por Marcus Preto
Trip #227

O titã fala pela primeira vez sobre a morte da mulher com quem viveu por 30 anos

Paulo Miklos viu metade da sua banda seguir outros caminhos e, há apenas três meses, perdeu a mulher com quem foi casado por 30 anos. Mais que nunca, a solidão espreita. Mas um titã é um titã: agarrado em seu novo programa de TV e no próximo disco, ele segue em frente

Talvez seja uma questão de hábito. Treinado por mais de três décadas a pensar e falar sobre todas as coisas pelo ponto de vista coletivo dos Titãs, Paulo Miklos responde sempre com um “nós” no sujeito da frase – mesmo quando as perguntas são sobre ele sozinho. Foi assim que ele fez durante quase metade da conversa que você lê a seguir. “É, né? Eu não tinha percebido que fazia isso.”

Não é que sua vida, inclusive a profissional, seja feita de poucas individualidades. Muito pelo contrário. À parte dos Titãs, o músico desenvolveu e desenvolve várias outras facetas que não a do vocalista, tecladista, por vezes saxofonista e atualmente também guitarrista dos Titãs.

A mais recente de todas elas pode ser vista desde maio no programa Paulo Miklos show, na Mix TV. Ele é o âncora do talk show semanal (vai ao ar às terças-feiras, às 22h30), que concilia números musicais (alheios) com entrevistas. Inspirado nos apresentadores ingleses (mas também tendo na memória os brasileiríssimos Silvio Santos e Flávio Cavalcanti), faz questão de estar sempre de terno, para que fique claro para o público quem é o entrevistador e quem é o entrevistado.

Sua carreira de ator segue firme. A estreia, que o relevou como um grande performer dramático (e cômico), aconteceu em 2001, quando estrelou o longa O invasor, do cineasta Beto Brant. Miklos viveu justamente o personagem do título. Para desenvolver os trejeitos necessários para o papel, teve aulas particulares com o rapper Sabotage (1973-2003), com quem também contracenou no filme.

Outros bons trabalhos vieram a seguir, em papéis um pouco menores, mas nem por isso mais apáticos. Fez bons pequenos trabalhos em Boleiros 2 (2006), de Ugo Giorgetti, depois em Estômago (2007), de Marcos Jorge.

Mas foi É proibido fumar (2007), dirigido pela paulista Ana Muylaert, que deu a Miklos o seu primeiro protagonista de fato, Max – par romântico da personagem vivida por Glória Pires. Ali, ele deu vida a um personagem um tanto mais próximo de sua realidade: um cantor de boteco. O próprio Miklos, na era pré-Titãs, chegou a tocar em bares para defender o dinheiro do mês.

A partir da carreira bem-sucedida no cinema, Miklos pegou gosto pela nova profissão. E logo começou a atuar também na televisão. Fez de tudo. Tanto pequeníssimas participações em séries, como Os normais (2002) e Sessão de terapia (2013), até papéis fixos em novelas, como Bang bang (2006).

Também sozinho, Miklos produziu dois álbuns. “Minha extensa obra solo”, ele brinca, com os CDs nas mãos. O primeiro é de 1994 e tem apenas seu nome como título. Todas as letras e músicas foram compostas por ele, que também assina a produção. O segundo veio em 2001: Vou ser feliz e já volto. Na capa, o músico aparece com os cabelos amarelos em uma sessão de fotos feita em Nova York, onde havia passado uma temporada que descreve como “muito louca”, regada a excessos de álcool e drogas.

Hoje, ele diz, a loucura está completamente controlada. Mas foram necessários anos de terapia, remédios e muitos afetos para sobreviver àquele período. Miklos vive na cidade em que nasceu, São Paulo. Atualmente, divide uma casa no bairro do Sumaré com a única filha, Manoela, e o cão, Nestor, um parrudo bernese.

Em julho, ficou viúvo. Rachel Salem, com quem estava casado desde 1982, mãe de Manoela, perdeu a batalha contra um câncer de pulmão. Pouco mais de um ano antes, a mãe de Miklos havia morrido da mesma doença. A tristeza fez com que ele se recolhesse em casa. Não havia dado nenhuma entrevista sobre o assunto – até esta aqui. Só saiu do casulo para trabalhar. O trabalho – sozinho e com os Titãs, que agora são quatro – é que segura um pouco da barra, a mais pesada por que passou em seus 54 anos de vida.

