A pororoca dos Marajás

por Serginho Laus
Trip #244

Em meio a oferendas a centenas de divindades, a um intenso caos urbano e a cadáveres boiando pelos rios, o maior especialista em surf de maré do mundo revela um tesouro digno do mais abastado dos homens de Shiva: a baan

Em pleno século 21, ainda existem ondas perfeitas quebrando sozinhas, sem nenhuma prancha por perto. E não estão (apenas) em lugares desertos, isolados, com água clara, areia branca e fundo de coral. O cenário pode ser completamente oposto – o que nos faz pensar (e crer) que nós, surfistas, vivemos em busca de explorar cada vez mais novos caminhos na intensa caça da onda dos sonhos.

Essa história começou há 15 anos quando fui para a Amazônia investigar a tão temida quanto desconhecida onda da pororoca, nome da onda de maré brasileira (tidal bore), que significa "destruidor, grande estrondo" na língua indígena. Esse fenômeno me impressionou: como era possível uma onda tão perfeita e longa (adentrando o rio por mais de 1 hora de duração) num ambiente daqueles, selvagem e desafiador? Ali, descobri um universo até então desconhecido para mim (e um novo momento na minha vida de surfista profissional tinha início), a do surf de maré. 

Maré do século
O surf nas ondas de marés começou na Inglaterra há mais de 50 anos. A prática acontece sempre nos períodos de lua cheia e nova, quando temos uma ação gravitacional da Lua e do Sol maior na Terra (quando a Terra e a Lua estão alinhadas com o Sol). É um fenômeno que pode ser visto apenas em alguns rios do mundo, aqueles com relevo apropriado e grande variação de marés. A tarefa exige muito conhecimento não somente como surfista, mas também na arte de entender o movimento dos astros e da natureza. Até o momento em que escrevo este texto, acumulei mais de 120 expedições na Amazônia, três na China e outras tantas em lugares como França, Inglaterra, Indonésia e Alasca.

Após 15 anos de aprendizado, a Índia seria meu próximo alvo. Nos estudos e registros bibliográficos, sabíamos que existia uma onda de maré no segundo país mais populoso do mundo. Mas não tínhamos nenhuma referência de imagem, nada. Nesse momento entrou em cena um outro surfista de maré e explorador de novas ondas: o francês Antony "Yep" Colas. Yep decidiu olhar de perto o rio Hooghly, na cidade de Calcutá, e ver se um dos afluentes do rio Ganges poderia formar uma onda de maré surfável. Em 2014, o ato foi consumado por Yep junto com o francês Gaetan Sene e o inglês Steve Hunt, outros experientes surfistas de maré. Ao ver a onda de maré indiana, Yep disse: "Essa onda é muito rápida. Uma mistura de Brasil, Indonésia e China. Os canais são fundos, trata-se de uma onda bastante volumosa".

Essa notícia me deixou empolgado. Queria organizar uma jornada em busca dessa onda perfeita. E tudo parecia estar conspirando a favor. Em março, um alinhamento perfeito dos astros geraria a maré do século. A lua nova teve as forças extras de uma superlua (fenômeno em que a Lua fica mais próxima da Terra, aumentando a ação gravitacional em nosso planeta), de um eclipse solar e do equinócio (alinhamento de Sol, Terra e Lua, quando o dia tem a mesma duração da noite). Com esses fatores, praticamente todas as ondas de marés do mundo ficariam intensas, sobretudo a baan, como é chamada a onda de maré da Índia. Ela estaria com força e volumes fortes, ideais. 

Cascatas de esgoto
Prevendo condições extremas, reuni surfistas com certa experiência no assunto e uma equipe multimídia para encarar e encontrar novas ondas no rio Hooghly. Antony "Yep" Colas tinha que fazer parte desse time, pois era quem conhecia o local. Também foram convocados Masatoshi Ohno, surfista de alma, e o brasileiro surfista de ondas grandes Everaldo "Pato" Teixeira, meu parceiro para as condições mais extremas, que poucas pessoas topariam encarar.

Como a correnteza do rio Hooghly é muito forte, lanchas com motor 40 HP não teriam velocidade suficiente para fugir da onda com uma tripulação a bordo. Em Calcutá, não há embarcações apropriadas para essa operação, o que obrigou nossa equipe a ir rumo a Mandarmari, no litoral indiano, à procura de lanchas e jet skis com especificações seguras para executar a operação. Lá, conseguimos os equipamentos. Com o auxílio do nosso amigo e guia local Sanjeev, planejamos uma operação de guerra para transportar duas lanchas e um jet ski para a nossa cidade-base, Calcutá.

Durante o primeiro mapeamento daquelas águas, nossa primeira provação foi encarar um rio totalmente poluído, com cascatas de esgoto e muito lixo. Ficamos assustados com imensa pobreza e chocados com as condições daquele local. Sem falar que as chances de contrair sérias doenças em contato com a água eram grandes.

