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Ney Matogrosso e Rico Dalasam: me vejo em você

por Natacha Cortêz
Trip #266

São 48 anos de diferença, um estado de separação, dois estilos musicais que não se misturam com frequência, o abismo da cor da pele — uma verdade incontestável no Brasil — e o abismo do dinheiro

1989

Em Taboão da Serra, município da Grande São Paulo, nasce Jefferson Ricardo da Silva, filho temporão de Maria Célia, mulher negra, cozinheira e mãe de mais quatro. No mesmo ano em que o muro de Berlim é posto abaixo e o Brasil elege democraticamente Fernando Collor, depois de quase três décadas sob regime militar, Ney Matogrosso, aos 48 anos, lança seu segundo álbum ao vivo desde que começou carreira solo. Naquele momento, ele volta a se apresentar pintado e montado como fez à frente do Secos & Molhados durante a ditadura. Diferentemente de anos anteriores, o último da década de 80 prometia abrir mares, e Ney já apostava suas fichas no futuro marcando o tempo nos palcos. Era, enfim, a chance de dançar livremente, sem temer. Para Jefferson, uma vida inteira de subversão e resistência vinha pela frente.

2013

Jefferson, aos 23 e agora sob o nome de Rico Dalasam, deixa a profissão de stylist pra cantar rap com letras estilo "granada", compostas no ônibus que pegava todo dia, de Taboão pra São Paulo. E começou a dar passos rápidos: no fim de 2014 lançou seu primeiro single, "Aceite-C", que saiu naturalmente do YouTube para festas gays país afora; em março de 2015, o primeiro EP, Modo diverso. O primeiro disco, Orgunga, chegou em junho de 2016 – e, neste mês, ele lança o segundo, BalangaRaba. Assim, Rico gritou publicamente que é gay. Jovem negro, rapper da periferia e homossexual, Rico passa a representar quem não tinha em quem se ver.

2017

Ney Matogrosso e Rico Dalasam não se conheciam até o dia registrado nestas páginas. Botar os dois cara a cara foi um encontro planejado, uma aposta em um match que talvez nunca acontecesse de outra forma. Ney é morador de uma cobertura dúplex no Leblon. Caseiro e pacato, só sai do apartamento pra fazer
shows, de ingressos sempre esgotados, viajar ou descansar no sítio que mantém no interior do Rio de Janeiro, onde mora a mãe, Beila. Aos 75 anos, cultiva o mesmo corpo jovem e flexível de Rico, agora com 27. Assistir aos dois juntos, posando como amigos íntimos para as lentes do fotógrafo Jorge Bispo, não diz nada sobre a tensão do mais novo. Rico não dormiu na noite anterior. Sem saber exatamente como driblar a insônia, pediu pizza às 4 da manhã. Registrou o pedido "meia portuguesa, meia muçarela" no Instagram Stories, mas não chegou a comer um pedaço inteiro. Pela manhã, na saída de casa, um apartamento limpo de decoração e recém-alugado na rua Bela Cintra, centro de São Paulo, se atrasou primeiro escolhendo a roupa, depois escolhendo a meia-calça. Por pouco não perde o voo que o levou para o Rio de Janeiro.

Esta conversa é uma parte do encontro que ocorreu em uma sexta-feira de abril, tão úmida quanto o Rio de Janeiro é capaz de produzir. Generoso, Ney abriu a casa e os olhos para Rico, que, sem jeito, manteve o nervosismo até o último minuto. "Não dava pra esquecer que era o Ney que estava ali. Foi tipo sonhar acordado."

Trip. Vamos começar pelo palco. Ele é seu palanque, Ney, onde defende seus ideais?

Ney. É onde defendo a liberdade. O palco é esse metro quadrado onde faço o que quero, danço como quero. É um espaço que eu consegui, conquistado. Ninguém me autorizou. Fui, pisei e disse: "Aqui é meu, aqui eu faço o que quiser".

E pra você, Rico?

Rico. É onde me mostro, onde definitivamente não me silencio. Minha história é a seguinte: eu não concordava com a minha mãe ter que trabalhar tantas horas pra tal pessoa e, por isso, não fazer parte da minha vida. Que o meu irmão tivesse que se preocupar em raspar o cabelo quase toda semana para que o crespo dele não fosse exibido no trabalho. Que a minha irmã tivesse que prender o cabelo e encher de creme pra poder transitar sem ser insultada. Decidi que comigo ia ser diferente, que, quando chegasse minha hora de ir pro mercado, de transitar, eu ia brilhar. O palco hoje é meio isso, é o auge da minha exposição.

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Qual é a sua primeira memória do Ney?