Ele afirma que, agora, a banda está de volta a um equilíbrio. O lançamento mais recente foi um pacote de CD e DVD com o registro da turnê de 30 anos do álbum Cabeça dinossauro, o maior clássico titânico. Atualmente, eles correm com um show de canções inéditas. Testam ao vivo o repertório que vai dar origem ao próximo disco de estúdio, com previsão de chegar às lojas no primeiro semestre do ano que vem.

Os Titãs são seu assunto preferido. Pelo menos é isso que dizem suas feições quando ele volta e volta e volta a falar sobre a banda. Com os outros companheiros, Paulo Miklos pode voltar ao conforto de ser “nós”. Embora tenha tanta estrada corrida por conta própria, parece ficar bem mais confortável quando tem os amigos para dividir as coisas.

 

“Agradeço a todos os amigos queridos e a todos os fãs pelo carinho. O momento agora é de recolhimento e comunhão em família. No coração sinto a dor da ausência da minha Rachel. Sei que nunca mais vou preencher este vazio, mas na alma descubro a plenitude de ter vivido um amor completo e eterno. Meu amor de toda a vida, Rachel Salem”, escreveu Paulo em sua página no Facebook

 

Você, claro, está num momento delicado. Mas me parece estar bem, com os dois pés bem fincados no chão. O processo foi muito duro. Eu não tive nem o tempo do luto da minha mãe [morta há um ano e meio]. Essa coisa de você tratar publicamente uma coisa pessoal sua tem dois lados. Essa intimidade que a gente pode ter com o público, de falar sobre nossa experiência pessoal, pode servir de exemplo. Por mais que eu tenha ficado receoso de falar desses assuntos imediatamente, ao mesmo tempo abracei a atividade freneticamente. Não dá para ficar jogado no canto e deixar a coisa te tomar. Nos últimos três meses fui ao Rock in Rio, participei de um projeto que corre o Brasil cantando Beatles, cantei com o João Donato músicas do Vinicius, tô fechando uma participação em um filme, fazendo um curta no fim de semana... Tô em movimento, entendeu? E as coisas estão bacanas: o programa de TV, a banda vivendo um momento especial, quase de renascimento. Estamos com material novo, prontos pra arriscar e fazer um show inédito. Essas coisas estão me dando força e segurando a onda. Na verdade, o que sempre foi o alicerce foi o trabalho, a paixão por ele. Às vezes, nem os que estão mais próximos de mim sabem o que eu tô passando. Daí tem um lado de atuar, de estar na atividade correspondendo. É isso o que eu tomo pra mim pra poder estar bacana, pra poder receber alguém. Entrevistar, ser entrevistado. Entrar no palco, dar uma coisa além do que você costuma dar. O show dá pra isso. A música que a gente faz é impactante, descarregada. Então eu faço terapia duas, três vezes por semana pelo Brasil, no palco. Tem uma rede de afeto e de carinho na qual estão as pessoas com quem eu trabalho – não só os Titãs, amigos da vida toda, mas também o pessoal da TV, gente muito bacana.

Quando e como vocês descobriram o câncer da Rachel? Descobrimos no final do ano passado, a gente estava em férias. O câncer ficava num lugar difícil, mais alto, então a gente tirou um pulmão. Mas depois pegou o outro. Ela teve uma infecção, e foi muito rápido. Uma coisa muito chocante. Você quer se matar? Às vezes, sim. Às vezes você pega o avião, vem uma turbulência e você pensa: “Se cair, tudo bem”. Você sabe que você está instável de uma maneira bastante estranha em relação ao que é o significado da vida. As coisas entram em solvência, é uma dor fodida.

Mudemos para outro assunto, mais ameno: música. Quando começou sua relação com ela? Criança, meus pais me deram um piano e depois minha avó me deu uma flauta doce. Ficou mais séria quando eu tinha 17 anos, mais ou menos. Participei de um festival da TV Tupi em 1979 que tinha o Arrigo Barnabé, o Walter Franco cantando “Canalha”. Entrei como arranjador da banda com a camiseta de jogar bola na escola, magrelo e com um saxofone emprestado, achando que tava abafando. Quando apareci no ensaio, a orquestra da TV Tupi, que só tinha fera, olhou pra mim sem entender nada. Eu escrevi tudo direitinho, apesar de não saber direito o que estava fazendo.

