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por Millos Kaiser
Trip #223

A vida e os segredos dos filhos coloridos da cidade cinza: ’Desde os cinco anos a gente sabia que nossa missão na Terra era desenhar’

Otávio e Gustavo Pandolfo parecem a mesma pessoa dividida em dois corpos. Até o desenho é igual. Sempre foi, desde antes de virarem OSGEMEOS e ganharem o mundo com sua arte. Para eles, é tudo uma questão espiritual: “desde os cinco anos a gente sabia que nossa missão na terra era desenhar”

"O grafite de uma cidade diz muito sobre ela.”

Otávio e Gustavo Pandolfo escutaram essa frase anos atrás do amigo e grafiteiro John Howard. Seguindo o raciocínio, São Paulo seria uma cidade repleta de seres amarelos com roupas estampadas, às vezes com balaclavas escondendo o rosto e bolsas a tiracolo. Haveria também muita cor, detalhes e texturas na paisagem. A maior metrópole do Brasil seria lúdica como os sonhos mais loucos de uma criança, como um grande painel d’OSGEMEOS. Seria, caso a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano da prefeitura não tivesse o hábito de, sistematicamente, passar uma tinta cinza por cima detudo isso.

O último grafite que a dupla fez, à luz das manifestações populares recentes que tomaram o país, não durou nem dois dias. “Na gestão anterior, fomos na prefeitura conversar. Mas não adiantou. O nosso recado tá dado. Vamos continuar falando o que temos para falar”, diz Gustavo. Falar, aliás, no caso dos dois, é sinônimo de desenhar. É com o traço, e não com as palavras, que os dois se comunicam com os familiares, com o mundo e um com o outro. Durante as quase 5 horas de papo com a Trip, os irmãos Pandolfo não soltaram a caneta e o pincel em quase nenhum momento.

Apesar de os governantes da cidade, ao que parece, não serem exatamente fãs de seu trabalho, a dupla continua passando boa parte do tempo em São Paulo. Mais exatamente no Cambuci, bairro coalhado de velhos galpões e sobrados onde Otávio e Gustavo são mais conhecidos como Tico e Teco. Lá fica o ateliê da dupla, a poucos metros da casa onde nasceram 39 anos atrás e em que foram criados pela dona de casa Margarida Kanciukaitis e pelo químico Walter Pandolfo . E também de onde viram, pela primeira vez na vida, uma turma dançar break, escutar hip-hop e fazer grafite.

Antes de ganhar a vida – e o mundo – com esta última atividade, os irmãos mergulharam de cabeça nas outras duas. Trocaram os passos de Michael Jackson, que sabiam de cor, pela “dança do robôzinho” e rimavam nos bailes, dando uma de Beastie Boys dos trópicos. Não tardou, descobriram a estação São Bento, onde a tríade break-hip-hop-grafite primeiro se manifestou no Brasil.

Foi quando Tico e Teco viraram OSGEMEOS, batizados por DJ Hum nos agradecimentos do primeiro álbum de rap nacional, Hip-hop – Cultura de rua (1988). Nem ele nem ninguém imaginava que décadas mais tarde aqueles “alemãozinhos” pintariam a fachada da Tate Modern, em Londres, a mansão de Johnny Depp, em Los Angeles, e o porco inflável dos shows de Roger Waters. Ou que montariam exposições disputadíssimas por todo o globo, assinariam linhas de lenços para a Louis Vuitton e tênis para a Nike (os lucros foram todos doados, eles dizem), e que valeriam altas cifras no mercado de arte, com quadros cotados em até US$ 200 mil.

Mas nada disso parece interessar muito aos dois gêmeos idênticos, irmãos de Adriana e Geraldo. São consequências, e eles sempre estiveram mais ligados na causa. Quando estavam em seus 20 e poucos, Otávio e Gustavo se enfurnaram no quarto e só saíram de lá quando descobriram por que e o que queriam desenhar. A resposta estava em Tritrez, um universo criado (ou acessado?) pelos dois, onde tudo que pintam no nosso mundo existe de fato. À prova de qualquer tinta cinza.

Vocês nasceram e cresceram no bairro do Cambuci? Otávio: Isso. Nesta mesma rua, algumas casas pra cima.

E hoje moram onde? O: Não moramos mais no Cambuci, é tudo que podemos falar.

