha trabalhado com o Frans Krajcberg [artista plástico polonês naturalizado brasileiro] e era meu calculista estrutural. Aprendi muito com ele, fizemos umas 20 casas juntos."

projetando no mar

Hoje, Gui vai quase todos os fins de semana para a praia surfar. Concilia prancha e prancheta, suas duas paixões; as linhas e curvas das ondas e das casas que constrói. Da sua relação com a natureza nasceram muitas características do seu trabalho: uso da luz, espaços integrados, aber­turas para o exterior, simplicidade e um certo refinamento rústico. Gui já alterou muitos projetos por causa de árvores. "Na minha casa em Camburi, tenho uma árvore no meio da sala de televisão", diz. "Decidi mantê-la e ficou incrível." Em São Paulo, Gui mora perto do trabalho, mas muitas das etapas de criação ele acaba desenvolvendo em casa. Ou em cima da prancha. "Penso bastante antes de começar a desenhar. Uma das idéias mais interessantes que já tive para um projeto foi uma vez, surfando." Gui considera São Paulo um caos urbanístico e arquitetônico. "É a grande mistura de tudo, acho uma cidade feia, onde faltam espaços abertos, grandes visuais, horizonte." Diz que o lugar que menos gosta de estar na capital é no trânsito; o que mais gosta é em uma piscina. Exemplo de monstro arquitetônico paulistano: a ponte estaiada da marginal do Pinheiros. Gui acredita que a arquitetura pode melhorar a relação das pessoas com o trabalho. "Trabalhar num espaço que tem a luz certa, o clima e a escala ideais faz toda a diferença. Sempre é possível transformar os ambientes."

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