MDMA e mulheres: o que tem além da onda

Natacha Cortêz
Bianka Vieira

por Natacha Cortêz
Bianka Vieira

Existem rumores, dos blocos de rua do Carnaval carioca aos clubes noturnos na Inglaterra, de que mulheres são mais sensíveis aos efeitos adversos do MD. E mais: de que a combinação pode ser fatal

No ano de 2016, a imprensa britânica deu atenção às mortes de dez jovens mulheres na Inglaterra. Em comum, todas tinham usado pílulas de ecstasy ou pó de MDMA (nas duas formas, o MDMA é, ou deveria ser, o ingrediente ativo de maior concentração) horas antes de dar entrada em salas de emergência.

No ano anterior, foram quatro mortes. Também de mulheres. Na época, houve tentativas de responder por que as vítimas eram apenas mulheres e por que os óbitos tinham mais que dobrado em um ano.

O Global Drug Survey, um questionário on-line sobre o uso de drogas aplicado entre novembro de 2015 e janeiro de 2016 em 25 países, foi de encontro com os casos britânicos: mulheres são duas a três vezes mais propensas a procurar tratamento de emergência depois do uso da substância.

Além do questionário, algumas reportagens chegaram na seguinte resposta: o MDMA faz com que o corpo de quem usa retenha mais água que o normal. Para as mulheres então, o estrogênio (hormônio responsável pelo controle da ovulação e desenvolvimento de características femininas) seria uma espécie de fator de risco, prejudicando a capacidade das células de liberar água – o que, em hipóteses extremas, acabaria em hiponatremia, um desequilíbrio da concentração de sódio e potássio que pode levar a inchaços cerebrais fatais. Edema, por exemplo. Essa foi a teoria mais ouvida de especialistas. É também a mais registrada na literatura médica quando o assunto é morte depois do uso de MDMA. E quase todos os casos relatados são de mulheres entre 15 e 30 anos. 

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Apesar dos registros mostrarem que existem mais mulheres morrendo após o consumo da droga que homens, a combinação MDMA e “fêmeas" (as pesquisas são feitas em ratos) é um tema pouquíssimo investigado. Faltam estudos que expliquem o que os números revelam. Para começo de conversa, as pesquisas sobre mulheres e drogas são menos realizadas que as sobre homens e drogas. “A ciência, médica ou biológica, pouco estuda a dupla. Há um estigma machista de que droga é coisa de homem. Depois, a variação hormonal deixa mais complexa a pesquisa em fêmeas”, explica o psiquiatra Fabio Carezzato, do Programa da Mulher Dependente Química do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. “No mais, estudar droga também é um feito cheio de entraves e preconceitos. Vivemos num contexto político de guerra às drogas em que as instituições que poderiam financiar estudos não o fazem porque não querem seus nomes ligados aos psicotrópicos analisados.”

Para a assessora de políticas de drogas da Secretaria de Direitos Humanos da prefeitura de São Paulo, a psicóloga Maria Angélica Comis, “diante da falta de informação científica, é importante olhar para as mortes e vê-las como indícios de algo que não pode permanecer no escuro. Se há mais morte de mulheres, é preciso entender a fundo o porquê”. 

Enquanto verdades absolutas faltam, outras respostas tentam esclarecer as mortes na Inglaterra. Algumas dessas poderiam se aplicar a qualquer gênero ou biologia: o histórico da vítima antes do consumo do MDMA e o ambiente onde estava (uma boate lotada ou o calor de 400 no Carnaval do Rio de Janeiro são os piores lugares pra usar a droga, pois a temperatura alta reforça a desidratação). A mistura de substâncias também: água demais, água de menos, álcool, cocaína, maconha e outras drogas sintéticas influenciam em como a coisa “bate”. Além do mais, há ainda os incontáveis componentes desconhecidos encontrados em drogas ilegais: remédio pra gripe, cocaína, cafeína, farinhas, aspirina, anfetaminas e mais outras tantas inas. “Se não há controle, você está lidando com o desconhecido e, se tratando de drogas, o desconhecido é sempre imprevisível. É uma roleta-russa”, diz o pesquisador Eduardo Schenberg, mestre em psicofarmacologia pela Unifesp e doutor em neurociências pela USP.

Existem até modus operandis pra te livrar dos riscos de uma droga adulterada.

Há guias de uso espalhados pela internet – pesquisadores preferem chamá-los de “manuais para redução de danos” – que indicam a melhor forma de tomar MDMA, além de sites em que é possível comprar reagentes para testar o produto que adquiriu. A lógica por trás desses manuais é a de que a ilegalidade não protege o consumidor e que, então, mostrar como se deve usar a substância seria uma forma de educar uma população refém da ignorância. Um dos “nunca faça” clássicos, segundo Schenberg: “misturar MDMA com qualquer outra substância psicotrópica, mesmo cerveja, é uma péssima ideia”. “Pode parecer uma informação básica, mas as pessoas não cumprem”, conta Comis. A cerveja intensifica os efeitos da droga, é diurética e desidrata – o que pode ser perigoso, pois o MD exige um corpo hidratado. “Mas não tanto: 250 ml de água por hora é suficiente”, completa a psicóloga mestre em medicina e sociologia do uso e abuso de drogas. Também é importante repor sódio e potássio. Por isso, os isotônicos são recomendados.

Outro “nunca faça” diz respeito a remédios controlados, especialmente antidepressivos e ansiolíticos. Eles não devem ser combinados com a droga. E como nenhum cuidado é pouco quando se trata de drogas em situação de proibicionismo: nunca tome uma dose inteira. Aliás, de nenhuma substância, em nenhuma forma. Para o MD, é bom pensar no comprimido, que geralmente tem de 80 a 150 mg, como referência de dose. “Comece por um terço [da dose padrão] e espere o efeito por pelo menos uma hora”, alerta Schenberg. Ou seja, se você compra 1 grama em pó, faça as contas e evite exageros.