Como foi crescer lá? O: O Cambuci era um bairro residencial, mas ao mesmo tempo industrial. No fim de tarde, as tiazinhas ficavam na porta de casa vendo a vida passar, ia todo mundo pra rua bater papo. Havia muitas gráficas também. Gustavo: A rua era nosso melhor brinquedo. A gente vivia fora de casa. Fazia fliperama com elástico e madeira, jogava bola, soltava pipa. O: A gente aprendeu tudo na rua. Era nossa escola. Aprendeu a respeitar. Você vê uma parede, quer pintar, mas às vezes tem um cara que mora lá. Você tem que ir trocar ideia, não dá pra chegar chegando.

 

"A gente nem troca muita ideia. Tá longe, mas tá perto. Sempre sabe o que o outro tá sentindo"

 

E na escola de verdade, como era? O: Sempre estudamos em escolas públicas. Eram todas muito boas, as mesmas onde nossa mãe estudou. Tinha até aula de francês! Cantávamos o hino todo dia. G: Engraçado que outros artistas saíram de lá, como Speto, Nina Pandolfo [esposa do Otávio], Onesto... Ficava todo mundo desenhando o tempo todo. A gente levava fotos dos grafites que fazia na rua para o professor dar nota. A linha do trem passava bem em frente à escola. Era demais: pela janela, a gente via passar os trens que a gente tinha grafitado no dia anterior.

Vocês eram bons alunos? O: A gente desenhava a aula toda. Repetimos alguns anos, mas era só por causa disso. Quando a gente tinha que estudar, estudava. Teve uma vez que um repetiu só para poder ficar com o outro, que tinha repetido. G: É! Tentavam separar a gente em salas diferentes. Teve um concurso de desenho na escola uma vez. O prêmio era uma passagem para Brasília. Foi louco: os dois ganharam, um em cada sala, com o mesmo desenho. Eu não estava vendo o que meu irmão estava desenhando, mas fizemos exatamente a mesma coisa.

O traço de vocês sempre foi parecido, então? O: É o mesmo desenho.

Vocês são daqueles gêmeos grudados? Já ficaram longe um do outro? O: Nunca. Mesmo longe, estamos perto. Sabemos o que o outro está sentindo sem nem perguntar.

Já brigaram? O: Também não. A gente nem troca muita ideia, na verdade. A gente se entende sem precisar falar.

Quanto tempo já ficaram sem se ver? G: Nunca. A gente tá longe, mas tá perto. Sempre sabe o que o outro está sentindo.

Havia alguém na família que desenhava também? O: O tio da nossa mãe, Nicanor Ferracciu, pintava bem pra cacete. Paisagens, queimadas... A mãe fazia aula com ele. O Arnaldo, nosso irmão mais velho, também sempre desenhou, inventava brinquedos. Foi o cara que segurou nossa onda, ensinou as coisas da vida. G: Na real, não sabemos muito bem por que desenhamos. Acho que é uma coisa que veio de antes de a gente nascer, meio espiritual. Nossos pais contam umas histórias e a gente vai tentando montar esse quebra-cabeça. Mas não conseguimos completá-lo ainda.

Como assim, espiritual? O: Nascemos prematuros, de sete meses. Nossa mãe só foi descobrir que estava grávida de gêmeos na hora do parto. Foi um erro médico. O doutor disse que a gente ia morrer. “Se eles vão morrer, que seja nos meus braços, na minha casa”, ela disse. G: Ela conta que quando a gente tinha 5 anos já dizia que nossa missão aqui na Terra era desenhar. E é louco, porque tem coisa que a gente faz hoje, em termos de desenho e escultura, que a gente já fazia nessa época. O: Todo mundo sabia que nosso tesão era desenhar. A gente nem trocava ideia um com o outro. Só desenhava e ficava narrando o que estava acontecendo ali no papel. Tudo tinha uma narrativa. G: A gente modificava todos os brinquedos que ganhava. Esquentava a faca no fogão e cortava tudo. Pegava caixa de sapato e fazia prédio, casinha, construía uma cidade inteira na sala de casa. Os bolos do nosso aniversário também eram muito importantes. A gente discutia o tema com nossos pais e fazia tudo junto com eles. Tinha bombeiro apagando fogo, carros, gente na rua, tudo. Quase uma maquete.

 

"Na escola, ficava todo mundo desenhando o tempo todo. A gente levava fotos dos grafites que fazia para o professor dar nota"

 

O que dessa época, exatamente, ficou no trabalho atual de vocês? O: Cara, os anos 80 eram uma época com muitos detalhes. As roupas, os aparelhos de televisão, tudo tinha muita coisa. Essa quantidade enorme de informação influenciou muito a gente. Nosso trabalho tem muito detalhe. A gente tem vontade de dizer um monte de coisa e tenta colocar tudo ali.

