Um dos maiores compositores vivos do Brasil está de volta com disco novo e caixa de CDs

“Bicicleta! pedalando com você numa bicicleta!” o refrão do hit oitentista tornou subitamente marcos valle no bardo do ciclismo. mas sua carreira vai muito, muito além das pedaladas. um dos maiores compositores vivos no brasil, hoje está de volta com um disco novo, uma caixa com 13 CDs e parcerias com Marcelo Camelo.

O cara era um cantor de um sucesso só, no máximo dois. Percebeu algo que estava no ar no início dos anos 80 e transformou em sucessos avassaladores duas músicas pop sobre o culto ao corpo, que o faziam parecer um professor quarentão de aeróbica travestido de cantor, ou vice-versa. “Tem que correr, tem que suar, tem que malhar, vamos lá! musculação, respiração, ar no pulmão, vamos lá!”, ele comandava na primeira delas, “Estrelar”, de 1983. “Bicicleta! pedalando com você numa bicicleta!”, mantinha o pique em “Bicicleta”, no ano seguinte.

O nome do cara era Marcos Valle, e o parágrafo anterior está errado em pelo menos um detalhe: ele não era cantor de dois sucessos ligeiros e nada mais. O cara que infestou as rádios suando malhação e ciclismo era – é – um dos mais talentosos e sofisticados compositores do Brasil. E faz sucesso até hoje, menos no país natal que na Europa e no Japão.

Revelado na segunda leva de músicos da bossa nova, Marcos é coautor, com seu irmão Paulo Sérgio Valle, de um dos clássicos do gênero, “Samba de verão” (“você viu só que amor/ nunca vi coisa assim/ e passou, nem parou/ mas olhou só pra mim...”), lançado em 1964, quando o cara era moleque de 21 anos.

“O momento que mais me marcou foi ‘Estrelar’, eu não podia sair na rua”, afirma o artista hoje, aos 67 anos, na ampla casa entre praiana e interiorana em que vive com a esposa, a cantora Patrícia Alvi, no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro natal. “Me paravam na rua: ‘Você tem academia?’. ‘Não.’ ‘Onde você dá aula?’ ‘Não dou aula.’”, relata, divertido, aborrecimentos da época em que mais se aproximou de um popstar, inclusive com traços de sex symbol, expostos na 
capa de trajes sumários do single de “Bicicleta”.

Letras e fotos aeróbicas à parte, os hits dos anos 80 eram funks bem brasileiros, vinculados ao padrão de sonoridade negra levada ao ápice pelas mãos de Michael Jackson e do maestro Quincy Jones, em “Thriller” (1982). Marcos começara a trabalhar com soul e funk de modo pioneiro no Brasil, no fim dos anos 60. “Black is beautiful”, que Elis Regina transformou em sucesso em 1969, era de autoria dos irmãos Valle.

“Me paravam na rua: ‘Você tem academia?’. ‘Não.’ ‘Onde você dá aula?’ ‘Não dou aula’”, relata marcos, divertido

O êxito de “Estrelar” e “Bicicleta”, devidamente capitalizado pela Rede Globo, aconteceu na volta de uma temporada de cinco anos de Marcos dos Estados Unidos, quando atuou como compositor para Sarah Vaughan, Leon Ware (parceiro do papa da soul music Marvin Gaye) e o grupo pop rock Chicago. Marcos desenvolvera fobia de palco, que a escalada das paradas ajudou a curar, inclusive com aparições no Chacrinha e uma maratona de shows em bailes funk nos subúrbios cariocas.

Surf, hippies e liberação sexual

A imagem esportista tinha raízes, justamente, no sofisticado “Samba de verão”, que ajudou a modular a trinca sal, sol e sul da bossa nova. Garotões loiros de origem alemã, filhos de um pai paraense advogado que exigia que os filhos fizessem exercícios, os irmãos Valle tinham pinta de surfistas – e eram mesmo. Pegavam onda no Arpoador e na então deserta praia da Macumba, perto da casa atual do artista. “Era um surfe ingênuo, na época não tinha campeonato nem nada”, ri.

A vida praiana acontecia também em Búzios, então uma vila de pescadores, onde os irmãos vivenciaram sua fase hippie, que rendeu discos como Vento sul (1972), influenciado por macrobiótica e rock rural, e canções pop-soul sobre liberação sexual, amor livre, desapego às obsessões capitalistas, prostituição, afronta a valores familiares...

