O destino na mão

por Ana Maria Bahiana

Depois de um acidente em uma rocha, Aron Ralston foi obrigado a tomar uma decisão dramática

Nesta manhã de outono, numa pequena sala de reuniões em West Hollywood, Aron Ralston senta-se para a entrevista com as mãos cruzadas sobre a mesa. A mão direita é um gancho articulado, preso ao toco do pulso. “É de titânio, muito leve, muito prático”, comenta, acariciando a prótese com os mesmos gestos de quem afaga os dedos da própria mão. “É minha ferramenta de uso diário. Tenho várias para usos distintos, como um mecânico ou um escultor têm diversos utensílios para tarefas específicas. Algumas são para escalar, outras para dirigir... Tenho umas que se parecem com uma mão orgânica, mas, sinceramente, são pesadas e quentes. Quase não uso, só em festas ou eventos, quando as pessoas querem apertar minha mão.”

A deformidade é consequência da fatídica manhã de 1° de maio de 2003. Na ocasião, sozinho, desidratado e faminto no fundo de uma ravina no cânion Blue John, no parque nacional de Moab (Utah, Estados Unidos), Ralston amputou a própria mão para se livrar do imenso rochedo que o prendeu contra a parede do cânion cinco dias antes. O incidente o transformaria em celebridade internacional, levando à carreira de palestrante motivacional (cobra US$ 25 mil, no mínimo), ao best-seller autobiográfico Between a Rock and a Hard Place (2004) e, agora, ao filme 127 Horas. Dirigido por Danny Boyle, o oscarizado realizador de Quem Quer Ser um Milionário?, o longa, com estreia prevista no Brasil em março, traz James Franco na pele do alpinista (veja o boxe). “A melhor avaliação veio da minha irmã”, conta. “Ela disse que depois de 15 minutos deixou de ver o ator e passou a me ver na tela.”

Ralston começa a falar sorrindo e termina gargalhando. Como ele ressalta na entrevista a seguir, a mão que ficou na parede do cânion deixou de ser parte dele quando o rochedo, deslocado por um passo em falso, esmagou-a. “A natureza tem seus próprios planos,” conclui.

“O rochedo é indiferente aos meus desígnios. Eu é que vinha me movendo na direção dele, através da minha vida, até o encontro que mudou tudo em mim.” Quando diz isso, ele não fala como alguém que perdeu a mão, mas como alguém que encontrou algo maior. E, por que não dizer, como alguém que encontrou equilíbrio.

Formado em engenharia mecânica, Ralston abandonou a carreira em 2002 para se dedicar inteiramente à paixão por alpinismo e por caminhadas em áreas remotas. Em maio de 2003, trabalhava como guia, especialmente na área do parque de Moab. Passava todas as horas vagas em excursões solo – em geral, sem avisar ninguém aonde ia e sem se importar muito com o que as pessoas achavam disso. Quando caiu no fundo do cânion Blue John, o alpinista tinha consigo meio cantil de água, um burrito (tradicional iguaria mexicana) e um jogo de canivetes multiuso – que ele jamais imaginou que usaria para começar a amputação da própria mão. A decisão extrema aconteceu quando seus parcos víveres terminaram ao fim de cinco dias.

Aos 35 anos, sete anos depois do acidente, Ralston é um homem sereno. Casado, pai de um menino de 1 ano e franco admirador da mãe – sem a qual não teria sobrevivido após se livrar do rochedo. Ele ainda escala – completou a subida aos Fourteeners, a cadeia de montanhas mais alta do seu estado natal, Colorado, ano passado – e também trabalha como guia. Está, em suas próprias palavras, “num caminho diário rumo à harmonia”.

Você se acha uma pessoa mais equilibrada hoje?

Com toda certeza. Não posso dizer que recebi a iluminação, mas sei que estou no caminho para algo mais equilibrado, mais coerente. Sinto mais harmonia na minha vida. E mais: é algo que tento praticar todo dia, mantendo o equilíbrio entre minha família, minhas obrigações profissionais e meu desejo de aventura, que ainda está comigo – e bem vivo! É uma tarefa diária.

Você ainda parte em aventuras?
Ainda sou um guia, mas não em tempo integral. Não saberia viver sem estar na natureza. Isso é parte de mim. Muito cedo, quando me recuperava do acidente, decidi que não deixaria nada do que estava acontecendo afetar minha vida: meu amor pela escalada, pela exploração. Sempre me defini através do contato com a natureza, e, mais do que nunca, sei que existe ali um elemento de risco. Creio que agora posso, com mais autoridade, ajudar outras pessoas na administração desse risco. Quando vejo a garotada toda animada para uma excursão, sei muito bem como eles se sentem, já estive lá. Há um curioso equilíbrio na experiência. Sempre me senti extremamente vivo quando estava em risco, próximo da morte. E olha que estive o mais próximo da morte quanto poderia estar.