Rico. Eu tinha uns 10 anos. Foi uma foto, uma imagem muito poderosa. Ele vestia um esplendor na cabeça e umas coisas, pareciam penas, no ombro. Achei mágico. Teve o mesmo impacto de quando vi a Grace Jones. Não sabia o que o Ney cantava nem em que tempo existia. Talvez porque minha construção musical, lá no Taboão, me colocou muito depois em contato com a música brasileira que não fosse pagode, rap ou o forró do bar. Mas, quando vi a foto do Ney, de alguma forma, me vi nele. 

Na atitude?

Rico. Sim! Tenho uma teoria. Pra mim, ele está à frente da minha geração. Vejo muita vida no Ney. Uma vida que não vejo em nós. Um desejo, um corpo contestador. É como se ele atravessasse o tempo. Em qualquer tempo ou espaço ele seria um incômodo pra quem é reacionário. Ney sabe construir narrativas de palco, sabe dirigir luz, pensar no espetáculo. E tem a dança. A dança do Ney, o jeito que ele usa o corpo, me fascina.

Ney, quando criança você já pensava em cantar?

Ney. Quando eu era muito novinho, falava que queria ser cantor. Depois esqueci completamente. A música só foi virar vontade de novo quando chegou o Secos & Molhados, aos 31. Eu não tinha planos de ser um cantor antes disso, pelo menos não me preparei pra isso. Cantar profissionalmente foi como uma surpresa do destino.

E você, Rico?

Rico. Não! Eu gostava é de dançar. Dançar na frente da TV. E lembro que queria trabalhar dentro do avião quando crescesse. Me perguntavam: "Quer ser o quê?". "Eu quero ser aeromoça!" Aí alguém falava: "É comissário de bordo, não aeromoça". E eu corrigia: "Quero ser aeromoça!".

O que você ouvia enquanto dançava na frente da TV?

Rico. Era uma época em que o pagode tinha muita força no Taboão, e na TV. Mas meu repertório também era feito de uma rádio de black music. Jorge Ben e o samba rock, o charme, o R&B, o pagode. Eu era uma criança pagodeira. E, nesse mesmo ambiente, o rap estava surgindo. Racionais, com "Homem na estrada", foi o primeiro rap que ouvi.

E você, Ney, o que ouvia quando criança?

Ney. Rádio! Rádio ocupava o espaço que as telas ocupam hoje. Meu pai comprava muito disco também. Chegava o fim de semana, a gente parava pra ouvir. Na época, eu achava chato. Mas, hoje em dia, pra minha memória, é maravilhoso. Quando quero olhar pro passado, resgatar algo, sei pra onde mirar.

Você tem uma relação muito forte com a dança. Desde quando?

Ney. Desde menino.

Tem essa memória que o Rico tem, por exemplo, de quando começou a dançar?

Ney. Sim, mas vou te contar outro tipo de memória, a de quando começaram a me reprimir por dançar. Tinha um programa de calouros aos domingos em um parque de diversões de Padre Miguel, onde passei a infância. Uma vez, comecei a dançar do lado de fora enquanto alguém cantava. Fui tão reprimido, com tanta brutalidade... E só porque eu estava dançando! Eu não sabia que dançar não podia ser uma coisa masculina!

Quem reprimiu você?

Ney. O camarada apresentador do programa. Ele falou comigo de uma maneira tão rude. Mas a dança acabou surgindo de verdade na minha vida só nos Secos & Molhados e eu usei ela pra me liberar. Na primeira apresentação da banda, usei uma calça de cetim branca, uma grinalda de noiva e uma maquiagem toda branca e preta.

Foi a primeira vez em que usou uma roupa considerada feminina?

Ney. Mas eu nunca usei nada feminino.

Não? Nem no palco?

Ney. Eram roupas neutras. Minha intenção não era ocupar o espaço da mulher, era ocupar um espaço no imaginário das pessoas. Na minha viagem, eu era um inseto. Botava antenas, chifres no meio da testa, ossos nos ombros, terra na pele. Pra mim, eu era um ser híbrido. Me interessava ser híbrido. Agora, me pergunte o que eu desrespeitei.

O que desrespeitou?

Ney. O limite do gesto masculino e feminino. Minha grande transgressão foi a de requebrar. Porque isso era coisa de mulher. E tinha o olhar também. O jeito que eu olhava pras câmeras era algo do que reclamavam nas TVs. Eu olhava pras câmeras e isso era proibido.

Proibido?

Ney. Proibido! Eu odiava aquela ditadura. Tudo o que eu fazia era contra eles. Você não sabe o grau de recados que eu recebia. Diziam que eu estava me excedendo e que só me eliminando pra eu parar.

Não teve medo?

