Sorria, você está sendo gravado

por Milly Lacombe

”Quem agride mais: quem se deixa dominar por um momento de raiva em ambiente privado ou quem ilegalmente espiona, grava e torna público?”

O que é privacidade e por que ela é importante? Numa época em que governos e corporações espionam tudo o que fazemos, seja através da trilha que deixamos em nossos dispositivos eletrônicos, através de câmeras instaladas a cada esquina ou gravando nossas conversas telefônicas talvez seja hora de tentar entender o tipo de violência que está inserida na raiz de uma sociedade dentro da qual os cidadãos podem ser espionados “em nome da segurança”.

A razão para que tenhamos nossa privacidade invadida é sempre a mesma: segurança. O recado é: estamos fazendo para o seu bem. A autoridade sempre vai se mostrar altruísta porque não há outra forma de nos convencer a aceitar esse nível de espionagem dado que toda vez que aceitamos ser espionados estamos abrindo mão do seu oposto: Liberdade.

Não há circunstância na qual segurança e liberdade convivam. Se optamos por segurança, deixamos de ser livres. Se optamos por liberdade, não há como querer segurança.

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Mas segurança é uma ilusão porque ela pressupõe que estamos no controle, e nunca estamos no controle. Não há como controlar a vida; a vida a gente aceita, a vida a gente não controla. E liberdade é uma das pedras fundamentais do que significa existir e do que forma a natureza humana.

Quando Edward Snowden revelou ao mundo a extensão da espionagem organizada pelo governo americano, com apoio de corporações, sobre todos os seus cidadãos houve quem ficasse escandalizado, mas houve também aqueles que dissessem: “pode espionar. Não faço nada errado”.

“Sem privacidade não há como tentarmos entender quem somos, o que pensamos, como vamos construir significado e formar caráter”
Milly Lacombe

Pensar assim é um equívoco, e Snowden explica por que: “Sem privacidade você só existe em um estado que reage ao ambiente o tempo todo”. Ou seja: sem privacidade não há como tentarmos entender quem somos, o que pensamos, como vamos construir significado e formar caráter. Sem privacidade somos proibidos de deslizar, de errar, de aprender com os erros. Para Snowden aqueles que dizem “pode me espionar porque não faço nada errado” se equivalem aos que dizem: “não ligo para Liberdade de expressão porque não tenho nada a dizer”.

O linguista e ativista Noam Chomsky diz que toda a tecnologia pode ser usada para oprimir ou libertar, como o martelo que pode ser usado para construir uma casa ou esmigalhar um crânio. O que estamos fazendo atualmente é aceitando que se use a tecnologia para nos escravizar.

Por isso é alarmante perceber que a maior operação contra a corrupção organizada no Brasil faz uso de espionagens que flertam com a imoralidade. Revelar para apreciação pública conversas telefônicas que não são criminosas é um atentado à privacidade e à moralidade.

“É privadamente que deixamos escapar os monstros que nos habitam, e é em ambiente privado que podemos lidar com eles, amansá-los, matá-los”
Milly Lacombe

Claro que todos nós falamos privadamente coisas que não gostaríamos que fossem tornadas públicas. É privadamente que deixamos escapar os monstros que nos habitam, e é em ambiente privado que podemos lidar com eles, amansá-los, matá-los, contar com a reação afetiva daqueles que conseguem enxergar os monstrous em nós, ver para onde estamos indo e tentam indicar um caminho de mais amor.

Se nossos monstros são entregues à fúria da opinião pública não há mais chance de lidarmos com eles: os monstros apenas crescerão e nos devorarão. 

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Quando dona Marisa Letícia foi exposta em rede nacional de TV mandando que enfiássemos as panelas no cu era inevitável que a opinião pública a devorasse. Não é de fato agradável escutar esse tipo de agressão verbal, muito menos elegante, mas quantos de nós falamos coisas parecidas ou piores em conversas privadas? Quantos de nós nos permitimos ser extremamente deselegantes em situações de privacidade?

“Quem agride mais: quem se deixa dominar por um momento de raiva em ambiente privado ou quem ilegalmente espiona, grava e torna público?”
Milly Lacombe

Se não há crime, se não se trata de um processo que completou seu ciclo e encontrou culpados, como expor o ser humano a uma situação dessas? Quem agride mais: quem se deixa dominar por um momento de raiva em ambiente privado ou quem ilegalmente espiona, grava e torna público? O princípio mais básico da moralidade é aplicar a nós mesmos aquilo que exigimos dos outros. Não estamos conseguindo mais fazer isso, não estamos sequer conseguindo enxergar o outro.

Como disse o jornalista Glenn Greenwald durante uma conferência com Noam Chomsky e Edward Snowden a respeito de privacidade, a gente entende que direito à comida, à casa, à saúde são fundamentais, mas privacidade entra como um valor distante e por isso não a exigimos.

Mas também não a exigimos porque até aqui quem está sendo exposto são pessoas de quem não gostamos ou para as quais não estamos nem aí. Só que uma vez perdida, a privacidade vai nos expor a todos. E esse seria um triste fim. O mais triste dos fins.

Créditos

Imagem principal: Mohamed Hamdy / Creative Commons

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