Você diria que era uma pessoa antes e outra depois do acidente no rochedo?

Acho que cheguei mais próximo da pessoa que eu sou. Sempre acreditei que existem forças maiores do que as perceptíveis fisicamente. Quando tudo o que eu acreditava estar sob controle – minha habilidade, meu conhecimento da natureza, meu corpo – foi se tornando irrelevante no fundo do cânion, quando percebi que não ia sobreviver com aquele burrito, e que o que eu estava bebendo era urina e não um refrigerante supergelado, tudo o que me vinha à cabeça era aquela expressão “Deus é amor, amor é Deus”. Me conectei com essa energia e isso me deu uma força imensa e coragem para conseguir fazer o que fiz. A possibilidade dessa conexão mudou tudo na minha vida.

Você pode dar exemplos práticos?
Eu era muito arrogante e muito egoísta. Achava que, na natureza pelo menos, eu podia tudo. E… bem… eu não podia, não é? Sem minha família, sem minha mãe, sem o amor, a preocupação e a coragem dela, quem sabe o que teria acontecido comigo? O helicóptero que me resgatou não veio do nada, veio porque minha mãe intuiu o que tinha acontecido, sentiu minha falta e deu o alerta. Sem minha família, meus amigos e a força e o carinho de centenas de pessoas que me mandaram cartas e mensagens, não sei se teria sobrevivido à minha recuperação. Escrevi o livro para, de certa forma, dar algo em troca. E, com certeza, não teria me tornado palestrante sem essa realização.

Como você retomou sua vida depois do acidente?
Em primeiro lugar, e de um modo mais imediato, o essencial foi voltar para minha família, recuperar minha saúde, minha força. A parte mais difícil desse processo foi a longa estada no hospital, as múltiplas cirurgias, a recuperação de cada uma delas, os remédios, a sensação de invalidez, de fraqueza. É incrível para mim que eu tenha sido capaz de fazer o que fiz e, depois de cada cirurgia, não conseguisse nem andar.

E emocionalmente?

A primeira grande revelação foi perceber que outras pessoas, além de mim e da minha família, se importavam comigo e com minha história. Foi surreal entrar na sala da coletiva de imprensa e ver aquela gente toda, receber cartas, ler os casos de outras pessoas em circunstâncias parecidas, ou pessoas em crise profunda que tiveram, como eu, que tomar decisões irreversíveis. Oferecer algum conforto a outras pessoas, apenas pelo fato de ter passado por aquela situação, mudou completamente minha maneira de ser.

De que modo?
Sempre fui uma pessoa muito privada, muito individualista. Realmente me sentia melhor sozinho, na natureza. Era arrogante nesse tipo de atitude, e essa arrogância me custou caro. De todas as lições que aprendi, a mais contundente foi jamais sair para uma expedição como essa sozinho e sem avisar ninguém. A revelação de que o que havia acontecido era importante na vida de outras pessoas foi uma epifania para mim. Foi o que me fez escrever um livro, aceitar a proposta do filme, começar uma carreira como palestrante.

Como foi a experiência de ver sua história na tela?
Um sentimento enorme de gratidão. Foi muito emocionante. Vi o filme pela primeira vez rodeado por minha família e amigos. Choramos muito, mas lágrimas de emoção. Porque todas as vinhetas da minha vida, as memórias do passado, tudo aquilo que passa pela minha cabeça quando estou preso, no filme, veio da minha experiência pessoal. Realmente passei por tudo aquilo. Reviver isso, cercado por pessoas queridas, foi emocionante, não tenho palavras para descrever. E o mais impressionante é que mesmo sabendo exatamente o que tinha acontecido e, portanto, o que viria em seguida no filme, levei susto quando o acidente apareceu na tela. O filme começa de uma forma tão alegre e empolgante e, de repente…

Então, você viu realmente de fora, como qualquer um de nós na plateia?
De certa forma, sim. E acho que o crédito é todo de Danny Boyle e James Franco. A primeira vez que vi o personagem preso no fundo do cânion estender a mão para a luz do sol fiquei comovido como se aquilo jamais tivesse acontecido comigo.