Então você estudou música mesmo? Estudei. Sempre fui muito interessado em música. Por fim acabei entrando na ECA [Escola de Comunicação e Artes da USP]. Cheguei das férias no Nordeste super-relaxado, de cabelão, bronzeado e fui fazer a prova. Toquei “Syrinx”, uma peça de flauta solo de Debussy. No meio a banca interrompeu, o que é normal, e soltou: “Tá bom, obrigado. Você parece um fauno mesmo” [risos].

Gostava da faculdade? Era só gente de conservatório, orientais que estudam violino desde os 6 anos de idade. Rapidamente percebi que...

Não era seu lugar? Isso. Aí eu ia na fitoteca e fazia um download geral.

Uma pirataria analógica. Pois é. Na época era fita e eu pegava tudo. Conheci a música contemporânea e pirei. Música concreta do Luciano Berio, só caras legais, coisas geniais. Passei lá um ano copiando as coisas e depois não voltei.

 

“Eu faço terapia duas, três vezes por semana pelo Brasil, no palco”

 

Mas os Titãs começaram antes disso, certo? A gente foi se encontrando na escola, se agregando. A gente viu os Novos Baianos tocar no pátio! O Alceu Valença e o Gil também! Depois, quando soubemos da existência da Blitz, pensamos: “Por que a gente não monta uma banda dessa?”. Inicialmente a gente fez uma fitinha, que era a fita das musas. Na verdade, era só para cantar as meninas.

Cantadinhas gravadasCantadinhas gravadas e reunidas numa fitinha que a gente promoveu e fez meio independente, colando uma a uma com um caderninho. Isso foi o começo dos Titãs. Eram todos os amigos juntos num primeiro momento, um coletivo gigante. Era um bonde, na verdade [risos]. Tinha, por exemplo, o Nuno Ramos, que depois foi ser artista plástico.

Ele também era do colégio Equipe? O que tinha na água dessa escola para reunir tantos talentos? É difícil explicar. Eu fui pro Equipe porque ouvi dizer que lá tinha um festival de música. Nem imaginava que depois ia ter o privilégio de presenciar o que presenciei naquele pátio, graças ao Serginho Groisman [outro aluno do Equipe] e à programação constante que ele trouxe.

Todos os Titãs eram do Equipe? A maioria. O Tony Belloto não, mas ele era amigo do Marcelo [Fromer] e do Branco [Mello]. O Branco tava numa classe antes de mim e o Arnaldo [Antunes] e o [Sérgio] Britto, um ano na frente.

E como funcionava a dinâmica dentro desse bonde musical? A gente já tinha claro que o barato era a coisa criativa, aquilo que a gente podia criar juntos, e defender essa criação sem preconceitos. A gente tinha toda essa carga de informação, adorava o Arrigo [Barnabé], o Itamar [Assumpção], essa vanguarda paulista. Eu queria fazer umas frases dodecafônicas! [Risos]. A gente tinha uma proximidade também com a poesia concreta do Augusto [de Campos], o Arnaldo [Antunes] é um cara que estudou as coisas. A gente tinha esse conhecimento profundo da música popular brasileira trombada com toda música internacional. A gente era new wave, mas curtia Alceu Valença. O Nasi, do alto do seu conhecimento de causa, dizia: “Eu sempre disse que a gente era do underground, do movimento do rock’n’roll, do Madame Satã. Vocês eram o último grito do tropicalismo”.

Engraçado issoÉ! Eu achava que era da turma, mas talvez não tanto [risos]. A gente sempre gostou do The Clash, por exemplo, que é uma banda que introduziu a música caribenha, o reggae, misturados com um punk rock mais encardido, mais sectário. O Cabeça dinossauro, por exemplo, tem reggae, funk, musica eletrônica, punk. Tem tudo, e foi feito em 86! Ele é uma mistura desse DNA louco. A gente era uma coisa caleidoscópica. “Sonífera ilha” parece um ska da fronteira do Paraguai [risos].

