por Juliana Cunha
Trip #244

Trip acompanha uma reunião dos Devedores Anônimos, em São Paulo, e investiga o lado obscuro de um mundo que nos impele a consumir sem limites, cada vez mais

A paróquia onde acontecem os encontros dos Devedores Anônimos abriga reuniões dos Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos, Mulheres Que Amam Demais Anônimas e de outros cinco grupos para compulsivos. Na porta do prédio, pouco antes das reuniões — várias delas acontecem no mesmo horário —, alguns rapazes fumam, uma senhora gesticula ao telefone. Aos poucos, eles sobem as escadas e entram em uma das salas, fechando a porta atrás de si.

O anonimato é a base de trabalho desses grupos. Criar um ambiente seguro de troca foi a forma que os compulsivos encontraram para lidar com a vergonha de perder o limite em áreas em que outros parecem transitar sem grandes complicações. Vergonha e orgulho estão na base do relacionamento dos compradores compulsivos com o dinheiro. Um dos motivos mais frequentes para contrair dívidas é tentar manter um padrão de vida fictício ou ceder com frequência ao prazer das compras — que, para os compulsivos, é um prazer da experiência de compra, antes de ser um prazer da posse.

"A sensação de entrar na loja e ser bem tratado, o ritual", descreve Renata, 40 anos, relatando um lapso da semana anterior, quando uma discussão com o namorado rendeu uma gastança de R$ 600 numa loja de sapatos. "No fundo... é possível que eu tenha criado a briga para justificar o descontrole", diz ela ao fim de seus cronometrados 2 minutos de fala.

A vergonha de ser abordado por credores ou incluído em cadastros de devedores costuma ser o gatilho para pedir ajuda. "Vim para os Devedores quando, num jantar de família, os parentes foram aos poucos descobrindo que eu devia para todos, quando cada um deles pensava que era o único", conta Rafael, 32. Uma pesquisa do portal de educação financeira Meu Bolso Feliz revela que oito em cada dez pessoas já foram cobradas por credores. A pesquisa mostrou que a taxa de sucesso das cobranças é alta: 56% dos cobrados quitaram suas dívidas após o contato.

Durante as reuniões do grupo, quando um membro fala, os outros apenas ouvem e agradecem. Conselhos, incentivos e críticas são desestimulados. "A proposta é aprender com o que se fala e com o que se ouve, retirar o automatismo dos gastos, ter empatia pelo outro e, a partir disso, perdoar as próprias falhas, repensar posturas", diz uma coordenadora do grupo (ex-devedora também). Em tempo: nos grupos, não existe alta, e os frequentadores mais antigos se apresentam como devedores em reabilitação.

"Ninguém na minha casa sabia o valor do dinheiro"
Quase quatro em cada dez brasileiros estão endividados. No país, são 55,6 milhões de adultos impedidos de obter crédito, com o chamado "nome sujo" na praça.

A inadimplência cresceu 15,8% no primeiro trimestre de 2015, em comparação com o início de 2014, segundo levantamento da Serasa Experian feito em março. Somadas, as dívidas dos brasileiros chegam a R$ 235 bilhões. Essas, claro, são apenas as dívidas formais, contraídas em bancos ou com o não pagamento de contas. Há ainda as dívidas familiares, como as de Rafael.

Inês, 29, é secretária executiva por acidente. Enquanto estudava administração e antes disso até, na infância, o discurso do pai era de que "essa menina vai trabalhar se quiser, vai ter de tudo". Até seus 25 anos, foi exatamente assim, até que o pai — empresário do ramo de tapetes — quebrou, levando consigo a mulher e três filhas. "Ninguém na minha casa sabia o valor do dinheiro, até hoje não sabemos", diz ela, que frequenta o Devedores Anônimos há dois anos.

O valor real do dinheiro, viver na realidade, sair da fantasia, abandonar um padrão fictício. A ideia de uma falta de lastro e de que não sabem discernir realidade e ficção aparece na maior parte dos depoimentos. A tentativa é a de transformar o impulso de consumir em um impulso de economizar. Os membros do Devedores Anônimos anotam seus gastos em caderninhos e são levados a refletir sobre a necessidade de cada pequena compra, do chocolate na padaria ao cachecol da loja de departamentos. Nos materiais do grupo, o moralismo é palpável (é possível encontrar trechos como: "Quantas vezes não simulamos uma paixão apenas para dar vazão a nossa luxúria?"). O autocontrole exercido com o dinheiro deve migrar para a vida sexual, para a relação com drogas. "A pessoa que tem uma compulsão obviamente é dada a outras, então tentamos passar uma noção de justa medida", explica uma coordenadora.

Uma das medidas do grupo para ajudar os membros a superar suas dívidas são as "reuniões de alívio de pressão", onde o frequentador escolhe outros dois membros que possam ajudá-lo a traçar um plano de gastos ou de pagamentos de dívidas a procurar emprego ou organizar seu esquema de trabalho. Também é possível recorrer ao apadrinhamento, que é quando um membro mais antigo dá suporte individual a um mais novo. Uma vez ao mês, há uma reunião de "serviços e negócios", que trata de educação financeira. Esses são os únicos espaços abertos a palpites nas contas alheias.

Sandália prateada
A primeira dívida de Claudia, 31, foi com uma colega de escola, aos 10 anos. "Lembro bem porque era período de inflação, o dinheiro não tinha um valor fixo. Fico pensando se isso não ajudou a impulsionar meu problema, essa coisa de que o dinheiro era uma coisa abstrata, cada dia aquele bolo de notas significava uma coisa", diz. Hoje ela deve R$ 60 mil, metade disso à irmã. Já deveu R$ 72 mil.

Uma semana antes da retenção das poupanças, durante o governo Collor, a mãe de Cláudia tirou da aplicação todo o dinheiro que a família havia guardado. "Houve uma infestação de cupins, mas não foi só isso, minha mãe realmente cometeu uma extravagância, e uma semana depois aquela extravagância foi coroada como uma grande esperteza, como uma benção", lembra.

O livro de consulta do grupo diz que é preciso reconhecer o que ainda não podemos abrir mão, mas jamais dizer: "A isso não renunciarei". Claudia ainda não pode renunciar à dança. "Mas você acha que eu queria dançar nessas academias de R$ 100? Eu chego nesses lugares e eu dou baile. Gafieira? Posso dar aula. Samba, nem comece. Só no tango eu ainda preciso de prática. Gostava mesmo era de voltar às escolas que eu frequentava, aquelas de R$ 500. Mas tem como? Quinhentos reais. E depois tem as saídas, o chope depois da dança, as mulheres que vão com aquelas sandálias prateadas que me deixam babando", conta, se movendo na cadeira a cada sílaba. Hoje o projeto de Claudia é começar a dar aulas para complementar a renda de funcionária pública. Quer ressarcir a irmã e comprar uma sandália prateada.

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