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A estudante Lygia F., 24, perdeu o controle, meteu o dedo quatro vezes em menos de uma hora no saquinho de MD da amiga e começou a sentir o maxilar tremer. "Corri pra um hospital, mas não tive coragem de contar que estava sob efeito da droga." É isto: sem regulamentação, fica impossível saber qual é a concentração do que você usa. Por isso, se for pra tomar, "comece por um terço e espere o efeito por pelo menos uma hora”, continua Schenberg. Já em relação à polêmica relação mulher e MDMA, o conselho dos especialistas ouvidos nesta reportagem foi: menos é sempre mais.

“O MDMA virou o lança-perfume do Carnaval moderno”, diz uma coluna de João Paulo Cuenca publicada em fevereiro no The Intercept Brasil.

“Na virada da primeira para a segunda década do século, um ingrediente começou a alterar não só a temperatura corporal dos foliões do Carnaval carioca, mas toda a vibe dos blocos indies que orbitam ao redor do centro da cidade. Não é rapé, não é lança-perfume e tampouco é catuaba: MDMA”, continua o escritor. Nada diferente do agora inflamado Carnaval paulistano. Pelo menos não do que diz respeito aos blocos da Zona oeste. “Entre meus amigos, MD era o combustível de dias seguidos de folia”, conta a Ana C.*, 29 anos, arquiteta e moradora de Pinheiros. “Comprei 1 grama por R$ 170, dividi com meus amigos, usamos pelos quatro dias do carnaval e ainda sobrou”, diz sorridente a publicitária Cecília M., 33, moradora do Jardins.

MD ser a droga da moda é algo que se sabe assim, por relatos. Um disse me disse. Ou até uma oferta de compra que chega até você. Em uma festa recente no centro de São Paulo, uma bala azul em formato da cabeça da Hello Kitty valia R$ 60. Agora, se for pra contar com pesquisas que mostram um aumento do consumo no Brasil, aí a coisa complica. “Elas não existem, mas a gente sabe que o uso se intensificou. As pessoas contam que tomaram”, diz a psicóloga Maria Angélica Comis. O Relatório Mundial sobre Drogas de 2014 da UNODC, o escritório das Nações Unidas sobre drogas e crime, dá pistas: o MDMA em pó é a droga mais vendida na deep web, enquanto o MDMA em tablete, o ecstasy, é a terceira – as duas são versões comerciais do MDMA; a versão laboratorial é uma substância pura que só pode ser conseguida com controle científico.

Apesar de ser o barato do momento entre uma elite branca brasileira, o MD não surgiu ontem.

Foi sintetizado em 1912 por cientistas alemães para controlar hemorragias e, logo depois, patenteado como inibidor de apetite. Apesar do uso laboratorial, ficou popular na cena de música eletrônica, por causa das raves, entre os anos 80 e 90, quando chegou ao Brasil. Recentemente a Food and Drug Administration (FDA), órgão do governo americano que ainda é o principal arauto da guerra contra as drogas no mundo, deu sinal verde para a terceira fase de testes do MDMA (mas em sua forma mais pura, a molécula) como forma de tratamento do transtorno de estresse pós-traumático. Há estudos conclusivos sobre a eficácia do tratamento e o psicotrópico pode se tornar legal para esses fins nos Estados Unidos já em 2021. No Brasil, pesquisadores tentam a mesma coisa com bem menos sucesso. 

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Não era amor, era MD.

É comum ouvir de gente que tomou a substância coisas como “sinto tudo à flor da pele”. Para produtora de moda Adélia P. 31, é bem assim. “Me dá uma sensação de felicidade constante. Sou só sorrisos. Os rolês são sempre ótimos e as pessoas nunca são chatas. Também tenho vontade de beijar e abraçar todo mundo. Rola tesão e um pique para pular carnaval por mais de 12 horas, subindo e descendo ladeira dançando e cantando em dias de sol ardente. Em compensação, perco a fome e o sono e posso beber o quanto for que não fico bêbada, acabo exagerando no álcool.” É por aí mesmo. O psicotrópico altera a atividade de neurotransmissores, age como um poderoso estimulante e pode gerar distorções de tempo e espaço, além de ampliar a percepção tátil e auditiva. Por isso a libido pode ir às alturas. Aliás, foi por essa promessa que Adélia se convenceu a experimentar: "Meus amigos diziam  isso de se sentirem mais soltos, fogosos e que nunca terminavam a noite sozinhos. Achei que podia ser meu tipo de droga".

Parece MD, mas é anfetamina - ou remédio de gripe.

Um dos problemas de mercados onde a criminalização dita as regras é a ausência de regulamentação do Estado. Com o MD não é diferente. Você pode achar que está usando MDMA e na verdade estar usando de aspirina a amido de milho, de inibidor de apetite à anestésico pra cavalo. Um estudo feito em 2012 pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) em parceria com a Polícia Federal com um lote de pílulas aprendidas mostrou que mais da metade delas nem tinha MDMA, somente contaminantes, já a outra parte tinha MDMA com contaminantes. E pior: mais de 200 deles. “O que as pessoas vendem e consomem na rua, não pode ser o MDMA puro. Elas compram outra coisa, provavelmente uma droga ilegal, fabricada em laboratórios clandestinos. Não dá pra chamar de MD, mas no mercado fazem isso pra gerar nova demanda e interesse", diz o pesquisador Eduardo Schenberg. 

*Os nomes foram trocados a pedido das entrevistadas.

**Colaborou Bianka Vieira

Créditos

Imagem principal: Camila Fudissaku

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