Como o grafite entrou na vida de vocês? G: Quando conhecemos a cultura hip-hop, por volta de 85. Pouca gente sabe disso, mas ela era bem forte no Cambuci. Tinha a turma do Fantastic Break, os primeiros caras que vimos fazendo grafite e dançando break. O que pegava antes era dançar igual ao Michael Jackson. Aí, depois, a onda era a dança do robozinho, o break. Começamos a treinar sem parar. Ficamos bons, fazíamos até apresentação nas festinhas de aniversário. E começamos a fazer uns raps também. O: Saíram os filmes Beat Street e Breakin [ambos são de 1984], que falavam sobre esse universo, sobre o que estava rolando em Nova York e em outros centros do mundo. Fomos assistir aos dois em um cinema no centrão. Mano, foi uma injeção de informação aquilo. Vimos as roupas, o som, tudo. Todo mundo pirou. Queria se vestir igual aos caras, usar tênis Nike, Puma...

Mas vocês tinham grana pra isso? O: Nada. Nossa avó era costureira. A gente comprava o tecido e falava para ela fazer um agasalho, por exemplo. Ou fazia rolo com gente que tinha acabado de voltar de fora. G: A gente chegava a bordar o símbolo da Nike nos tênis!

Quando rolou o primeiro spray, o primeiro grafite, mesmo? O: Depois que vimos o pessoal usando no bairro, imploramos pra nossa mãe comprar uma lata pra gente. Mudou nossa vida. Pintamos nosso quarto, depois o jardim, depois o telhado, depois os telhados dos vizinhos. A gente teve essa preocupação de aprender o negócio antes de ir pra rua mesmo.

Era uma mãe moderna, não? Dar um spray para uma criança naquela época não devia ser comum... O: Grafite era uma coisa muito nova, não tinha nem essa conotação de vandalismo ainda. Eu lembro que a gente andava horas na linha do trem só pra ver um grafite. Chegava lá, tirava foto e depois ainda ficava dias admirando a fotografia.

Os tempos eram outros... G: Completamente. A gente ia na biblioteca municipal e folheava um monte de livro e revista só para ver uma foto de grafite, que muitas vezes aparecia só no fundo da foto. Quando alguém descolava uma revista especializada, ficava todo mundo meses mergulhado naquilo, analisando cada detalhe.

Vocês lembram qual foi o primeiro desenho que fizeram na rua? O: Acho que escrevemos “crime” e fizemos um personagem. Isso foi só uns dois, três anos depois que ganhamos nossa primeira lata. Lá por 86, 87.

E a estação São Bento (berço do hip-hop em São Paulo), vocês frequentavam? O: Porra, a São Bento era indescritível! Um lugar mágico. De longe, você já escutava o som. O coração disparava, os pelos arrepiavam. Nosso pai que levava a gente lá, quase todo fim de semana. A gente tinha 14 anos, o resto do pessoal tinha 20. G: Era uma realidade paralela, o tempo corria diferente. Tinha a coisa de você respeitar, mas ser respeitado também. Ter humildade, mas saber chegar. E nós éramos uns alemãozinhos no meio de um monte de negão. Mas a gente chegou no estilo, com as jaquetas já grafitadas, já sabendo uns passos de break. A galera recebeu bem. O primeiro cara que conhecemos foi o Thaíde [rapper e apresentador de TV]O: Foi aí que começou essa coisa de pintar na rua aos domingos. De dia mesmo. Isso foi muito importante para a cena do grafite brasileiro. Até hoje domingo é o dia do grafite.

E a polícia não ligava? G: Ligava muito! Era repressão total, estávamos na ditadura ainda. Todo mundo morria de medo da polícia. Você tinha que sempre ter RG no bolso, se não, ia pra delegacia. Hoje é diferente. O cara te aborda e, se bobear, vai pedir para você pintar a viatura dele.

Vocês viviam então de rap, break e grafite, basicamente... O: Não só. A gente trabalhava desde os 14 anos. Primeiro numa funilaria, onde era ótimo para conseguir tinta. Depois numa fábrica, lavando picles, numa locadora... Chegamos a ser boys em um banco. Mas não tínhamos futuro nenhum ali, era claro. Isso de trabalhar com outras coisas só nos deu mais certeza de que o que queríamos mesmo era desenhar. Chegou uma hora que não dava mais para fazer outra coisa que não fosse isso. Pedimos demissão e resolvemos que íamos tentar viver da nossa arte. Aí começou, talvez, o período mais especial da nossa vida. Ficamos praticamente trancados na casa da mãe, pintando sem parar por uns três anos. Aprendemos a usar aerografia, aquarela, tinta a óleo... Fomos atrás do nosso estilo. Encontrá-lo era o que mais queríamos na vida. Varávamos a noite ouvindo Afrika Bambaata, Led Zepellin e Pink Floyd, tomando vinho e pintando à luz de velas. G: Era tipo uma meditação.