Num grupo tão numeroso você certamente teve que abrir mão de muita coisa. Como era isso? Não era problema. Desde o começo teve uma dinâmica de aproveitar o que era melhor, a melhor ideia. Sempre houve um consenso, um bom senso.

Quando o Arnaldo, o Nando e o Charles saíram, você pensou em sair também? Acho que foi uma questão que se colocou pra todos nesses momentos. Quando o Arnaldo quis sair, a primeira coisa que a gente pensou foi: “Pô, mas peraí, pode sair?” [risos]. Essa coisa meio sonho de criança, inocente, acabou. E aí? E aí a gente continuou porque a gente tinha um puta disco, o Titanomaquia, na mão. Foi a mesma coisa nos momentos mais trágicos, como quando perdemos o Marcelo [o guitarrista morreu atropelado por um motoqueiro em 2001]. A gente estava na véspera de viajar pra gravar o A melhor banda de todos os tempos da última semana, com todos os arranjos feitos junto com o Marcelo. De novo a gente se viu na mesma situação: “O que fazer agora? Vamos parar. Não, não vamos parar, vamos fazer esse disco que ele fez com a gente. Vamos registrar isso”. A gente entrou em estúdio e foi um momento de união, em que você está ali pelo outro. Foi isso que moveu a gente naquele momento. Hoje é o patrimônio que a gente tem.

O último trabalho dos Titãs revisita o Cabeça dinossauro, talvez o disco mais cultuado de vocês, lançado há quase 30 anos. O que mudou no Brasil nesse tempo? A gente está tocando músicas como “Desordem”, por exemplo, que é uma coisa que fala de distúrbio de rua e pergunta: “Quem quer manter a ordem?/ Quem quer criar desordem?”. Essas coisas estão muito dúbias atualmente. Os agentes parecem que trocam de lado. Quem está provocando, quem está policiando e censurando? A quem interessa botar um carimbo de “isso não pode, isso não é democrático”? O que é democrático? O povo na rua, a provocação, em que níveis são aceitáveis? Tem toda essa discussão, mas não tem banho de sangue nas ruas, como a gente vê na Primavera Árabe. Então considero que a gente melhorou muito.

Mas o que suscitou todo esse movimento na sua opinião? O gigante adormecido andou acordando por aí [risos]. Quantas coisas estavam na rua, quantas reivindicações, quanta coisa criativa estava acontecendo... Essa coisa dá pra ocupar as páginas dos jornais e dos telejornais. Eu acho que a gente melhorou muito porque estamos tocando nesses assuntos, experimentando os limites e questionando uma situação que é insuportável, mas que continua a mesma bandalheira de sempre.

Você falou das manifestações “violentas” e dos “baderneiros”. O que você pensa deles? Merecem estar entre aspas mesmo? Eu acho que são práticas que estão aí. Eu não vou incitar a violência [risos]. Acho que tem uma responsabilidade nisso, mas acho também que tem uma coisa da mídia de fazer esse papel da patrulha. Eu compreendo que de repente tem que fazer isso mesmo [quebrar tudo] pra chamar a atenção, porque a plaquinha que eu estou levando ninguém se interessa em fotografar. Mas, se eu jogar essa placa dentro da agência bancária, vão me fotografar imediatamente.

E o seu programa, o Paulo Miklos show? A ida para a TV tem a ver com uma sensação de que tudo que você tem a dizer não cabe mais só na música? O gostoso do programa é que ele tem esse espectro, vai do talk show à música. O que mais gosto é o contato com as pessoas, deixar fluir a conversa.

A ideia do programa foi sua? Não.

Convidaram você? Me convidaram pra fazer um programa que inicialmente se chamava Dose tripla. Éramos três – eu, Gustavo Braun e Marina Santa Helena – na bancada, e eu era uma espécie de mediador. Achei bárbaro porque foi uma plataforma de estudo de dinâmica e também foi o primeiro momento em que eu percebi o quanto aquilo poderia me trazer de informação nova. Foi como se fosse um aprendizado até chegar o momento de receber um convite pra fazer um programa só meu.