“Com mais de 30” é um desse período, com versos rebeldes como “não confio em ninguém com mais de 30 anos/ não confio em ninguém com mais de 30 cruzeiros...”. Outro exemplo é o baião “Nem paletó, nem gravata” (1973) – sim, Marcos era um bossa novista que tocava baião e teve como ídolo musical um futuro enjeitado pela bossa, Luiz Gonzaga.

É que, antes da fase praieira, o menino interiorano da montanha passava os meses de férias de infância e adolescência em Nova Friburgo, onde participava de serenatas tocando sanfona ao lado de Benito di Paula, futuro criador de sambas hiperpopulares ao piano. “Gosto de contrastes. Adorava praia, mas também adorava montanha. ‘Os grilos’, que fala ao mesmo tempo de rio e de mar, é fruto desse duplo gosto que eu tinha”, descreve, referindo-se a outro de seus clássicos bossa novistas. Lançada em 1967, “Os grilos” prenunciava o balanço black que viria e foi uma das responsáveis pela redescoberta de sua obra nos anos 90 por DJs europeus e japoneses de música eletrônica e drum’n’bass

“Tudo em Friburgo tinha cheiro de terra até o cheiro de bosta de cavalo me dá saudade daquele tempo, quando a gente subia a serra, ficava tocando no alto, andava a cavalo e de bicicleta o tempo inteiro”, evoca, sem perceber a conexão de momentos bem distintos de sua história por intermédio da bicicleta. O apego pela terra virou canção de protesto quando a dita MPB universitária deixou a bossa para trás, e rendeu outro sucesso que poucos associam imediatamente à figura do professor de ginástica de “Estrelar”. Era a interiorana “Viola enluarada” (1968), com a qual Marcos impulsionou a carreira de um jovem vocalista negro vindo de Minas Gerais, chamado Milton Nascimento.

Boni: “Vamos fazer essa merda”

Os temas soul pop com crítica comportamental e valores hippies eram veiculados, acredite, pela Globo em seus primeiros anos, a partir de 1969. Os Valle compuseram trilhas inteiras, como as de Selva de pedra (1972) e Os Ossos do Barão (1974), e as canções sobre tolerância do infantil Vila Sésamo (1972-74). Foi aí também que os Valle fundaram a agência publicitária Aquarius, em sociedade com o jornalista e compositor Nelson Motta e o então presidente da Philips, André Midani.

Sob a égide da Aquarius, Nelson e os Valle criaram o jingle natalino “Um novo tempo” (1971), reprisado até hoje nos fins de ano da Globo. Sim, o suposto cantor de um hit só também deixou sua assinatura nos famigerados versos “hoje é um novo dia de um novo tempo que começou nesses novos dias/ as alegrias serão de todos...”, colocados sob suspeita desde então como de adesão ufanista à ditadura militar.

“Não me arrependo de ter feito, eu acho legal”, reavalia, demonstrando mais conflito com a máquina moedora de gente da Globo que com impasses políticos. “Lembro do Boni indo à minha casa ouvir: ‘Deixa eu ouvir essa merda! Porra! Do caralho! Vamos fazer essa merda!’. Dava medo dele, eu nunca soube lidar muito com essas coisas.”

Marcos não chegava a usar terno e gravata, mas as pressões da vida adulta redundaram no seu período mais contestador, que hoje fãs europeus chamam da “fase psicodélica”. O nome é algo impróprio, como ele observa: “Fumei maconha durante um ano, usei LSD uma ou duas vezes e não me dei bem. As drogas tiveram papel pequeno na minha vida, o lado esportivo batia nisso. Quando usei antes de subir no palco, então, fiquei apavorado. Eu gosto de ter o controle, sempre”.

Os dez primeiros anos de carreira acabam de sair numa caixa com 13 CDs, e seu trabalho mais recente, Estática, chegou às lojas ano passado. Com parcerias inéditas com Marcelo Camelo, é o mais cheio de groove desde os anos 60. Ao falar da fase soul-pop-rock-psicodélica, Marcos evoca identificação com o maestro “lounge” Burt Bacharach, que em sua opinião compunha influenciado pelo baião brasileiro. 
Espontaneamente, se põe a lembrar a trilha de Burt para o filme “Buch Cassidy & the Sundance Kid” (1969), o soul pop Raindrops keep fallin’ on my head, e, de volta ao começo, as cenas de Paul Newman e Katherine Ross em uma bicicleta. Compositor de pequenos sucessos, foi e é autêntico em cada um deles, seja a bordo de uma prancha, uma bicicleta, uma viola enluarada ou uma partitura erudita. E os sucessos são tantos e tão diversos que o cara parece não um, mas vários cantores de um hit só.

Clipe de "Bicicleta" produzido pela Rede Globo em 1984

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