Por que à luz de velas? O: Porque tudo que pudesse desviar nossa atenção, nós descartávamos. Vinha visita lá em casa e a gente nem dava oi. Descia só pra comer, às vezes nem isso. A gente queria saber por que a gente preferia desenhar a qualquer outra coisa. A gente escrevia muito nessa época, tipo um diário. Escrevia sobre o nosso desenho, para poder encontrar ele. Até que se abriu uma janela. E nós vimos tudo.

Parece a descrição de uma revelação divina. G: E foi. Cada dia a gente via mais um pouco desse mundo. Era só fechar o olho, parecia um filme. Uma coisa espiritual mesmo. Um dia a gente resolvia como seria o nariz dos nossos personagens, no outro, a perna. Foi indo.

É esse mundo que vocês chamam de Tritrez? O que significa esse nome? G: Começamos a estudar nossa vida, e muita coisa tinha a ver com os números três e 32. Não vou te contar mais nada porque isso é uma coisa muito íntima nossa. É algo muito complexo, de onde vem tudo o que a gente faz. Na real, só de ter descoberto esse universo já estava ótimo. Resolvemos desenhar para dividir ele com as outras pessoas.

Outras pessoas podem acessar Tritrez? G: Cada um tem o seu próprio Tritrez. Mas muitos não têm coragem de mexer nele. É um abismo, dá medo mesmo. Nós temos medo até hoje. É difícil se jogar. Demanda desgaste físico e mental, criação, recriação...

E por que os seres que vivem lá são amarelos? O: São Paulo é muito cinza. Mas a gente não queria, não conseguia ver a cidade desse jeito. O amarelo veio dessa época em que a gente estudava na casa da mãe. A gente gostava de desenhar principalmente no fim da tarde, quando o céu ficava laranja. O amarelo é uma tentativa de reproduzir essa luz que entrava pela janela. G: Desmembramos o laranja em amarelo e vermelho, que também é muito presente no nosso trabalho. O contorno dos nossos desenhos não é preto, é vermelho bem escuro.

De certa forma, Tritrez parece ser outro nome para inspiração, talvez até para Deus. Vocês acreditam nele? G: Acreditamos nesse nosso universo. Acreditamos em Deus também. Mas não seguimos nenhuma religião.

Quando o trabalho autoral começou a dar grana? O: Antes, passamos a pintar fachada de loja de skate, fazer ilustração para uma revista. Mas era osso. Cada trampo que rolava era uma festa, nossa mãe ia lá ver toda orgulhosa. G: Nosso trabalho autoral mesmo começou a ser mais reconhecido quando um grafiteiro americano que a gente amava, o Barry Mcgee, veio para São Paulo fazer uma residência artística. Ele viu um grafite nosso na rua, gostou e ligou pra gente. Na época a gente botava o telefone nos desenhos [risos]! Foi nosso primeiro contato com um grafiteiro de fora. Piramos. O: Daí o Barry falou do grafite brasileiro para um amigo que tinha uma revista gringa superimportante sobre arte de rua. A revista veio até São Paulo fazer uma matéria, passou um tempo na nossa casa. Depois, outro artista alemão, o Loomit, veio também. Curtiu nosso trampo e nos chamou para expor em Munique, na Alemanha. Isso era 1999, mais ou menos.

 

"No começo, todo mundo morria de medo da polícia. Hoje é diferente. O cara te aborda e, se bobear, vai pedir para você pintar a viatura dele"

 

A porta das galerias se abriu antes lá fora, então? O: Pois é. Em 2000, engatamos outra exposição em San Francisco, na Califórnia, numa galeria que lançou um monte de nomes foda da artes. Depois rolou outra em Nova York, na Deitch Gallery. Entre 2000 e 2005, fizemos muitas exposições e projetos fora do Brasil. G: Engraçado que, no começo dessas viagens, a gente se preocupava muito em fazer nosso trabalho exatamente do jeito que fazíamos no Brasil. A gente levava lata de Colorgin no avião [risos]! Chegamos lá e nos deparamos com lojas só de tinta, spray de tudo quanto é cor, escola de grafite... um outro mundo. Ninguém entendia como a gente podia usar nossos sprays, diziam que a tinta era muito aguada. E não entendiam também como a gente usava tinta látex em grafite. Pra gente, fazia todo o sentido: era mais barata e secava mais rápido.