Um garoto local, de cerca de 12 anos, nos guiou até o rio principal, o Hooghly. Devido a muita sujeira na turbina do jet ski, Masatoshi resolveu ficar em terra para que pudéssemos mapear as sessões que iríamos surfar nos próximos dias. A previsão para os próximos dias era que a baan ganharia muita força. 

Alô, polícia
No segundo dia, no entanto, começamos a operação sendo enquadrados pela polícia. Queriam que pagássemos uma taxa de autorização para navegar no rio. Uma de nossas lanchas foi apreendida no porto do Millenium Park, no centro de Calcutá. Para nossa sorte, a segunda lancha e o jet ski conseguiram sair antes de serem barrados. Com isso, Pato e Masatoshi dividiram a pilotagem e o surf no jet ski. Eu fiquei na missão de pilotar a lancha e treinar nosso piloto local para os próximos dias. Ao chegar num ponto nunca antes atingido por uma equipe em busca da baan, nossa lancha pifou e fui obrigado a ancorar numa das inúmeras boias de navegação, que marcam os canais do rio Hooghly. Tudo indicava que aquele era um porto seguro.

Enquanto isso, Masatoshi e Pato seguiram em busca da onda para as primeiras sessões de cada um. Em alguns minutos o horizonte balançou e uma enorme esquerda começou a quebrar. O jet ski apareceu na sequência numa aceleração máxima em busca da onda que mudou de lado no canal levantando uma direita com cerca de 4 pés e vento terral. Enquanto assistíamos ao Masatoshi atacar a onda com o Pato, tive que cuidar da lancha para não sermos pegos de surpresa pela força da água que inundava o rio. Ao mesmo tempo, o telefone tocava com a ordem de retornarmos para a delegacia fluvial.

A polícia nos proibiu de buscar essas ondas no dia seguinte. Depois de muita negociação, pagamos uma multa e ficamos limitados a surfar apenas na seção central do rio Hooghly, pois as autoridades estavam com medo das condições extremas a que estaríamos submetidos. Mesmo que contrariados, teríamos que seguir as ordens para não sermos deportados e perder os outros dias de onda.

O terceiro dia foi marcado por uma direita perfeita, de 6 pés, quebrando com força e tubular, que foi apelidada de "Indianias". Em poucos segundos, porém, saímos do céu para o inferno. Yep, responsável por guiar as embarcações no canal, acabou encalhando na bancada rasa, protagonizando momentos de terror.

As duas lanchas foram pegas pela onda, uma conseguiu se salvar, mas a segunda foi engolida pela baan, deixando Masatoshi, o fotógrafo Kenyu, o piloto e mais dois tripulantes em situação de risco. Com o jet ski, consegui resgatar os equipamentos de Kenyu e o piloto da lancha. Masatoshi, com sua prancha, se salvou. Pato resgatou mais um dos tripulantes e Kenyu saiu nadando para a margem. 

Com a experiência de muitos naufrágios na Amazônia, conseguimos ainda salvar a lancha, que ficou sem condições de ser usada nos dias seguintes. Graças a todas as orientações, não tivemos ninguém ferido, apenas histórias para contar.

Tsunami programado
Mais um dia se passava, e a vontade de domar a baan ficava cada vez maior. À noite, depois de vencer um trânsito intensamente tumultuado, enquanto saboreávamos a culinária local, ficamos sabendo que três embarcações locais foram pegas pela onda noturna e naufragaram. Quatro pessoas morreram.

Para surfar e registrar o maior dia da onda, tivemos que pensar numa nova estratégia. A equipe decidiu seguir para o ponto mais extremo do rio, onde os pescadores locais gritavam e alertavam para a onda gigante.

Apesar das condições da qualidade da água no rio, quando a onda surgia, esquecíamos que estávamos em meio a muita sujeira, com direito a corpos de seres humanos e animais boiando, e corvos rodeando os cadáveres.

A recompensa estava por chegar. Os últimos dois dias foram perfeitos. Mesmo ainda desvendando os mistérios e bancadas do rio Hooghly, pudemos surfar com vento terral as melhores ondas de maré do mundo. O volume imenso de água que invadia o delta do Ganges era uma espécie de tsunami programado.

Entre navios cargueiros, Masatoshi desenhou linhas perfeitas, com muito estilo. Atirou-se em ondas perigosas e massivas. Perdeu alguns momentos, mas foi abençoado com outros. O mesmo para toda a equipe. A certeza era uma só: em meio àquelas bancadas, escrevíamos um novo capítulo da história do surf de ondas de marés, ou melhor, do surf mundial. Nunca fomos tão felizes.

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