 

"Às vezes você pega o avião, vem uma turbulência e você pensa: se cair, tudo bem"

 

Tem muito a ver com a sua experiência de ator também, né? Tem, mas também tem a ver com a minha relação com a música mesmo. O que sempre me atraiu, desde essa época, é a interpretação, é estar cantando, é o palco, o encontro com o público. Isso sempre me fascinou. O Beto me convidou pra fazer O invasor depois de um show nosso. Eu achei que ele estava tomado por aquela coisa de camarim depois de show: “Não, Beto, agora você está um pouco alterado. O show é muito legal, eu sei, mas eu vou dar um tempo pra você pensar melhor”. Mas, no dia seguinte, ele ligou: “Eu tava falando sério mesmo. O teu personagem é o personagem título do filme”.

O rapper Sabotage ajudou nas filmagens. Como é que foi essa relação? Primeiro eu já vampirizei o cara, peguei o jeito dele. Pensei: “Ele é uma inspiração bacana pro personagem que eu vou criar”. Agora, foi no texto que ele trouxe a contribuição mais fantástica. Ele tinha aquela coisa típica dos poetas, uma coleção de gírias que ele ouviu e registrou do pessoal falando nas ruas, quase um código cifrado. Eu entrava em cena e o Alexandre Borges e o Marco Ricca ficavam de boca aberta, porque não era nenhuma deixa que estava no texto.

Tem novos papéis à vista? Vou participar de um curta no fim de semana. E tem o filme do Jeferson De, um cineasta paulista, chamado Celulares. A gente vai filmar agora no começo do ano.

Não sei se já disse isso, mas você tende a responder as perguntas usando “a gente” em vez de “eu”. Culpa dos 30 anos de banda? Ah, sim. Mas ainda não estou falando eu e Paulo Miklos, tipo o Edson e o Pelé [risos].

Mas você acha que por conta da sua trajetória de vida acabou tendo uma visão mais plural do mundo? Eu não tenho grande barato no exercício artístico solitário. Acredito muito na coisa colaborativa. Na minha formação eu acredito nessa coisa da banda, do grupo. Eu acho que é assim que funcionam as coisas. E pensando agora na MPB, nos grandes nomes, nas grandes divas… Eu não sou dessa cultura. Não me bate. Quanto mais eu vou para uma coisa pessoal, autorreferente, autobiográfica, parece que cada vez mais vai perdendo o sentido pra mim.

Engraçado. Nesse sentido, você é o anti-Nando Reis, que é o cara mais autobiográfico dos Titãs. Exato. Ele e todos os meus ídolos. O Caetano... São todas músicas que canto no chuveiro depois. Acho fantástico. Mas meu primeiro movimento é o contrário disso. Sinto que a coisa vai se perdendo se eu mergulhar demais nessa autorreferência.

É comum dizerem que, com o passar dos anos, a pessoa amadurece, se individualiza. Por isso que banda de rock é coisa de moleque [risos]. Acho que isso acontece. Quando a gente estourou eu era ofrontman. “Como a gente vai fazer para mostrar pras pessoas que a gente é uma banda tão complexa?” Essa sempre foi a questão, porque tem quatro, cinco cantores. Cada um tem sua personalidade. A luta foi para as pessoas perceberem as individualidades. Não só o jeitão de cada um, mas o traço, a personalidade, o que cada um compôs, qual foi a contribuição de cada um.

Seu segundo disco tem um título engraçado: Vou ser feliz e já volto. Tem uma história, que você deve ter ouvido mil vezes, de que “pô, o Titãs deve estar chato porque o Paulo foi ser feliz solo e já volta”. Mas não era só o Titãs, não. Era a vida mesmo.

 

"O Nasi dizia: A gente era do underground do rock'n'roll, vocês eram o último grito do tropicalismo"

 

A vida? Conta aí. É um disco escapista. É justamente a brincadeira da tabuleta “Volto já”. Era um pouco isso, de estar muito imerso na coisa do tédio, do cotidiano, da mesmice. Eu talvez estivesse no auge do momento de estar escapando de tudo e usando todos os artifícios possíveis para estar vivendo uma realidade paralela, explorando as portas da percepção escancaradas.