Batia um desapontamento por ter bombado primeiro fora do Brasil? O: Não. A gente pensava: “Se neguinho não viu a gente, não viu. Paciência”. Nos preocupávamos mais em trabalhar com o mercado que se abriu pra gente. Até que a Márcia Fortes, sócia-diretora da galeria Fortes Vilaça, ficou sabendo da gente e nos chamou pra fazer a primeira exposição no Brasil.

Vocês separam o trabalho que fazem na rua e nas galerias? O: Completamente. Grafite é ilegal, é pintar sem perguntar nada para ninguém. O universo da arte contemporânea é outra coisa, não dá pra misturar. G: Usamos técnicas semelhantes nos dois, mas não chamamos de grafite o que fazemos nas galerias.

O picho então também não pede permissão para nada. A diferença para o grafite é apenas estética? O: Desculpe, mas não falamos sobre picho.

Vocês acham que a arte contemporânea abraça os artistas que vêm da rua? G: Não sei se existe preconceito na arte contemporânea. Mas vejo cada vez mais artistas que vieram das ruas indo para as galerias.

Na visão de vocês, como está o grafite brasileiro atualmente? O: Tem e sempre teve muita gente boa. Aqui temos uma vantagem de poder ir na rua num domingo e pintar na cara de todo mundo. Se você faz isso em Nova York é preso em 2 minutos.

Suas exposições costumam agradar a pessoas com idades e backgrounds completamente distintos. Por quê? O: Nossa arte é muito simples. Não tem explicação, conceito. Na real, tem muito. Se quiser, a gente escreve um livro para cada tela que a gente pinta. Mas não precisa. Queremos mexer com o imaginário das crianças, dos senhores de idade, de todo mundo. A gente quer que a pessoa sinta antes de entender. G: Essa coisa de exposição é muito louca pra gente. Ainda é. Abrimos portas que pareciam que sempre estariam fechadas pra gente. Ver o número de pessoas que vai ver o que a gente faz é muito forte. É uma quantidade de público que não existe muito na arte contemporânea. De repente, mostramos pra um moleque que está começando na rua que há um mercado pra ele, que ele pode viver com o trampo dele.

Falemos de São Paulo. Qual a leitura que vocês fazem da cidade hoje? G: Uma das coisas mais legais daqui é que não tem praia. Faz a gente pegar outros tipos de onda. E aprender a surfar nelas, todo dia. O: Cara, acho que São Paulo piorou. Está mais violenta do que nunca. Os políticos estão mais corruptos, roubando mais descaradamente.

Essa onda de manifestações pelo país não deixa vocês mais otimistas? O: Quem foi às manifestações entende a força e seus significados. Cansamos de ver o mundo inteiro se mobilizando, enquanto nós brasileiros aceitávamos tudo de cabeça baixa. Estávamos acostumados a sermos enganados e excluídos das decisões que regem a sociedade brasileira, e é por isso que a coisa foi tão longe. Os 20 centavos foram apenas o estopim para acordarmos de um grande pesadelo.

 

"Uma das coisas mais legais de São Paulo é que não tem praia. Faz a gente pegar outros tipos de onda"

 

Será que essa mudança não começaria justamente por São Paulo, a maior metrópole brasileira? G: Acho que sim. A cidade vai ficar insuportável e algo de novo pode surgir disso. O caos já está instalado. Aliás, foi por isso que resolvemos pintar: para abrir uma janela para fora dele.

Vocês vivem numa queda de braço com a prefeitura, que costuma apagar grafites de vocês dos muros da cidade. G: Cara, nem temos muito o que falar sobre isso. Chegamos a ir lá falar com eles na gestão do Kassab, mas continuaram apagando nossas coisas. Nosso recado já foi dado. Vamos continuar fazendo. Não vamos deixar de falar o que queremos falar. Isso é certo. Só não entendo como eles podem se preocupar com grafite com tantos outros problemas por aí. Eles vão lá e passam a tinta cinza, paga pela própria população.

Drogas. Usam? Defendem? Condenam? G: A gente adora dormir e sonhar. Nosso trabalho depende dos sonhos que temos, eles nos inspiram. Se você não está bem, não está no controle, não sonha. Por isso não usamos nada, apenas bebemos socialmente.

Quais são os planos para o futuro? G: Queremos experimentar muitas coisas ainda. Quem sabe fazer roupas. Já desenhamos tantas... Se você reparar, cada boneco nosso tem uma roupa diferente. Nunca repetimos nenhuma. Já somos estilistas, de certa forma. O: Esse universo nosso é tão real que pode virar filme, musical, peça de teatro, performance, música. Nossa única preocupação é fazer bem-feito e não passar por cima de ninguém. Somos muito caprichosos. Queremos fazer o melhor que podemos.

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