Ney. Não tive medo, não. Nunca acreditei na política. Esta política horrorosa que a gente vê até hoje. Sempre achei a política partidária uma coisa que não me interessava. Mas a política de costumes, essa, sim, eu queria transformar sendo livre. Sendo livre, queria mostrar que os outros poderiam ser livres – mesmo naquela situação que a gente vivia.

O Ney contou do momento de repressão no show de calouros. Qual foi o seu primeiro momento?

Rico. Não sei dizer um. Acho que porque nunca parou de acontecer e, ao mesmo tempo, acontece desde sempre. Por isso meu trânsito estético nas ruas sempre teve a intenção de dizer coisas que eu não conseguia dizer com a voz. Quando você não tem voz, fala pelas culatras. A roupa é meio isso.

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O Brasil pune liberdade. Nenhuma outra nação mata tanto a população LGBT quanto a nossa. Ainda tem muito artista no Brasil que, por medo, não se assume gay. Vocês assumem.

Ney. Comigo esse tipo de coisa era velada, o preconceito. Alguns lugares negavam que eu fosse me apresentar, mas não diziam o porquê. Mas não sinto o preconceito hoje, pelo contrário. Só sinto coisas boas. Olha, que fique claro, gosto de ser do sexo masculino. Isso nunca me limitou. Aliás, na minha fantasia, gostaria que houvesse mais sexos além do masculino e feminino. Ia ser melhor pra todo mundo.

Mas e nos anos 70 e 80, o preconceito era velado?

Ney. Naquela época existia uma liberdade individual que hoje não existe. O que tinha que ser combatido era o governo, não as liberdades individuais. As pessoas não estavam preocupadas com o que cada um fazia no seu íntimo. Na verdade, elas se davam ao desfrute de experimentar e ninguém ficava taxado por isso. Nos anos 90, a coisa começou a encaretar e, hoje, estamos retrógrados. A caretice está se instaurando novamente e, na contramão, existe um movimento de liberdade muito forte, do qual Rico faz parte.

O que você acha da geração de músicos que vêm junto com o Rico?

Ney. Vem vindo junto com o Rico uma galera que não tem governo, nem nunca terá. Uma geração que não vai passar pelo que passei. Eu era xingado por andar de camiseta regata nas ruas do Rio de Janeiro. Rico anda como quer. Na minha época, eu era expulso dos lugares por estar de pés de fora. Muitas coisas já estão diferentes agora, embora a gente viva uma coisa muito conturbada nesse momento. Porque tem uma coisa política e religiosa, tudo misturado. Religião e política não se misturam. E aí fica esse pensamento religioso querendo pôr ordem onde não deve.

Por que é importante viver neste instante?

Rico. Viver neste instante e, mais, ser alguém atuante neste instante, me mostra que a gente importa agora. A gente tá botando fogo. Mais que resistir, minha luta é não deixar minha natureza ser violada. O que eu posso fazer é ser granada, no palco ou na rua. Aqui tem alguém muito petulante, alguém que não deita. Planto sementes de possibilidades de novas existências. Quero fazer a margem da margem ter chances de prosperar.

Ney. Se eles são corruptos, somos subversivos. Mas, veja, não se satisfaçam com a minha manifestação. Sejam. Sejam o que vocês são. Se manifestem.

O sucesso afastou o racismo de você, Rico?

Rico. Não sinto isso, não. O que pesa mais, o que mais atrai olhar estrangeiro, é minha cor. Sendo negro, ser gay fica secundário. Eu já tenho horas de voo nesse negócio de saber identificar olhar de repulsa. Eu sei o que as pessoas olham pra mim e se perguntam: "Epa, quem é ele? Por que ele está aqui entre nós, consumindo o que consumimos?". Ser um jovem gay te reserva vários e pesados desafios, é verdade. Mas ser um jovem negro te reserva linhas de chegada próximas do impossível. É como se transpusessem a linha de chegada porque você é negro. 

Qual é o maior medo de vocês?

Ney. O rumo que o mundo está tomando. Acho muito perigoso para todos. Olhe nas mãos de quem estão os comandos da Terra. São pessoas da pior qualidade, inescrupulosas, loucas de verdade.

Rico. Meu maior medo é me sentir morto em vida. Ter que me submeter, baixar a cabeça, me esconder.

Vocês rezam?

Ney. Eu não rezo, não acredito em um deus raivoso com o dedo apontado pra mim dizendo o que eu devo e o que eu não devo. Acredito em um princípio amoroso, que rege tudo.

Rico. Rezo, sim, mas o meu deus não se preocupa com a sexualidade nem com a cor de ninguém.

Ney. Ninguém opta por nada, você vem do jeito que é. Acredito em um deus que respeite isso.

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Créditos

Imagem principal: Jorge Bispo

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