É, você estava loirão, loucão. Fiz tudo isso. Cheguei em NY para masterizar o disco com o Dudu Marote, meu produtor. Comprei uma camisa e resolvi entrar num cabeleireiro no Soho. Aí estava a Björk do meu lado. Sentei, olhei e pensei: “Estou no lugar certo!”. Sei que a mulher fez uma coisa e eu fiquei com cabelo cenoura. Fui pro hotel, olhei e falei: “Acho que não deu certo”. Não era isso que eu queria. Queria ficar como o Billy Idol, aquela coisa platinada.

Você falou de “explorar as portas da percepção”. Imagino que esteja se referindo a drogas, mas eu achava que o Paulo Miklos doidão foi o dos anos 80... Eu costumava brincar com isso. A mais longa adolescência de que se tem notícia é a minha [risos].

Isso foi por volta de 2001. Foi por alguma coisa que bateu essa adolescência tardia? Acho que foi o abuso de substâncias. Acho que tem um momento que ou você sai ou não sai. Ou recai. Ou fica tentando sair, patinando. Eu saí, mas demorou.

Essa época foi o auge da adolescência, por assim dizer? Talvez não tenha sido o auge, mas era um momento em que isso ainda estava ecoando. Inclusive porque esse disco foi feito logo antes da minha participação em O invasor, minha primeira participação no cinema. Foi uma coisa que mexeu muito comigo. Você tem que estar muito atento. É o avesso da experiência de estar vivendo a música. Na música, quanto mais doidão melhor!

Você já sabe como funciona, né? As pes­soas esperam isso! Também tem uma expectativa em relação a você ser aquele clichê ambulante do roqueiro doidão. Na verdade, a experiência com drogas, de excesso, está no sofrimento. Na depressão. Muito mais nisso do que em qualquer coisa.

Mas no começo elas deram uma iluminação? Sim. É uma prática social também, assim como o álcool. O álcool foi a primeira coisa que eu tive de me livrar para poder voltar e ter controle da minha vida. Ele é o grande vilão para uma pessoa como eu, que se percebe com um problema de abuso e limite. Hoje eu não bebo. Antes eu brincava: “Só bebo a trabalho”. E era todo santo dia.

Você chegou a ter depressão mesmo, ir ao psiquiatra? Lógico. Então eu parti pras drogas lícitas, terapêuticas, que também são drogas. Até que chegou o momento que eu afastei todas. Foi ótimo.

Sem remédio não dava? Com certeza não. Chegou uma hora em que eu tava tão determinado, tinha tanta consciência, que falei: “Vou lançar mão de todas as coisas que eu tiver a meu favor”. Depois, pra me livrar do cigarro, outro vilão, foi a mesma coisa. Perdi minha mãe e minha esposa com o cigarro... E eu não era pouco fumante. Fumava um maço e meio por dia!

 

"O álcool foi a primeira coisa que eu tive de me livrar para poder voltar e ter controle da minha vida"

 

Você resolveu parar de fumar por causa da sua mãe? Não, eu já queria parar havia algum tempo. Porque, pra cantor, tocando instrumentos de sopro e tal, é um atentado.

Você se voltou para alguma religião, alguma crença nesse momento? Não acredito muito nessas coisas. Tenho muita inveja, uma inveja boa, das pessoas que acreditam, que encontram força, calma pra alma, em uma explicação que elas realmente acreditam. Mas isso não faz parte de mim. Sou misto de um casamento de católica com judeu. Fui pro candomblé, tenho essa aproximação cultural com a religiosidade, com todas elas. Acho fantástico. 

Biografias. Autorizadas e não autorizadas. Qual sua posição nesse bafafá? Fiquei um pouco surpreso. Tá fora de foco a conversa. Porque, se a lei é frouxa, se você não tem instrumentos pra se defender no caso de você ser realmente atacado, a gente deve focar nisso. A quem interessaria esconder os fatos, eu me pergunto. Obviamente, interessa a quem quer esconder coisas. Acho que você pode se preservar de dizer coisas da sua vida. Mas acho exagerado defender a aprovação prévia, porque sem o meu aval você não vai poder dizer nada. Aliás, depois quero ver essa entrevista, hein?!

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