É estranho ver outra pessoa sendo você na tela?
Não tão estranho quanto ver o cânion Blue John reproduzido com perfeição dentro de um estúdio. Ou, 12 reproduções da rocha, idênticas, de vários tamanhos e materiais. Ou, ainda, vidros e vidros do que deveria ser urina, mas era (eles me contaram) suco de maçã misturado com chá Earl Grey. E, pior ainda, ver dezenas de braços, de vários materiais, pendurados no teto por ganchos. Parecia um episódio do velho Além da Imaginação, aquele dos anos 1950. Minha única preocupação com James Franco era o fato de ele ser tão bonitão. Porque, para começar, eu não sou...E, depois, porque pensei: ‘Será  que ele vai conseguir passar a impressão de que está no limite, numa situação além da sobrevivência?’ E ele conseguiu. A melhor avaliação veio da minha irmã. Ela disse que depois de 15 minutos deixou de ver o ator e passou a me ver na tela.

O filme é extremamente detalhado com relação ao episódio da amputação. É uma recriação fiel? James Franco parece empolgado durante quase todo o processo…

Menos na hora de cortar os nervos, não é?

Exatamente…
Cortar os nervos foi, de fato, o único problema quase insuperável, depois que resolvi a questão de como quebrar os ossos. Cortar a pele não era o problema – meu braço estava praticamente insensível, morto do ponto onde a rocha estava prendendo a circulação. Quando descobri que podia usar meu corpo como alavanca para quebrar os ossos eu realmente fiquei animadíssimo. Foi uma sensação de euforia completa – eu estava a caminho de minha libertação! E foi exatamente como James Franco interpreta no filme. Estava dando certo. Eu sairia dali! Mas há um feixe de nervos que corre abaixo dos ossos. E eu tinha que passar por eles. Usei toda a adrenalina da minha euforia para dar esse passo.

O que você sentiu quando finalmente completou a amputação?
Um enorme alívio. Olhei para a rocha, minha mão presa nela, e pensei: “consegui, estou livre”. Não senti o menor remorso, a menor tristeza. A mão estava morta. Sabia disso, estava gangrenada. Já não era parte de mim, era um obstáculo para minha vida. O que eu queria mais? Minha mão ou minha vida? Não é sempre que a vida nos coloca uma questão tão clara e radical. Quando olhei para trás não vi minha mão perdida, vi minha vida possível. Minha vitória.

 

“Aron é um super-herói humano”

Danny Boyle acampou com o alpinista para fazer o filme

Danny Boyle, o premiado diretor de Trainspotting (1996) e Quem Quer Ser Um Milionário? (2008), rodou 127 Horas quase todo em um único cenário, uma fenda entre as rochas. O diretor se apaixonou pela história quando leu o livro de Aron Ralston. O diretor conta que sempre quis fazer um filme em que o protagonista estivesse preso. Para ele, o alpinista é um verdadeiro herói.

Como  o projeto de 127 Horas aconteceu? Parece uma escolha inusitada após o sucesso de Quem Quer Ser um Milionário?
Foi o sucesso do último filme que me permitiu fazer 127 Horas. Nessa indústria, como na vida, tudo é o caso de perceber oportunidades e agir. Ei, acho que acabo de usar uma frase do Aron!

Você teve uma conexão pessoal com a história de Aron?
Acompanhei a história na época e li o livro depois. É algo que não dá para esquecer. Criei uma imagem dele que foi confirmada quando o conheci em 2006. Ele tem uma imensa vitalidade dentro de si. Sempre quis fazer um filme de ação com um verdadeiro herói, um super-herói humano.

127 Horas é seu filme de ação?
De ação e de horror. Porque Aron levou 44 minutos amputando a própria mão. E eu precisava ser fiel a isso.

E como foi durante as filmagens?
Aron trabalhou com James de modo intenso. Ele o ajudou tecnicamente, com posturas e técnicas de uso dos equipamentos.

Como você envolveu Aron no projeto?
Concordei em acampar com ele. Eu “adoro” acampar. Adoro tanto que há 33 anos não acampo. Mas deixei Aron nos levar – eu, Christian Colson, nosso produtor, e James Franco – para uma caminhada  pelo cânion Blue John. Passamos seis dias explorando a área. Isso foi muito importante para mim, que não sou uma pessoa ligada em natureza ou esportes radicais. Sou essencialmente urbano. Não espero voltar a acampar nos próximos 33 anos.

(*) colaboração para Audi Magazine Brasil, uma publicação da Trip Editora

fechar